A qualquer momento a 2ª. Turma do STF decidirá, em habeas corpus requerido a favor de Lula, se o então juiz Sérgio Moro era juridicamente “suspeito” ao julgar e condenar o ex-presidente no caso do tríplex de Guarujá.
Caso o Supremo decida pela suspeição, será anulada a condenação de Lula nas três instâncias em que, por unanimidade, foi considerado culpado. Um imenso esforço judicial — com inegável contraditório em juízo — será anulado por causa de três hackers, criminosos confessos, que ilicitamente gravaram conversas e mensagens entre juiz e promotor — e cerca de mil pessoas que trocavam ideias livremente, pensando estar em um país que protege a privacidade de seus cidadãos.
Quem foi o bobo que disse, pela primeira vez, que “o crime não compensa”? Ele estava errado. No Brasil compensa. Vale mais, para vencer uma complexa demanda, contratar um hacker, acoplado a um “difusor” — que divulga umas partes e esconde outras —, que um ótimo advogado.
Pelo andar da carruagem constata-se que a “prova seletiva” do hacker, mesmo sendo juridicamente nula, tem mais efeito concreto, decisório, que dezenas de páginas de argumentação jurídica no lugar certo: nos autos do processo judicial, não na fase do inquérito.
É um paradoxo judicial que um ato nulo possa ter, eventualmente, um efeito decisório com força equivalente ao da coisa julgada, caso apreciada em última instância, irrecorrível.
Se o juiz Moro, na primeira instância, era eventualmente suspeito ao examinar a prova colhida em juízo — a única que importa para condenar ou absolver qualquer réu — como se explica que os três magistrados que julgaram a apelação e os outros que julgaram o recurso ao STJ, não perceberam erros no julgamento de Moro? Será mera coincidência o convencimento unânime quanto a culpa do acusado?
Tais julgadores são, por acaso, analfabetos funcionais? Ou porventura os advogados de Lula eram tímidos, ou incapazes de argumentar contra as deduções do juiz que condenou o generoso cliente?
Ninguém pode dizer isso de boa-fé. Nas audiências televisionadas os defensores argumentavam com pertinácia e habilidade, tentando extrair água das pedras. Não conseguiram mais porque as “pedras” eram secas, objetivas, ingratas. Por isso, adotaram as alternativas do mantra genérico do “é golpe” e da provocação do juiz, na esperança de desequilibrá-lo emocionalmente. Se Moro passasse a gritar, nervoso, ameaçando o réu, ou seu advogado, com a prisão por desacato, quem sabe — pensavam —, conseguiriam trocar o juiz, obtendo um julgador menos familiarizado com os métodos de enriquecer rápido sem ser descoberto. Seria a glória. Só que não deu certo. Moro conseguiu manter a serenidade, sem elevar a voz.
A defesa fez o impossível para salvar o cliente. Lula chegou a perguntar a Moro, com estudada tranquilidade — um Freud pernambucano —, se ele, quando chegava em casa, tinha coragem de se olhar no espelho. Moro, em lugar de responder que quem deveria se olhar no espelho era quem perguntava, não se exaltou. Não caiu na armadilha, e, no caso, não adiantaria prender Lula, por desacato, porque ele já estava preso.
Espera-se — como mero parêntese —, que jovens advogados brasileiros que começam a trabalhar na área penal não fiquem entusiasmados com a essa “inovação técnica” de defesa, gritando e “interrogando” o juiz visando tirá-lo do caminho, com isso conseguindo rápida troca e visibilidade profissional. E se o juiz substituto não fosse tímido ou indeciso o suficiente, por que não repetir a dose da provocação e substituição de juiz até encontrar um magistrado temeroso, ao gosto da defesa?
Como Lula já está solto e o propósito básico do “habeas corpus” (“tenha, apresente o corpo”) é a liberdade física, pessoal —, não se sabe se a Suprema Corte julgará — corretamente — prejudicado o pedido de Lula, arquivando o HC, ou continuará — erradamente — o julgamento só para decidir sobre a suspeição do juiz que o condenou.
A rigor, o pedido de suspeição apresentado em um HC que perdeu seu objeto — a liberdade do réu —, não tem a mínima razoabilidade ou condição jurídica de prosperar porque qualquer estudante de direito sabe perfeitamente que em habeas corpus não cabe examinar com exaustão provas ainda discutíveis, incertas. Ainda mais no caso do tríplex do Guarujá, em que a condenação do réu foi confirmada na apelação e em recurso especial ao STJ.
O habeas corpus, em matéria de prova, assemelha-se ao mandado de segurança, que exige, para sua concessão, um “direito líquido e certo”, isto é, um direito facilmente comprovado, emergente de uma situação de fato em que não caiba qualquer dúvida. No caso da condenação de Lula, a “prova” da suspeição — frases esparsas, contestadas pelo juiz e pelo promotor— ainda permite dúvidas, porque as gravações, ainda não foram periciadas. Quem detém o material ilícito — o jornalista americano Glenn Greenwald — nega-se a apresentá-lo, alegando “sigilo da fonte”. Que sigilo? Que fonte? Todo mundo sabe quem fez as gravações, as três “fontes”.
Impossível saber, por enquanto, se o trio criminoso que confessou a colheita do material gravado tem, ou tinha, à época, uma competência técnica capaz de fazer montagens e simulações de voz.
A criminalidade eletrônica é engenhosa e aumenta rapidamente, visando a “nobre arte do mal”, atormentando a população honesta que sente-se cada vez mais indefesa, temendo abrir qualquer mensagem ou entrar em um site aparentemente do seu banco. Se entrar, pode perder suas reservas financeiras com um clique. Tem que viver assustada e grudada no celular porque se o aparelho estiver desligado, ou sem carga — no momento em que o setor do cartão telefona para consultar sobre movimentações suspeitas — sua conta pode estar sendo esvaziada .
Está cada dia mais perigoso clicar no computador ou conversar no telefone. E todo cidadão tem, teoricamente, o direito à privacidade. Isso não existe mais, para “glória” dos hackers, sempre na dianteira da lei, que diz, inutilmente, que uma escuta ilegal “não tem valor”. Tem, pelo menos na área judicial — justamente onde não deveria —, se o STF vier a anular condenações em três instâncias, com base em escutas ilegais ainda não periciadas.
Com o progresso da tecnologia sabe-se que gravações podem ser manipuladas. Até que ponto, só um especialista pode dizer. Em tese, palavras podem mudar de posição, alterando o conteúdo. Seria o caso das gravações em discussão? Somente com o exame do conjunto das gravações é que poder-se-ia chegar a uma conclusão.
Diz o art.158 do Código de Processo Penal que “ Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”
Ocorre que Greenwald recusa-se a mostrar seu material criminoso por inteiro. Considerando-se que Greenwald apresenta-se como um grande idealista, paladino da verdade, por que ele não apresenta as gravações, ou pelo menos uma cópia fiel e completa?
Será porque nelas se verificarão cortes, interrupções e outros detalhes, mostrando que houve manipulações? Ou será porque no conjunto das gravações haverá frases altamente prejudiciais à defesa do réu, reforçando sua culpa? Ou talvez serão frases de magistrados da alta cúpula que, divulgadas, os tornem suspeitos ou impedidos de julgar a eventual suspeição do juiz que primeiro condenou o réu?
Fossem as conversas ouvidas involuntariamente, por mero acaso — por exemplo, linhas cruzadas em que uma pessoa ouve a confissão de um crime que foi atribuído a um inocente — elas poderiam ter validade, porque não houve má-fé na escuta. Mas não foi esse o caso. As escutas foram montadas com o específico intuito criminoso, de “pescar”, durante horas e dias as conversas particulares de dois profissionais que visavam uma investigação bem feita, isto é, que, pudesse ser confirmada em juízo. E ela foi confirmada, com o contraditório, por todos os magistrados que julgaram o mesmo processo.
Isso é o que vale, o que está nos autos, e não nos diálogos particulares. Se todas as pessoas fossem julgadas pelo que conversam livremente nos telefones, particularmente, metade do planeta estaria presa.
Se um juiz, no recesso do lar, no jantar, conversando só com a esposa, respondendo a sua pergunta indagando se ele iria condenar um ganancioso estelionatário, ou serial killer de crianças, ele dissesse à mulher: — “Já o condenei! Redigi a sentença hoje mesmo! Apliquei a pena mais alta possível. Vou tirar esse canalha de circulação por milênios!” e alguém tivesse ilegalmente, a pedido do réu, colocado um gravador por baixo da mesa em que jantavam, esse desabafo emocional, depois divulgado, anularia sua sentença se ela estivesse fundamentada nos autos, com provas, indícios e defesa jurídica normal?
Cabe, aqui, uma conjetura indiscreta, mas justificável ante a gravidade do perigo iminente de se inutilizar, no STF, o mais importante processo criminal das últimas décadas, no Brasil, na luta contra a corrupção.
Se, eventualmente, nas centenas de gravações em poder de Greenwald houver frases desinibidas de magistrados da instância máxima conversando entre si, ou com advogados de defesa amigos, revelando raivosas críticas ao ex-juiz Moro e/ou profunda amizade pelo réu Lula, esses sentimentos os tornariam suspeitos para decidir sobre a suspeição do juiz?
A conjetura é incômoda, mas juridicamente pertinente porque a suspeição de magistrados vale para toda a magistratura, de todas as instâncias, não só na primeira. Frise-se que, ocorrendo substituição de ministros tecnicamente suspeitos, o resultado da votação da suspeição de Moro poderia ser diferente da hoje previsível, com imensa repercussão em muitos julgamentos futuros. A Lava Jato poderia continuar firme, ou se tornar um “faz de conta”, conforme a composição votante.
Desnecessário detalhar aqui os nomes e a opinião de quatro ministros do STF na repulsa, ou ódio contra o ex-juiz Sérgio Moro e à Lava Jato. Seus votos, ouvidos nas sessões de julgamento, quando o tema é Lula, são bem previsíveis, de tal maneira o julgamento foi politizado.
Por exemplo, um dos ministros mais hostis ao Moro e a Lava Jato, Gilmar Mendes, proibiu, com liminar, até a investigação sobre a participação de Glenn Greenwald na “recepção, obtenção ou transmissão” das informações publicadas no site que fundou, o The Intercept Brasil”. É o que nos informa o jornal Estado de S.Paulo de 07/02/20.
Como consequência dessa proibição, um juiz da Justiça Federal do Distrito Federal, lendo uma denúncia apresentada pelo MPF, contra sete pessoas — incluindo o jornalista —, recebeu a denúncia somente contra seis deles, excluindo, “por hora”, o jornalista, tendo em vista a proibição de Gilmar. Como a liminar está em vigor, o juiz achou prudente não tumultuar os procedimentos. Na sua decisão escreveu que vê “dúvida razoável” sobre se a decisão do ministro impediria o recebimento da denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal contra o jornalista. A liminar de Gilmar ainda não foi julgada pelo Tribunal. E não se sabe quando será porque não há um STF, mas onze Supremos.
Houve, no caso, por parte de Gilmar Mendes, um pré-julgamento de uma investigação sobre um crime que esclareceria se Greenwald foi um mero receptor idealista, um planejador ou um incentivador de conduta criminosa, porque escuta ilegal é crime.
Se Moro for considerado suspeito, no julgamento de um HC sem objeto, a única coisa boa que pode resultar desse julgamento será o fortalecimento da tese de que o STF precisa ser reformulado, com urgência, quanto aos critérios de nomeação e prazo de permanência de seus ministros, porque a vitaliciedade estimula o abuso, inerente a todo ser humano, com ou sem toga.
O lado ruim da decisão de que Moro é suspeito será a não percepção de que o trabalho desse juiz deve ser julgado pelo “conjunto da obra”. Não tivesse agido como agiu, com a necessária “dureza”, bilhões não teriam sido devolvidos pelos réus condenados, e outros bilhões continuariam sendo escoados pelo grande ralo do dinheiro desviado.
Parar uma longa tradição de dolo ou tolerância no desvio de dinheiro público exigiu coragem — até de vida —, perspicácia, imensa, paciência e espírito público. Para mim, Moro deve ser visto como aquele modesto juiz que apoiou a ânsia de justiça da maioria do povo brasileiro cansada de ver a corrupção em toda parte. Sonhou que, ao contrário da Itália — que voltou atrás na “limpeza das mãos” — o Brasil conseguiria afastar a desculpa do tradicional “ele rouba mas faz”.
A obrigação do político é fazer, mas sem roubar”.
(08/02/2020)
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