Quem acompanha, tão de
perto quanto possível —, porque os autos
dos processos não estão disponíveis a todos, e mesmo que estivessem não
ajudaria muito — a conturbada “judicialização” da política nas altas esferas,
não esconde, em conversas reservadas, sua decepção ao ler, nos jornais e
internet, a decisão do STF que, na primeira quinzena de dezembro de 2014 invalidou,
em habeas corpus , as provas obtidas
com a apreensão de um ou mais HD (discos rígidos), dez anos antes, em outubro de 2004, na sede do
Opportunity Fund.
A 2ª. Turma do STF
considerou que as provas presentes no disco — parece que foram mais de um disco
— apreendidos pela Polícia Federal — nas
famosas operações policiais Satiagraha e Chacal — são nulas. Isso porque o
mandado de busca e apreensão, assinado pelo juiz da 5ª Vara Federal de São
Paulo, mencionava como local da apreensão o escritório do banqueiro Daniel
Dantas, dono do Opportunity Fund, situado no 28º andar do prédio mas a apreensão
ocorreu no 3º andar, escritório do Opportunity.
Por que a apreensão da
prova, no Opportunity, ocorreu em andar diferente? A explicação é simples.
Quando os agentes
policiais, portando o mandado, souberam, no prédio, que a prova estava no 3°
andar, consultaram o juiz, provavelmente
por telefone — a mídia não esclarece — sobre o que fazer, certamente temerosos
de alguma represália futura da parte de um banqueiro poderoso e ousado, com
ligações políticas e pessoais de grande valia, cultivadas longamente na área
econômica, financeira e judiciária.
O juiz substituto, emissor
da ordem, sensatamente — só pode ser elogiado pelo bom-senso — informado da
alteração do andar onde se achava a prova, enviou um ofício aos executores do
mandado dizendo que o HD poderia ser apreendido no andar em que se encontrava,
isto é, no 3º andar, sede da administração do Opportunity Fund, presidida por
Daniel Dantas. Com esse ofício concreto, de papel, complementar do mandado, emitido
pela mesma autoridade judicial, o mandado foi cumprido.
As provas foram,
certamente, bem incriminadoras. Do contrário, Daniel Dantas não lutaria com
tanta persistência, para invalidá-las.
Se, como diz a Bíblia, com
sua proverbial sabedoria, “a letra mata, mas o espírito vivifica”, os atos
humanos — entre eles os cumprimentos dos mandados de apreensão — devem ser
julgados e interpretados segundo a correta intenção do magistrado emissor da
ordem e do ofício complementar.
A diferença de andar, no mesmo prédio em que
se encontrava o computador, ou computadores, guardando informações relevantes
para a justiça pública, não deveria —, pelo razoável senso de proporção —, ter o
condão mágico de invalidar um gigantesco trabalho judicial de uma década, posterior
à apreensão, como ocorreu na referida decisão concessiva do “habeas corpus”.
Não é impossível, em tese,
que, algum “espião” amigo do investigado, infiltrado na polícia, pouco antes da
chegada da Polícia Federal ao prédio tenha informado ao banqueiro que a polícia
estava a caminho, o que explicaria — mera hipótese —, a mudança do computador
de um andar para outro.
Se o policial não
cumprisse o mandado — mesmo com o ofício do juiz alterando o andar —,
devolvendo-o com base na irrelevante diferença de piso certamente sofreria uma
punição administrativa, por ingenuidade ou por se considerar corregedor do juiz
que assinou o ofício. E, convenhamos, não apreendido esse HD (disco rígido),
naquele momento, jamais essa prova seria encontrada depois, garantindo uma
impunidade que, de qualquer forma, acabou acontecendo anos depois, com a
recente decisão do STF invalidando a prova produzida contra o hábil banqueiro. E
invalidando não só a prova contida no HD como todas as outras evidências
futuras, delas emergentes, conforme a insensata teoria do “fruto da árvore
envenenada”, que explicarei mais abaixo.
Com esse recente habeas corpus voltou tudo a estaca zero.
Sem possibilidade de reinício útil porque, pelo que diz um recente livro de
Rubens Valente — “Operação banqueiro” —, o Superior Tribunal de Justiça já incinerou,
em 7 de junho de 2011, a documentação colhida na Operação Satiagraha.
Segundo referido livro, a incineração dos
documentos, na decisão do STJ, ocorreu em votação dividida, de 3 votos contra
2. Esses dois votos vencidos, contra a incineração, merecem o maior respeito,
pela sua prudência, vez que, tudo indica, essa prova poderia ser necessária em decisões
futuros do mesmo caso.
Pelo que informa a mídia,
o Min. Gilmar Mendes está processando o repórter e escritor Rubens Valente,
pedindo danos morais, alegando que ele distorceu os fatos e fez considerações
ofensivas no seu livro. Se, porém, Rubens Valente quiser se defender, nessa
ação cível, alegando não só seu direito constitucional de livre expressão como
também a eventual verdade do que escreveu, terá provavelmente imensa
dificuldade porque a prova contra Daniel Dantas foi, como já informado,
incinerada. Queimada mesmo, em sentido bem concreto.
Cabe aqui um parêntese
sobre frequentes abusos de intimidação, na justiça — não me refiro, aqui, ao
processo movido por Gilmar Mendes, porque ainda não li o livro nem a petição do
magistrado que se diz ofendido — na utilização de ações pretendendo indenização
por dano moral.
Algumas seitas religiosas,
acusadas de “saquear” seus fiéis mais ingênuos — ameaçando-os com o desprezo
divino quando se mostram poucos “generosos” nas doações — estão sendo agora
pouco criticadas pela imprensa porque o pastor chefe orientava seus seguidores,
residentes em pontos distantes do país, a processar jornais ou revistas quando publicavam
críticas contra o que consideravam ganância arrecadadora.
Como as ações por dano moral — no caso a “sensibilidade
religiosa ofendida” — são processadas no foro da “vítima”, os órgãos de
imprensa ficavam onerados com a necessidade de contratar inúmeros advogados
para contestar as diversas ações, em distantes regiões do país. Não as contestando,
os jornais e revistas tornavam-se revéis, presumindo, a lei, que os autores das
ações tinham razão, merecendo receber as pesadas indenizações pedidas a título
de “dano moral”. Não podendo suportar essa carga financeira, a imprensa preferiu
silenciar, ou suavizar suas críticas.
Por tal razão — e prolongando o parêntese —, a
jurisprudência brasileira precisa, com urgência, sanar esse ponto fraco da
legislação, dando um salto de qualidade. Como? Permitindo que o réu, nestas
ações cíveis de indenização por dano moral, — frequentemente visando apenas calar
o crítico — possa entrar com reconvenção (para os leigos, uma ação do réu
contra o autor no mesmo processo, por economia processual) pedindo ao juiz que,
se provado, nos autos, que o réu disse a verdade e não infringiu a lei, seja o
autor condenado a pagar ao réu uma indenização — também por dano moral —, no
mesmo valor pleiteado pelo autor, ou outro valor ainda maior, conforme o caso.
Isso seria justo porque quem se vê na situação
de réu, em processo dessa natureza — que pode durar vários anos —, sofre
evidente desgaste emocional, além de financeiro.
Nossa Constituição permite o direito de
crítica, em assuntos de interesse público, sem “blindar”, pessoa alguma, por
mais alta que seja sua posição social, ou institucional. Isso porque o direito
de criticar — desde que responsavelmente —, atos governamentais, é benéfico ao
próprio país, merecendo proteção judicial. Ruy Barbosa, em inúmeras passagens,
criticou uma ou outra decisão judicial do Tribunal mais alto do país, sem que,
por isso, tenha sido mal visto. Pelo contrário, foi até muito elogiado. Ele
dizia que os juízes julgam, mas também são julgados conforme o modo como
julgam.
Não é justo nem
democrático que qualquer autor, ou jornalista, fazendo, em livro ou artigo, uma
crítica sem insultos pessoais, apenas argumentando, tenha que esperar vários
anos para só depois — findo o longo processo em que foi reconhecida sua inocência
—, possa ele acionar quem o processou indevidamente. Caso, hoje, seja impedido
de reconvir — atacando o autor no mesmo processo —, que ingresse com ação
autônoma contra quem o está processando, pedindo também indenização por danos
morais, solicitando a união de ambos os processos para julgamento conjunto. Se,
com a sentença, o crítico mentiu, pagará
a indenização pedida pelo autor da ação. Se o critico tinha razão nas suas
críticas, o criticado pagará a quantia, porque agiu abusivamente, tentando
apenas silenciar alguém que apontava seus erros.
Encerrado o parêntese, e
voltando ao assunto principal, a anulação da prova, no STF, via “habeas corpus”
— instituto concebido, originalmente, apenas para proteger o direito de
locomoção — essa decisão teria, como fundamento, a teoria do “fruto da árvore envenenada.
Por ela, se a “árvore” está “envenenada”, todos os seus “frutos” também o estariam,
automaticamente. Uma consequência que, se eventualmente correta no reino
vegetal — desconheço —, ignora que o Direito é bem mais complexo que qualquer
árvore.
Essa “esquizofrênica” — nesse
distúrbio o doente vive fora da realidade — teoria jurídica surgiu nos EUA. Estranhamente, porque é um país, de modo
geral, inteligente e prático na sua jurisprudência. Parte, a teoria, do
pressuposto de que se a prova de um crime foi obtida irregularmente, ou “ilicitamente’,
ela nada vale. E não só ela, mas todas as outras provas dela decorrentes.
Se essa teoria tivesse
sido concebida em um país de pouco
prestígio internacional — Haiti, Líbia, Nigéria, etc. — teria sido recebido com
risadas. Seria um artifício jurídico criado apenas para beneficiar pessoas
importantes com problema na justiça, tal o exagero de sua tese quando aplicada de
modo automático e absoluto.
Figuremos um exemplo do
absurdo teórico do “fruto da árvore envenenada”: o pai de uma moça desaparecida
desconfia que sua filha foi assassinada pelo amante, o delegado de polícia da
cidade. A polícia se mostra inerte, finge investigar e ignora todos os
argumentos do pai. Alega que a moça “deve ter fugido de casa” com algum
namorado.
Cansado de tanta
protelação, o progenitor da moça, desconfia que a filha foi enterrada no
pequeno sítio do delegado. Sabendo que o delegado estaria ausente, o velho
resolve, por conta própria, auxiliado por um filho e um sobrinho, penetrar, à
noite, sem mandado, no sítio do delegado, para examinar os locais onde poderia
estar o corpo da filha.
Depois de algum tempo no
local, o pai e seus acompanhantes descobrem sinais de terra removida, cavam e
encontram o cadáver. Tiram fotos, filmam o lúgubre achado e ainda apreendem objetos
com restos de sangue, tudo incriminando o delegado. No dia seguinte procuram a
imprensa e o delegado regional.
Levado o caso à justiça, o
juiz anula toda a prova porque os três entraram no sítio , fotografando e filmando
a cova e a defunta sem um mandado judicial.
Como a prova foi obtida
“ilicitamente”, o caso fica encerrado, por “falta de provas”. O exame do sangue
grudado na faca, mesmo compatível com o sangue da vítima também não é
considerado “prova” porque não passa de mais um “fruto da árvore envenenada”.
“Juridicamente”, pela teoria, a moça poderia
estar vivíssima, em qualquer parte do mundo, muito embora a prova fotográfica,
as impressões digitais, o filme e o sangue na faca mostrem o contrário. Talvez pai
e companheiros ainda serão processados porque ingressaram no sítio sem
autorização do dono. Se, depois da anulação, algum promotor quisesse verificar
o que existia no tal sítio, agora com mandado judicial, nada encontraria. A
cova estaria convertida em canteiro de flores.
Obviamente, a lei não pode
estimular invasões arbitrárias de domicílio, escutas telefônicas clandestinas e
acesso de qualquer um à conta bancária sem autorização judicial. Mas se ficou
provada, com essa atividade irregular, ou tecnicamente “ilícita” a existência
de um crime , essa prova não deveria ser anulada. Que se aplique uma sanção a
quem fez uma investigação sem autorização judicial, mas que não se considere
“inexistente”, por exemplo, um cadáver tão real e verdadeiro que até fede. E as
fotos e filmes? Seriam apenas alucinações mecânicas?
Essa teoria, aplicada
cegamente, desmoraliza a justiça penal. Nega a realidade mais elementar. E o
interessante é que ela só funciona em favor do acusado. Se um réu consegue
obter, ilicitamente, uma prova que demonstra sua inocência — apesar dele estar
já condenado, com trânsito em julgado —, essa prova não é anulada, produz todos os efeitos jurídicos,
com total a razão porque a realidade vale mais que a ficção.
Voltando a Daniel Dantas,
ele é incriminado no livro de Rubens Valente, “Operação banqueiro”. Li, por
enquanto, apenas notícias sobre o livro, que já encomendei para compra, e também
uma longa entrevista sua na revista “Carta Capital”. A entrevista tem um tom convincente
mas dá uma ideia do tamanho do esforço mental hercúleo de qualquer magistrado
isento para separar distinguir o que eventualmente foi crime e o que foi luta
suja de bastidores na luta pelo domínio da telefonia no Brasil.
Por outro lado, Raimundo
Rodrigues Pereira, um jornalista de boa reputação, mentalmente honesto, francamente
de esquerda, defende Daniel Dantas com muita convicção, no seu livro “O
escândalo Daniel Dantas — Duas investigações”, cujo conteúdo intrincado também
desafia qualquer leitor, mesmo o mais tenaz, tal o excesso de fatos a serem
digeridos e concatenados. Para esse jornalista, Daniel Dantas foi apenas um
bode expiatório no processo privatização das telecomunicações.
Raimundo
Pereira foi entrevistado, para o site Conjur – Consultor Jurídico, onde ele diz
que “Você pode falar qualquer coisa contra o Dantas que pega, porque
ele é o demônio mesmo. Então, qualquer pessoa pode falar mal dele. E [o
delegado] fez isso” referindo-se ao Delegado Protógenes Queiroz.
Houvesse um filósofo ou “Sherlock
Holmes judiciário” no Brasil, tentando compreender a ligação dos fatos e as grandes tendências, ele provavelmente
chegaria à conclusão de que o nosso honrado Poder Judiciário está se cansando
de ser utilizado como instrumento de luta entre duas tendências políticas que
vêm se hostilizando há mais de dez anos: o petismo e o tucanato.
Essas duas tendências
políticas acusam-se mutuamente. Em vez de apenas discursos no Parlamento e artigos
na mídia, redigem petições ao Poder Judiciário — é mais cômodo... — que,
provocado, vê-se obrigado a tomar providências que redundarão em imenso
trabalho judicial, quase monopolizando o tempo e o esforço de apenas onze
Ministros.
Há um ditado antigo que
diz que “na luta entre o mar e o rochedo, quem sofre é o marisco”. Em termos apenas
de imenso trabalho, o STF é o “marisco” na luta entre o petismo e o tucanato.
Essas duas tendências hostilizam-se “vicariamente” (por procuração) cada um
acusando o outro por crimes relacionados com financiamento de campanha. Depois
vem o revide. Para o trabalho de quem? Do Judiciário — leia-se STF.
Essa constante luta
política tem muito a ver com a questão do dinheiro brasileiro depositado no
Exterior, em parte fugindo de uma tributação excessiva e burocrática. Não me refiro ao tráfico nem ao crime
organizado, que não merecem perdão. Digo apenas que se a legislação penal,
relacionada com depósitos no Exterior, for cumprida à risca, boa fração da
classe média altíssima corre o risco de ser presa. Mais prático seria que esse
dinheiro voltasse para o Brasil, sem consequências criminais. Depois do
confisco da poupança, do Collor, só não tinha dinheiro no Exterior quem não
tinha dinheiro em quantidade significativa.
Ou o Brasil acaba com a
“saúva” — a litigiosidade de origem política — ou a “saúva” acaba com o Brasil,
adaptando uma ditado antigo.
Não esquecer que essa luta
moralmente fratricida só desmoraliza o nosso país. O mundo político precisa
chegar a um acordo, deixando o STF trabalhar em paz. Isso só pode acontecer com
um grande acordo e modificações legislativas.
Há vitimas, nessa
prolongada batalha entre tucanos e petistas, que precisam ser reabilitadas.
Entre elas, os Delegado Protógenes Queiroz e Paulo Lacerda, da Polícia Federal,
que agiram com a melhor das intenções e acabaram punidos. Se falhas formais praticaram,
isso ocorreu por idealismo e paixão. Queiroz foi o mais prejudicado. Sua
punição por ter violado o sigilo, avisando a imprensa de uma detenção, foi,
“data vênia”, imensamente desproporcional.
Políticos de todo o Brasil: deixem o STF
trabalhar!
(12-01-2015)