Uma explicação preliminar.
Em 14/06/2019, publiquei no meu site www.500toques.com.br, um artigo, “Sérgio Moro priorizou a verdade e não violou a lei”, demonstrando que os artigos 156 e 209 do CPP (Código de Processo Penal), ainda em vigor, permitia, e ainda permite, ao juiz — no caso, Sérgio Moro — tomar iniciativas probatórias, quando julgava os casos da Lava Jato, notadamente as acusações contra o ex-presidente Lula.
Como o leitor consciencioso pode não ter acesso fácil ao CPP, transcrevo logo abaixo os dois artigos legais mencionados, sem os quais o cidadão terá dificuldade em chegar a uma conclusão própria, a favor ou contra, da conduta do referido ex-magistrado, hoje Ministro da Justiça e Segurança Pública. Vejamos o que diz a lei.
Código de Processo Penal
Art. 156: A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
Art. 209 do CPP: “O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.
§ 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.
§ 2o Não será computada como testemunha a pessoa que nada souber que interesse à decisão da causa”.
Essa
liberdade do juiz na busca da verdade, autorizada pela legislação, pode parecer
excessiva, mas não é, considerando-se que essa liberdade judicial pode ser
usada tanto a favor da acusação quanto da defesa. Note-se que o art. 209 fala
em “partes”, no plural.
Exemplificando. Um advogado de defesa,
iniciante na profissão, certamente não protestará se o juiz absolveu seu
cliente porque, sem atender a qualquer pedido, requisitou determinada prova que
comprovou a inocência do acusado, prova essa que o jovem advogado nem pensou em
requerer, por incompleto conhecimento do assunto.
Essa
“parcialidade” do juiz na instrução do processo, beneficiando o réu, levaria à
anulação do processo, na opinião da acusação? É óbvio que não, porque a finalidade
última, máxima, da função julgadora é realizar a justiça. É bom, portanto, que
os dois artigos do CPP, referidos acima, continuem existindo na nossa
legislação. Sérgio Moro, na sua forma geral de trabalhar, segue essa boa
orientação. Busca a verdade.
Analogicamente,
alguém já disse que “as guerras são importantes demais para ficar apenas das
mãos dos generais”. Em julgamentos criminais, principalmente aqueles com imensas
repercussões políticas e/ou financeiras, manda a cautela que o juiz se preocupe
com a verdade real, e não somente aquela “verdade” formal, selecionada pelo
interesse das partes.
A
nobre “lei” e sua idealista irmã, a “justiça concreta”, humana, nem sempre
conseguem se manter invioladas, pois são operadas, manipuladas, por seres
humanos, essa espécie dominante do reino animal com um DNA quase igual ao do
chimpanzé e que está longe de merecer total confiança, seja por ignorância,
medo, ganância, vaidade, luxúria, soberba e todas as demais falhas — a lista é
longa... — que todos nós reconhecemos, inclusive em nós mesmos, latentes ou a
pleno vapor.
Também
temos, paradoxalmente, virtudes raras que chegam até a chamada “santidade”. O
problema, no exame desse mingau moral, é que nunca sabemos o que acontecerá
conosco se não nos precavermos, temendo o pior. Por que exigimos recibos quando
pagamos uma conta? Por que existem os contratos? Por que existem os recursos
nas decisões judiciais? Por que existem códigos de ética profissional, senão
porque a experiência dos séculos recomenda prudência no lidar com todos os seres
humanos.
Entre eles estão advogados, promotores, juízes, peritos, etc. Como
este texto examina procedimentos de um determinado juiz, Sérgio Moro, vamos
analisar, por alto, sua atividade na Lava Jato.
Moro
deveria ter sido totalmente passivo na gigantesca operação destinada a
investigar a corrupção existente na Petrobrás e seus desdobramentos? Não. A
vasta maioria dos brasileiros exigia e ainda exige rigor sem medo na
investigação dos mais poderosos, notadamente daqueles políticos — não são todos
— que parecem ter entrado na política com a única finalidade de enriquecer.
Sabe-se,
por exemplo, que por baixo das formalidades legais podem ocorrer — embora esporadicamente
—, “arranjos”, em que um réu que cometeu ou ordenou um homicídio pague outra
pessoa para assumir culpa alheia. Isso é mais ou menos comum quando o homicídio
ocorreu na prisão, mas também pode ocorrer fora da cadeia.
O preso que já tem
grande número de condenações — sem esperança de sair vivo da cadeia —, aceita
assumir a culpa de executor, ou mandante de um homicídio, por “xis” reais,
porque essa nova condenação não vai alterar sua situação carcerária.
Suspeitando,
o juiz, que está sendo enganado por uma falsa autoacusação, ele deve engolir o
engodo porque o promotor, eventualmente, não se interessou pela trama,
contentando-se com a “confissão do réu”? Igualmente, se um político poderoso
suborna alguém para assumir sua culpa em uma desonestidade qualquer — salvando
a reputação do político na próxima eleição —, deve o juiz aceitar passivamente
a autoacusação ou tomar alguma iniciativa probatória para deslindar a manobra,
mesmo sem requerimento do promotor? Deve o juiz aceitar o papel de trouxa? A
meu ver, deveria buscar essa prova, se possível.
Após colhida, ouvirá as
partes. Havendo o contraditório nos autos, pouco importa se a iniciativa da
dessa prova veio do acusador, do defensor ou do próprio juiz. Ou, absurdamente,
deveria o juiz abandonar o caso só porque foi “parcial”, preferindo a verdade,
ignorando a “mentirinha”?
Sérgio
Moro, quebrando os velhos costumes brasileiros, pode ser censurado por um ou
outro rigor, não habitual, nas detenções provisórias, baseadas no que foi
apurado pela Polícia Federal. Esse rigor, que aos brasileiros pareceu excessivo,
na verdade não era excessivo.
Era apenas “não usual”, no Brasil — comparando
com o que ocorria no passado, em que “rico não vai para a cadeia”. Pelo que
deduzo do sistema legal americano — com diferentes legislações estaduais —, é usual
a detenção provisória do suspeito para a colheita de prova. Qual a utilidade
disso? Uma coisa é interrogar o suspeito antes que ele tenha sido orientado
pelo advogado. Outra, quando ele responde depois de instruído, por seu
conselheiro jurídico, sobre o que dizer, como dizer, quando calar, quando divagar,
inventar, não se lembrar, etc.
Como
tais investigações policiais preliminares resultaram, na maioria, em
condenações de duas ou três instâncias, conclui-se que, a Polícia Federal trabalhou
bem, no geral, corretamente, sem abuso probatório. Algemas foram desnecessárias,
sim, mas isso já foi corrigido na prática da condução.
Alega-se
que a prática de prender o suspeito, durante o inquérito policial, acaba “forçando-o”
a confessar sua ilicitude, sendo uma forma de “coação”.
De fato, há uma pressão
psicológica mas justificada moralmente por ser um ganho do país na luta contra
um mal maior — a “pressão” interna da própria ganância, a impunidade
enriquecedora e bem organizada. Uma pressão psicológica contra alguém que, no
geral, sabe que errou, não resistindo à uma má-tentação contra a qual tinha
obrigação de resistir como cidadão. Às vezes é preciso que o poder público tome
medidas mais severas, mas não gratuitas, oriundas de capricho. Essas detenções
provisórias eram precedidas de investigação policial que reunia fortes
evidências comprovando ilicitudes.
Outros
países já passaram por situação semelhante.
Quando
Al Capone, nos EUA, praticava contrabando de bebidas alcoólicas e matava
concorrentes, a tiros ou até com taco de beisebol, O FBI não conseguia convencer as testemunhas
para depor porque elas, tão logo sabiam quem era o acusado, mudavam de ideia.
Como fazer para impedir Capone de prosseguir com seus crimes? Usando a legislação
do Imposto de Renda que previa prisão por sonegação de imposto. Um claro
“desvio de finalidade” do Governo Americano na luta contra a impunidade.
E foi
necessária outra “esperteza” para o governo conseguir uma condenação: convicto de
que o contrabandista já subornara ou intimidara boa parte dos jurados que o
julgariam naquele dia, o juiz decidiu, na hora, bruscamente, mandar o caso para
um outro corpo de jurados, no mesmo prédio, sem tempo possível para Capone
intimidar ou subornar os jurados. Capone, vendo isso, fez um escândalo, gritou
e protestou contra a deslealdade, mas como não havia ilicitude na troca de
jurados, ele foi encarcerado e cumpriu pena até morrer vitimado pela sífilis,
já em casa, cercado pela família.
Analogicamente,
alguém já disse que “as guerras são importantes demais para ficar apenas das
mãos dos generais”. Em julgamentos criminais, principalmente aqueles com
imensas repercussões políticas e/ou financeiras, manda a cautela que o juiz se
preocupe com a verdade real, e não somente aquela “verdade” formal, selecionada
pelo interesse das partes.
A
nobre “lei” e sua idealista irmã, a “justiça concreta”, humana, nem sempre
conseguem se manter invioladas, pois são operadas, manipuladas, por seres
humanos, essa espécie dominante do reino animal com um DNA quase igual ao do
chimpanzé e que está longe de merecer total confiança, seja por ignorância,
medo, ganância, vaidade, luxúria, soberba e todas as demais falhas — a lista é
longa... — que todos nós reconhecemos, inclusive em nós mesmos, latentes ou a
pleno vapor.
No
caso de Sérgio Moro, suas sentenças condenatórias foram examinadas com
responsabilidade por outros magistrados, desembargadores e ministros, de
instâncias superiores, que obviamente leram os autos antes de decidir. Não se
pode presumir o contrário, apenas seguindo o mantra de um seu condenado famoso
que apenas repete o refrão de que “que foi condenado sem provas”, sem detalhar
seu estribilho. Ele alega que nunca foi o proprietário do tríplex porque a
escritura não esteve em nome dele, quando o delito está justamente no disfarce
da realidade, segundo os autos.
Não gosto de espezinhar quem está por baixo,
mas Sérgio Moro aplicou a lei segundo sua correta interpretação.
Quanto
às trocas de opiniões captadas pelo hacker
entre juiz e procurador, é de se lembrar que na Itália, juiz e promotor
pertencem à mesma carreira. No Brasil, ambas as profissões guardam certa
proximidade funcional e física, tanto assim que, nos julgamentos coletivos o
promotor senta-se próximo do juiz. Isso porque a função de ambos é apenas a de
fazer justiça, não ocorrendo o mesmo na atividade do defensor.
O
advogado não é obrigado a fazer justiça. Quando seu cliente é realmente
inocente, seu trabalhou é realizar a justiça. Na maioria dos casos, porém, sua função é
beneficiar uma das partes, o réu, mesmo sabendo que ele praticou um crime. Sua
glória máxima será profissional, consistente em conseguir absolver um réu
quando toda a comunidade pensa, lendo a mídia, que o réu defendido por ele
cometeu um crime e, mesmo assim, saiu ileso, graças à inteligência e persuasão
do seu advogado.
Seu sucesso profissional, quase mágico, “extraindo água das
pedras”, o tornará famoso e rico.
Diz o art.6º do Código de Ética e Disciplina da OAB que “É defeso ao advogado expor os fatos em Juízo falseando deliberadamente a verdade ou estribando-se na má-fé”.
Essa obrigação de veracidade refere-se apenas às demandas não criminais. Nas causas criminais não há tal limitação. A clientela do criminalista é constituída principalmente de pessoas processadas por infrações criminais, já investigadas em inquéritos e processos judiciais. Na grande maioria dos casos, o advogado, para favorecer o cliente, é obrigado a “falsear deliberadamente a verdade”. Mesmo em outras áreas, o papel dele é favorecer o cliente, ou assistido. Um advogado tributarista também não admitirá, nos autos, que seu cliente sonegou, se a prova estiver dúbia.
Outra diferença básica entre a dupla “juiz e promotor” versus advogado de defesa é que este não pode pedir a condenação do réu, seu cliente. Já o promotor pode pedir ou concordar com a absolvição do réu; e isso não é raro, principalmente no tribunal do júri.
Esse enfoque diferente entre essas profissões permite que juízes e promotores tenham, em geral, boa remuneração anual mas não podem se tornar milionários na profissão. Já ao advogado criminal é lícito almejar a riqueza, como advogado, graças a sua cultura especializada, dedicação ao trabalho e invulgar poder de persuasão. Mas não acusemos os criminalistas de egoístas. Mesmo com seu tempo sendo muito caro, não é raro que trabalhem de graça defendendo alguns infelizes que não podem pagar mas merecem o socorro jurídico porque de algum modo foram vítimas de coincidências infelizes, ou pobreza, ou falta de orientação, sendo no fundo pessoas boas.
Caso
o leitor não esteja plenamente convencido das considerações acima, leia meu
artigo “Sérgio Moro priorizou a verdade e não violou a lei”, no meu blog “francepiro.blogspot.com”,
ou no site mencionado no início do presente texto.
Se
o leitor não se convencer, é seu direito. Não vamos perder tempo tentando
provar quem tem razão. Seria inútil, porque o Direito não é uma ciência exata.
Além disso é ingrata, em termos de exatidão, porque lida só com fatos passados,
não presenciados nem pelo promotor, nem pelo advogado, nem pelo juiz.
Assisti
ao depoimento de Sérgio Moro no Senado, dia 19, último, das 9:15 até as 12:00 e
das 14:30 até o fim da audiência. Pelo que ouvi, considero que se saiu muito
bem, sempre correto, paciente, sem empáfia e contra-atacando com firmeza,
quando afrontado. Se foi severo atuando na Lava Jato, agiu assim porque se
fosse meio “geleia’ o Brasil continuaria o mesmo, cada vez mais dominado pelo
crime. Sua passagem pela vida pública merece respeito.
Ou
será que “sem generosa dose de corrupção bilionária o Brasil não funciona”? Se
assim for, triste sina.
(22/06/2019)