(Tenho no mínimo duzentos artigos publicados
mas não promovidos. Como o que não foi lido é como não tivesse existido, tomo a
liberdade de publicá-los novamente, quando o assunto é de interesse geral.
Escrito em outubro de 2006).
Nunca me conformei com a sub-utilização, pelos
magistrados, dos contatos diretos, em audiência, entre o juiz e o réu — nas
ações penais —, e as partes — quando necessário — nas ações cíveis.
Interrogatório e depoimento pessoal são encarados, usualmente, mais como meras
formalidades do que como fonte valiosa para o conhecimento da verdade dos fatos
que originaram o processo. O juiz parece pensar que é inútil perguntar ao réu —
na maioria dos casos é do réu que se trata — o que ele fez, ou o que realmente
aconteceu, porque ele jamais dirá qualquer verdade que o prejudique. Assim, por
que perder tempo?
Essa conclusão, no entanto, é equivocada.
Fiquemos, inicialmente, na área cível. Embora eu
tenha permanecido na magistratura apenas 22 anos e meio — digo “apenas” porque
colegas meus nela ficaram por mais de 40 anos, e só nela não continuaram em
razão da “expulsória” — tenho a convicção de que em pelo menos 80% dos casos em
que converti o julgamento em diligência, consegui extrair a verdade diretamente
da boca da parte que não tinha razão. Muitas vezes vi o advogado do depoente cobrir,
disfarçadamente os olhos numa postura que significava: “Esse meu cliente é uma
besta... Como pôde admitir isso? Acabamos de perder a causa...”
Para que
determinar o depoimento pessoal finda a instrução da causa, quando o momento
processual “normal” seria fazê-lo apenas na audiência de instrução e
julgamento, como prevê a lei processual?
A explicação é que somente após encerrada a
instrução dispõe o juiz de várias informações valiosas sobre os fatos, o que
não ocorria antes. Em conseqüência, pode fazer aquelas perguntas mais
perigosas, que “acertam na mosca”. Além do mais, nas questões cíveis, a parte
que depõe é geralmente uma pessoa de honestidade, digamos, mediana — não vamos
aqui exigir a santidade. Sendo uma pessoa pelo menos “normalmente” honesta, ela
se acanha de negar frontalmente a evidência, ou pedaços de verdades
praticamente irrefutáveis. Respondendo às perguntas do juiz e estando presente
o advogado da parte contrária — que sabe o que aconteceu — o depoente imagina
que ficará desmoralizado e ridicularizado mentindo deslavadamente, insistindo,
qual um palhaço de circo, que o preto é branco ou vice-versa. Imaginará que a
parte contrária vai caçoar dele depois da audiência, espalhando que para poupar
algum dinheiro ele rebaixou-se moralmente, “agachou-se”, o que afronta o seu
orgulho. Que ele não queira, por exemplo, pagar o que deve, ou que queira
retardar o cumprimento de sua obrigação é humano, não vexatório. Mas mentir
deslavadamente perante outras pessoas que sabem que ele está mentindo — o juiz
(que praticamente já formou sua convicção, tanto assim que converteu o
julgamento em diligência para “arrancar” a confissão), o advogado da parte
contrária e a própria parte contrária, já é exigir demais do orgulho humano.
Quando as perguntas do juiz cível, alicerçadas em
fragmentos da prova oral ou documental, são por demais pertinentes, o depoente
que não está com a razão só escaparia da mentira deslavada se se recusasse a
responder. Mas aí seu silêncio implicaria em confissão quanto à matéria de
fato. Não querendo isso, tenta “dourar a pílula”. E aí é que “se dana”, como
diz a linguagem popular. Querendo emprestar alguma verossimilhança à versão
apresentada na contestação, ou na inicial, ele admite coisas que seu advogado,
se previamente consultado, jamais permitiria.
O depoimento pessoal, se colhido por quem leu
atentamente os autos, tem sua eficácia persuasiva auxiliada pela “linguagem do
corpo”, principalmente dos olhos. Mas às vezes das botas. Certa vez, em uma
cidade do interior, interrogando um cidadão de botinas que mentia
deslavadamente, tive que afastar minha cadeira da mesa, tal o perigo de levar
algumas “caneladas” involuntárias. Cada vez que o depoente mentia, sua
consciência reagia com um forte protesto neurológico que descia pela espinha
até o calcanhar, ameaçando a integridade de qualquer canela vizinha. E os
repelões também apareciam em movimentos inquietos na cadeira, que parecia cheia
de pregos. No fundo, esse depoente não era um marginal, porque sua consciência
conservava uma certa integridade, tanto assim que reagia fisicamente
escoiceando à própria mentira. Já um velho estelionatário, com a consciência
amortecida por anos de falsidades, pode mentir com tranqüila desenvoltura. Em
questões cíveis, felizmente, as partes são pessoas não acostumadas a mentir
continuamente. Daí sua utilidade depois de finda a instrução, quando permanecem
algumas dúvidas na cabeça do magistrado.
Há algo, porém, que diminui a utilidade desses
interrogatórios: a vontade do juiz em provar que é esperto, inteligente. Quando
ele pega o depoente em uma contradição, em vez de simplesmente ditar, sem
destaque, a resposta, ele faz questão de verbalizar que “pegou o depoente em
uma contradição”. Aí o depoente, percebendo o próprio “escorregão” corrige o
que disse antes, dizendo, por exemplo, que entendeu mal a pergunta, ou se
expressou incorretamente. E essa correção tem que constar do termo. Com isso, o
valor negativo indiciário da contradição perde força — pelo menos no julgamento
da apelação —, porque o tribunal não terá certeza, julgando o recurso, se houve
apenas uma distração ou imprecisão verbal do depoente, ao afirmar ou se
contradizer, ou se houve falha do juiz ao ditar o depoimento. O recomendável,
portanto, é o juiz — qual um bom jogador de pôquer — passar por crédulo e ditar
ao escrivão o que ouviu. A contradição, não corrigida, o ajudará na
fundamentação da sentença.
Na área criminal, o interrogatório tem sido ainda
menos útil. Com o intenso movimento forense, o juiz não tem tempo de ler com
cuidado os autos do inquérito policial, antes de interrogar o réu. Assim, só
pergunta, praticamente, o que a lei manda perguntar. Se quiser “arrancar” a
verdade mais a fundo — mesmo sem qualquer ameaça de violência — terá
desvantagem nesse “diálogo” inicial, porque o réu conhece os fatos muito melhor
do que ele. Se o juiz, finda a instrução, convertesse o julgamento em
diligência, para novo interrogatório do réu, esse ato — embora autorizado, em
tese, pela legislação — seria considerado um quase “massacre” dos acusados,
aumentando a superlotação das cadeias. É que o juiz estaria enfronhado nos
fatos, e o defensor não pode se intrometer no interrogatório, exceto para
impedir que o réu seja ameaçado, sofra violências, ou caso o juiz dite, no
termo de audiência, algo diferente do que disse o réu. E se o acusado é
instruído para nada responder ao juiz, essa conduta representa um risco, uma
indireta admissão de culpa. O juiz, queira ou não a doutrina, extrai do
silêncio o que achar que deva extrair. Sua convicção é livre. E todo advogado
prefere que seu cliente seja absolvido já na primeira instância.
A velha discussão sobre se o interrogatório é meio
de prova ou de defesa, tende a ser superada. O interrogatório é tudo: meio de
prova, de defesa e de acusação. Mais de defesa, mas, ao se defender, o acusado
pode, involuntariamente, fornecer a melhor prova de acusação. E a comunidade,
se consultada, não concordaria com a assertiva, usualmente feita, de que o
acusado não tem necessidade de mover uma palha em favor de sua inocência. O
sentimento popular mais esclarecido é francamente favorável a que o réu também
colabore na demonstração da verdade, não tendo o direito de ficar mudo e de
braços cruzados quando fortes indícios, comprometedores, apontam em sua
direção. O povo ainda tende a pensa que “quem cala consente”. E é salutar, para
a democracia, que as decisões judiciais tenham uma certa sintonia com aquilo
que o povo espera da Justiça. Esta não pode curvar-se à demagogia, aos
“arreganhos” populares — por vezes “fabricados” pelos donos da mídia —, mas
também não pode ser vista como uma entidade totalmente estranha ao mundo real.
Quanto ao depoimento de acusados, nas CPIs, a
legislação, ou a jurisprudência, não deveria permitir que o depoente a todo
momento consultasse seu advogado. Afinal, trata-se de um depoimento “pessoal’,
não “bi” ou “tri” pessoal, um advogado em cada lado do cliente dizendo como
responder. Afinal, quem está sendo interrogado? O depoente ou seu advogado?
Quando há contínua interferência do advogado, qual a utilidade do depoimento?
Nessa ventriloquia ridícula, melhor será que o advogado diga ao cliente para
não responder nada e ponto final. A Comissão conclua como quiser. É pelo menos
algo franco e direto.
Francisco Pinheiro Rodrigues (2-10-06)
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