Duas baratas, macho e fêmea, distinto casal, conversam, no idioma delas, na tubulação de esgoto, enquanto mordiscam restos estragados de comida. Ele chama-se Glutof e ela, Kiti.
— Por que o entusiasmo? —
pergunta o marido em tom desconfiado. Glutof é cético, convencido, solene,
cascudo, culto, repulsivo, olhos de coruja. Nutridíssimo, lembra uma tâmara
escura e obesa, dotada de pernas finas porém musculosas e cabeludas — ou que
melhor nome tenham suas cerdas. Felizmente, não engorda nas coxinhas, o que lhe
permite disparar em incrível velocidade nos momentos de perigo, caçado pela
tríade maldita de homens, ratos e gatos. Estes últimos uns farristas preguiçosos
que matam por diversão porque nem mastigam as presas. Sentem nojo.
Glutof orgulha-se do brilho castanho, quase negro, das suas asas, que
consegue rufar com enorme sucesso, provocando gritinhos e desmaios no sexo
oposto. Apesar de gordão, é mulherengo, ou melhor, “baratengo”, palavra que
pretende incluir no primeiro dicionário de uma nova língua, o “baratês”, em
elaboração — ele coordenador. Também gosta muito de filosofar, superior, deliciando-se
com a basbaquice dos colegas de sua espécie, “quase todos uns ignorantes,
quando comigo comparados”. Ocorreu uma mutação genética nas baratas domésticas,
caracterizada pela maior longevidade e tamanho do cérebro. Mas nem todas foram
igualmente aquinhoadas com o aumento da inteligência. Aliás, um problema também
humano, só que bem mais antigo.
— Você, crítico e convencido como sempre! — Kiti protesta. — Que mania a
sua de me diminuir, quebrar o meu barato! Não é entusiasmo, diabo! É que fiquei
espantada, ou melhor, horrorizada — tá bem assim? — vendo a asquerosa limpeza
do novo restaurante da esquina. Consegui entrar lá uma única vez, por baixo da
porta, na véspera da inauguração, e dei uma espiada. Ontem, após a inauguração,
tentei voltar para beliscar umas coisinhas, esgueirando-me pelos cantos, mas
fiquei com medo. Movimento demais. A única fresta que poderia me dar uma boquinha
já foi fechada. A prevenção dos canalhas humanos contra nós é perfeita.
Entrada, só se for pela porta da frente, mas com o risco de ser esborrachada
pela sola do porteiro.
— Pela sua linguagem corporal ainda acho que você parece meio eufórica,
quase contente, aprovando inconscientemente a abominável limpeza... — insistiu
o marido, teórico respeitadíssimo pelo zelo na defesa dos imorredouros valores
da imundície. Interrompeu as chupadinhas que dava num pão embolorado para
sorver, estalando os beiços, um copinho de muco, escorrido de uma casa de
repouso de velhos pobres.
— É que eu, mesmo não aprovando, lógico, qualquer limpeza — tá pensando
que sou o que?! — gosto de ver coisas bem feitas, mesmo discordando delas. Você
sabe que sempre fui perfeccionista...
— Em termos... — cortou o marido. — Lá em casa você relaxa. Ainda há
muita limpeza aqui e ali... O asseio está ficando insuportável. Você não é
muito boa dona de casa, desculpe a franqueza...
— Mas você também não coopera! — ela ergueu a foz fininha, indignada,
vibrando as antenas. — Fica lá, paradão, no gabinete daquele advogado velho,
dono da casa, mordiscando livros antigos, engordurados, comprados no sebo.
Você, meu caro, é um viciado em sal e gordura humana velha.
— Você é que não enxerga um palmo adiante do nariz. Não é só gula, minha
cara. Eu estudo. Minha ociosidade é aparente. Está certo que também gosto de
comer. Leio, porém, tanto quanto como. Opa! Merece até um trocadilho — sorriu,
encantado com o achado: — Como leio! Exclamação. Principalmente saboreio,
devagar, degustando não só o sebo dos dedos da decadente prole de Adão, como
também a parte abstrata, as próprias ideias impressas. Isso para não ficar
dizendo besteira por aí, como nossos irmãos cascudos de pernas finas. Um dia
herdaremos a Terra... Lembra-se da profecia? Já li que se houver um conflito
nuclear, apenas nós sobraremos. Estaremos bem protegidos aqui no fundo,
enquanto a canalhada bípede torra lá em cima, merecidamente. Já imaginou a
farra, depois? Tudo será nosso... Do lixo aos computadores...
— Isso se der tempo de você correr pra cá. Se estiver na biblioteca na
hora do “Big Bum!” — como provavelmente estará, viciado em livro sebento — não
herdará coisa nenhuma! Será apenas mais uma tâmara tostada. Além disso, a que
guerra atômica você se refere? Os dois únicos gigantes que poderiam nos prestar
esse favor já fizeram as pazes! Está tudo desmoralizado! O chefe russo, aquele
urso loiro e cardíaco — referia-se a Boris Yeltsin —, com olhos puxados de
mongol — a mãe dele deve ter tido um vizinho japonês mais bonito do que o
marido — virou capitalista! Em vez de utilizar os roliços dedos apertando os
botões de lançamento dos mísseis, diverte-se beliscando as secretárias! É de
desanimar...
— Não perca as esperanças, Kiti. — Ela é graciosa, pestanuda, cérebro
rico de intuições loucas e acertadas, tudo misturado. Boazudinha, quase só
feromônios e órgãos reprodutores, tem fama de leviana, mas até agora ninguém
teve coragem de testemunhar contra ela porque é influente e vingativa. É o
quinto casamento do intelectual cara de coruja, que prossegue, doutoral: —
Parodiando o que já disse um empresário americano, ninguém, até agora, perdeu
dinheiro apostando na idiotice dos chefes de estado valentões. Melhor dizendo,
na idiotice da espécie humana, toda ela, sem exceção, que se diz tão racional,
espiritual. Nós, que a conhecemos bem e comemos o que jogam fora, sabemos o que
eles são no fundo. Principalmente nos fundos...
Fez uma pausa para mordiscar um resto de banana podre e continuou,
erudito, deliciado de ouvir aquela voz que sabia modular com tanta autoridade:
— Felizmente, as chamadas potências emergentes estão aí, preocupadas em
dominar o átomo, com isso assustando os vizinhos. Portanto, não desanime. Um
dia, estarão fazendo bombas atômicas de fundo de quintal. Chegará a nossa vez,
Kiti. Sempre acreditei que nossos ideais de justiça e supremacia final acabarão
prevalecendo. O poder dos impérios sobe e desce, qual uma gangorra. Está nos
livros de história que lambo, digo, leio. O Poder muda de mãos. Sinto no ar,
principalmente no poluído — essa cheirosa e estimulante lixeira aérea — os
sinais de que está chegando a nossa vez! É sumamente injusto o atual sistema de
dominação! Qualquer humano, idiota ou sabidinho, mal nos vê comendo uma mísera
migalha no chão da cozinha, morrendo de fome, arregala os olhos como um
assassino louco e corre pra cima, com a pata erguida. Por que esse preconceito?
Afinal, estamos limpando a cozinha deles, sem nada cobrar! Economizariam com
faxineiras! Poderíamos viver tão bem, em harmonia! À noite, os humanos
espalhariam suas roupas sujas pelo chão, iriam dormir nus, e nós invadiríamos a
casa, comendo toda a sujeira digerível deixada em copos, corpos, pratos e
talheres. As roupas teriam essa “lavagem a seco” diária. Lamberíamos todo o
pessoal da casa, dispensando-os do banho matinal. Baita economia pra eles!
Acordariam limpinhos! No entanto, as bestas nos esmagam!
— Que tal a gente montar um rodízio de roupas íntimas? Deve dar
dinheiro... — ela propõe, olhos brilhando, sempre atenta a sacar um lucrinho de
qualquer ideia. Considera-se uma grande empresária.
— Desta parte, você cuidaria. Não gosto de me meter em assuntos de
dinheiro. Sinto-me como se perdesse a dignidade.
— Tudo bem com essas teorias. Você sabe que não esquento a cabeça com
leituras. Só gosto de leitura a jato, dinâmica, mas gostaria de saber como
vamos comer, se estourar uma guerra nuclear. Os alimentos não estariam
contaminados pela radiação?
— Bem, ora... — ele pareceu surpreso. Nunca meditara sobre isso.
Rotulava esses lampejos de bom senso da esposa de “faíscas da ferradura da
cavalgadura”, como já dissera um famoso crítico. Mas não deu o braço a torcer:
— Realmente, claro, hum, de fato, já havia pensado nisso... Durante algum
tempo, que nossos técnicos determinariam, não comeríamos o que está na
superfície. Temos nas redes de esgoto um
gigantesco e delicioso estoque de supermercado natural, tudo já prontinho e
temperado para o nosso consumo. Assim, seria só esperar algum tempo no esgoto,
até que diminuísse a radioatividade. — Fez uma nova pausa para lamber,
estalando os lábios, uma espécie de musse de chocolate extraída de um papel
branco, quadrado, textura suave, e concluiu:
— Seria a glória!, como se estivéssemos no Camboja...
— Por que o Camboja?
— Porque houve lá uma suculenta guerra civil que durou vinte e cinco
anos. Nesse período, foram plantadas entre seis e dez milhões — hesitou: ou seriam dez mil? — de minas
terrestres. O resultado é que agora, todo mês, entre duzentas e trezentas
pessoas vão pro espaço. Não em aviões de carreira. É o país, embora minúsculo,
que tem o maior índice de amputações do mundo. Convenhamos, um paraíso
terrestre! Houvesse turismo entre nós, você já imaginou?... Ai, ai, ai! Dá até
água na boca, só de pensar! E os lança-chamas? Poderíamos escolher entre carne
mal passada, bem passada, saignant, rare, medium.
— Lá vem você com suas exibições de poliglota...
— E dizem os especialistas que serão necessários uns trezentos anos para
localizar e desmontar todas as minas.
— Por que eles plantavam tanta bomba? Não era possível uma agricultura
mais tradicional?
— Kiti... Você precisa ler mais devagar... Ninguém planta bombas,
querida. Eles enfiam explosivos no chão! Cada ala rival, ao se retirar,
espalhava as minas para fod..., digo, estrepar — ele não aprovava palavrões na
boca de grandes líderes — a cambada rival. E como havia muitas idas e vindas
nas contínuas escaramuças, perdendo e reconquistando terrenos, o resultado é
que o país virou um vasto açougue, fornecedor de pernas, cabeças e braços
humanos — em peças avulsas. Para nós, um paraíso, pois somos levezinhas e
podemos caminhar sem susto sobre as minas. Nossas primas cambojanas, aquelas
sortudas, têm sangue e carne fresca à vontade. Já está até fazendo mal ao
fígado, dizem, devido ao excesso de ferro na alimentação. É como porre de
vinho, dá aquela bruta dor-de-cabeça no dia seguinte. Os “inteligentíssimos”
humanos, hi!, hi! — riu, erguendo as sobrancelhas, rufando as asas em desprezo
— não pararam para pensar que, um dia, o tiroteio iria terminar? Esqueceram a
velha definição de que são “bípedes implumes”? Como não voam, pisam... e só
então voam. Soube que uma horrorosa princezinha inglesa, uma tal de Lady Di,
vinha pregando a proibição de minas terrestres. Será que vem mais essa desgraça
por cima de nós? Infelizmente, ela morreu.
— Infelizmente? — Kiti abriu as asas com espanto. — O que deu em você?
Foi bom ela ter morrido, parando com essa campanha nojenta.
— Você não tem visão, Kiti. Digo infelizmente porque, com a morte dela,
a imprensa passou a venerá-la; consequentemente, dando força ao que ela
pregava. Antes continuasse viva, só enchendo a paciência. Viva, seria menos
prejudicial para nossa causa. Perseguiram a infame por anos e anos, vigiando-a,
fotografando-a à distância, criticando e fofocando o tempo todo. Queriam até,
por causa dela, a queda da monarquia inglesa. Agora, bastou a maléfica
reformista morrer e pronto! Virou deusa! E aí é que está o perigo para nós!
Doravante, em crise de consciência — essa coisa tão doentia nos humanos, e
principalmente para vender revistas — a mídia vai querer pôr em prática a
pregação dela. Entre os humanos é assim. Só depois da pessoa morta, não mais
despertando inveja, porque está apodrecendo, é que é valorizada. Só espero que
aquela princezinha, mais feia que a higiene, não tenha sucesso póstumo na sua
absurda campanha para abolição das minas terrestres. Mesmo que não haja guerra
nuclear, eles morrerão de qualquer forma, só que lentamente, cozidos no fogo
lento do efeito estufa, ou envenenados pelas porcarias de comem, cheias de
química cancerígena de efeito remoto. São burros e ambiciosos demais para parar
a tempo. Felizmente, para nós, nossa alimentação, no esgoto há milênios, já nos
tornou imunes a tais venenos.
— Será que um dia seremos também assim, digo, com essas falhas de
caráter dos humanos?
— Provavelmente... — ele suspirou. — Lamento dizer. É o preço da
civilização... — Sentia vaidade da sua frieza de estadista. — A menos que
criemos uma nova Ética, na qual venho trabalhando há tempos, com a profundidade
que todos notam em mim. Para começar, precisamos inventar um reforço de coação,
um deus-barata à nossa imagem e semelhança: cascudo, antenudo, poderoso,
vingativo. A chefe, diretor, presidente, nem todos obedecem. Mas a um
deus-barata, com poder realmente de vida e morte, a barataiada planetária vai tremer...
e obedecer. Conversarei privadamente com “ele”, nosso deus — eu mesmo, claro...
— uma vez por semana no telhado de um prédio alto — sorriu, irônico, fechando
um olho de coruja — e em seguida transmitirei ao nosso povo qual foi a mensagem
que só eu ouvi... Que tal a ideia?
— E você acha que nosso pessoal vai acreditar nisso, nesse colóquio
privado divino? Nossa gente é mais desconfiada que os humanos, porque sofreu
mais...
— Acredita, sim, porque faz bem à alma acreditar. Acredita-se sempre
naquilo que se deseja acreditar.
— Mas você mesmo acredita?
— Claro que não! Mas ninguém poderá provar que não acredito. A menos que
você abra a linda boquinha, mas aí já sabe o que a espera. Apenas vendo um
produto muito necessário, a esperança, enquanto houver medo no coração das
baratas. “Business”, apenas. E por falar em medo, a civilização dos humanos
está afundando justamente por falta de medo. A moda deles agora, o “must”, é a
compreensão profunda da motivação dos atos humanos. Os patetas querem é
“entender”, vejam só... Resultado: concluíram, por exemplo, que não adianta
encher as cadeias, porque a prisão não recupera. Claro que não recupera! Mas a
impunidade por acaso recupera? Ficam como baratas tontas — epa! digo, humanos
tontos! — não sabendo o que fazer. E malandramente dão um jeitinho de conciliar
o velho desejo de retirar de circulação o asqueroso bandido, ao mesmo tempo que
podem se elogiar, dizendo que lhe fazem um grande bem, “reeducando-o”. Eu,
quando estiver mandando nessa joça, já sei como vou resolver o problema da
criminalidade: pena de morte imediata para toda barata cometendo um crime
grave. Será um exemplo e tanto. Não gastaremos com processos, papeladas,
cadeias e principalmente comida. Para pequenas infrações torturaremos o cara
mantendo-o alguns dias num lugar doentiamente asseado. Para ele será a morte!
Nunca mais vai querer errar de novo! Do contrário volta para a limpeza.
— Caramba! Que finura! A limpeza! Quando quer, meu querido, você sabe
ser mauzinho... Talvez fosse melhor matar logo de uma vez... Desculpe, meu bem,
sou contra torturas. Mas como vamos
matar os criminosos mais perversos, se não temos armas, dentes e nem mesmo
mãos?
— Amestraremos os ratos. Eles são astutos, mas burros. Há uma grande
diferença entre astúcia e inteligência. Eles só pensam em roer e fornicar. A
menos que também sofram uma mutação, como a nossa. Aí estaremos ferrados porque
eles têm um cérebro maior... e dentes... Aliás, já instruí nosso staff para me
informar sobre qualquer material radioativo encontrado na tubulação. Isolaremos
imediatamente a área porque, com a radiação, tudo pode acontecer. Se os ratos
ficarem como nós, adeus ao nosso milênio de glórias! Eles é que substituirão os
homens no domínio da Terra.
— Mas voltando ao novo restaurante da esquina, você precisava ver a
limpeza da cozinha! Tudo brilhando! Nenhuma sujeira capaz de...
— Para! Para! — ele a interrompeu aos gritos sapateando, tremendo de
ódio, amassando e jogando fora o papel higiênico manchado de chocolate. — Não
aguento mais esta sua conversa porcalhona, bem na hora da refeição! Quer me
fazer vomitar?!
— Chiii!... Precisava gritar desse jeito? Tá com nojinho da limpeza? Que
sensibilidade delicada... Parece uma mocinha...
— Olha lá como fala... — suas grandes antenas vibravam de indignação.
Nunca batera na esposa, mas estava prestes a fazer isso.
Kiti não se intimidou: — De tanto ler livros de humanos, tá ficando com
faniquitos de poeta, todo delicado, sensitivo de torre de marfim. Cuidado,
hein... Conheço um que virou a mão...
— Que livros você queria que eu lesse, sua burra? Barata, por acaso, já
tem editoras e indústria gráfica? Agora somos inteligentes, claro — tanto assim
que os humanos nem suspeitam, pois disfarçamos. Mas temos que, por enquanto,
haurir a única cultura disponível, a dos humanos, até que elaboremos a nossa,
própria, que será, claro, muito superior.
— Falei só pra te chatear... Porque você foi grosseiro. — Com as duas
grande antenas, nela especialmente graciosas, fez um agrado na antena do
marido, alisando-a, enquanto emitia feromônios que o excitaram. Mas ele se
dominou porque achava perigoso fazer sexo após lautas refeições.
— ... Amorzinho — ela indagou, meiga, — por que você lê tanto? Não acha
que exagera? Pode prejudicar a vista... E não temos ainda oculistas entre nós.
Por falar nisso, acho que você ficaria bacana usando óculos com armação de
tartaruga. Impossível ar mais intelectual! Você é meu pão embolorado, meu doce
de coco com validade vencida há mais de três anos. Tem muita pilantrinha
cascuda por aí me invejando, pensa que não sei?
— Leio porque, se houver algum cataclismo mundial, quero estar preparado
para organizar nossa espécie rumo ao milênio. Nós, baratas, não repetiremos os
erros dos humanos.
— Que erro, amorzinho? Desculpe, mas com ou sem erro eles estão por
cima... Estão milênios à nossa frente. Nossa mutação genética — graças à
bendita sujeira radioativa que jogam em qualquer lugar — é muito recente. Os
humanos nos esmagam de tudo quanto é jeito. Ou nos envenenam com aquelas
esguichadinhas mortais. Um dia, quase morri, te contei não? Por pouco você
estaria conversando agora com um fantasma. Acho até que restou sequela. Nunca
mais fui a mesma, uma sensação esquisita no baixo ventre... A dona da casa,
cafajesta promíscua — provavelmente vinha da farra porque estava com umas
enormes olheiras — mal acendeu a luz da cozinha e me viu ali, bem no meio,
estonteada pela claridade, correu para pegar um tubo de inseticida. A carrasca
não queria melecar a rica solinha... Nessa hora disparei em círculos, como um
busca-pé, até me lembrar de que o melhor seria escapar por baixo da porta que
dá para o quintal. Enquanto isso, a fera humana, esbaforida, rodopiando, com
medo de que eu subisse nela, sapateava uma dança guerreira, tentando esguichar
o veneno na minha direção. Felizmente, quase não me atingiu, mas, assim mesmo,
só com a neblina, senti cólicas na hora. Penso que abortei... Saiu tudo
misturado. Eles não erram, meu bem. Não adianta, o mundo é deles... Até hoje me
arrependo de não ter subido pelo meio das pernas dela, até o fim. Daria uma
mordidinha caprichada bem ali. Garanto que a vagabunda desmaiava de pavor!
— Quando digo errar, Kiti, refiro-me ao comportamento dos humanos com os
próprios humanos. Eles mesmos se eliminarão, seja com bomba, poluição ou
criminalidade nas ruas e bancos. Não precisamos interferir. É só esperar. Na
Argélia, alguns caras fanáticos ganharam mas não levaram uma eleição. Estão
degolando centenas de pessoas nas aldeias mais afastadas. Vítimas, inclusive
crianças, que em nada contribuíram para a ilegalidade política. Também estupram
mulheres jovens, antes de matar, porque ninguém é de ferro. E matam a
machadadas. Nossas primas argelinas é que se deliciam com esses humanos do capeta,
nossos preparadores do terreno.
— Com relação a nós — ele prosseguiu, porque sentia-se especialmente
inspirado — e aos ratos, por exemplo, esses canalhas resistentes, mas de visão
curta, que também nos atacam quando esfomeados, eles, humanos, são muito
eficientes... Bem, eficientes em termos, porque soube que no prédio do
Pentágono havia uma praga de milhares de baratas americanas, nas barbas deles,
exímios guerreiros de computador que são. Sim, os humanos sabem matar, mas,
felizmente para nós, odeiam-se mutuamente. Amam-se nos pequenos intervalos da
vida, mas, quando contrariados, odeiam-se. Basta discordar e o cara está
ferrado. Pai odeia filho e vice-versa. Uma beleza.
— Desculpe, mas não é bem assim... — ela sentia um prazer sutil quando
achava uma falha nos argumentos dele . — Alguns humanos não são agressivos nem
mesmo com nós. Semana passada, eu e mais umas cinquenta amigas estávamos
fofocando no teto da tubulação de esgoto da rua quando um trabalhador da rede
pública desceu até ali por uma escadinha. Vendo-nos a poucos centímetros de sua
cabeça, gritou para alguns colegas que estavam logo acima, no nível da rua: —
“Tudo bem, pessoal! Não há perigo!”. E começou a trabalhar na tubulação, sem
nos causar qualquer dano. Um santo! Fiquei muito comovida. Quase voei nos
lábios dele para lhe dar um beijo... Realmente os humanos são surpreendentes.
Nem sempre são maus.
Glutof sorriu, superior, divertido com a inocência da companheira: —
Então a lindinha pensou que ele te poupou porque gostou de você? Nada disso,
candura. Ele te deixou viva porque o fato de haver baratas na tubulação
significa que por ali não há gases tóxicos. Justamente quando não há baratas é
que existe o perigo. Se há, podem trabalhar sem susto. Só nos poupam quando
somos úteis, manjou?
— Caramba, eles não dão ponto sem nó... — Desconcertada, ela coçou a
primeira axila direita, como sempre fazia quando sentia-se ridicularizada. —
Como você sabe das coisas... Por que, com toda essa sabedoria, não organiza um
ataque em massa contra os humanos? Eles são medrosos. Comem muito e têm a vida
mansa. Já vi um homenzarrão pular como um macaco, apavorado, só porque havia
duas baratas dentro da camisa, que ele vestiu no escuro. Ou porque uma inocente
coleguinha nossa voou e entrou casualmente dentro da boca de um velho. Ele
praticava exercícios respiratórios, com a boca aberta, fazendo profundos
movimentos de inspiração. Foi realmente o beijo da morte. A pobrezinha foi
cuspida como se fosse uma coisa nojenta, e esmigalhada! O mais espantoso é que
o velho, em seguida, foi rezar! Pode?!
— Sei que o homem é medroso, mas tem a tecnologia da morte. Numa guerra,
seríamos derrotados. Ganharíamos umas mínimas escaramuças iniciais, dando
apenas alguns sustos. Voando, por exemplo, nos olhos, ou na boca, ou escondendo-nos
dentro das cuecas de alguns figurões, vibrando as asas perto do... você sabe
onde... Mas seria só isso, sustos, coisinhas. No máximo alguns enfartes porque
esses importantões, cheios de poder, pizza, lasanha e filé mignon estão com os
tubos... — como é que chamam, mesmo? Ah!, artérias! — igualmente cheios de
gordura. A natureza nos foi madrasta. Nem ferrão nós possuímos...
Glutof fez uma pausa involuntária. Estava emocionado com seus
pensamentos, quase chorando. Lamentou não estar sendo visto e ouvido, naquele
momento, por muitas baratas, porque a dor moral autêntica, na política, é coisa
rara. Sua eloquência, sincera e triste, estava sendo desperdiçada. Mas
precisava aproveitar o embalo. Quem sabe diria coisas interessantes. Por isso
prosseguiu:
— Se fosse possível uma mutação genética direcionada nesse sentido, dando-nos
armas naturais, por exemplo, veneno, como nas aranhas... Mas essas mutações
ocorrem sem nenhum controle. Agora nós temos apenas inteligência, mas você já
percebeu que nem todos. Estamos muito longe de manipular a engenharia genética.
Sem mãos, seres pequenos que somos, o que podemos fazer por enquanto? Apenas
pensar e nos organizar. E esperar que eles se matem, o que é quase certo. Para
os que gostam de ação, tiveram o IRA, o ETA, o Oriente Médio, eterna fonte de
ódio, guerra comercial entre os maiorais, etc.
Jamais chegarão, assim espero, a um acordo de convivência porque a
cobiça por terras, petróleo e poder não deixam. A paz não interessa, no fundo.
Todos aqueles chefões, terroristas e antiterroristas, não vão jamais se
conformar em retornar à vidinha pacata, sem brilho, chata, ganhando pouco,
batendo ponto em fábrica, escritório ou repartição. Iriam lá trocar uma vida
excitante, cheia de charme ideológico, dinheiro fácil e mulheres, por ofícios
tais como carteiro, cozinheiro, comerciário, comerciante, feirante, etc.? Uma
desmoralização!
— Mas, meu bem, alguns explodem junto com as bombas. Parecem idealistas.
— Certo, certo... mas só os tolinhos... Os intelectuais, os chefões, jamais
fazem isso. Soldado do terror, explode; general do terror não explode. Jamais!
A não ser de raiva! Afinal, “a causa” precisa de seus “potentes” cérebros.
Correto? Por outro lado, a ala oposta, que andou dispersa pelo mundo, imaginava
o quê? Que iriam retomar a antiga terra, a Palestina, milênios depois,
expulsando os locais de turbantes, colonizando e ficando com tudo, sem qualquer
reação? Não sei, eles que são humanos que se entendam. Ou melhor, que não se
entendam nunca! São nossos votos.
— Além disso — prosseguiu —, não esquecer a sacrossanta AIDS, néctar dos
deuses! É uma praga do bem, o nosso, que, espero, faça uma grande limpeza
porque somos a ela imunes. E as drogas, então, essa nossa aliada vingadora, que
quando pega não larga mais! Fracos como são, e sabem que o são, os palhaços
humanos ainda as experimentam, só para “conferir” e constatar depois que a
coisa era como diziam, vicia. Talvez para passarem malandramente à condição de
vítimas, coitadinhos, viciados. No fundo uma boa, pois aí todo mundo paparica
eles. Viciado não precisa trabalhar, nem estudar, nem fazer coisa alguma.
Precisa só continuar viciado. Um achado! E por falar em achado, eu já tomei meu
porre involuntário, pois, quando chega a polícia, a primeira coisa de que o
traficante se lembra é de jogar o pó branco na privada e dar a descarga. Sem a
mínima preocupação com a nossa saúde, pois vivemos no esgoto. Eu vi aquele pó
clarinho boiando e logo pensei que era açúcar. Meti a boca e chupei. Quando dei
por mim, estava fogueteando pelas paredes e desafiando ratões para sair no
braço.
— Não esqueçamos — ele
prosseguiu — a maravilhosa infecção hospitalar, um dos poucos segmentos em que
podemos colaborar pessoalmente para o êxito de nossa causa. Estamos organizando
cursinhos de orientação sobre como chupar a gaze infectada e em seguida
beliscar a comida dos doentes. Principalmente das criancinhas, porque é melhor
matar o inimigo no ovo. Enquanto as faxineiras fingirem que limpam o chão dos
hospitais e seus chefes fingirem que as fiscalizam — pois na verdade têm medo
delas, o receio de parecerem “autoritários” — as coisas irão às mil maravilhas.
Mas, voltando ao que dizia antes, nós, baratas, precisamos, acima de tudo, é
disfarçar a nossa recente inteligência. Contei o caso do Tico?
— Acho que não... Você fala tanto, meu bem, que eu às vezes fico
tonta...
— Em você isso é normal... O Tico é também uma barata, amigo meu. Foi um
dos primeiros mutantes. Mas em lugar de disfarçar, bancando o burro, cedeu à
tentação de se exibir. E acabou mal, claro. Uma noite, enveredou por uma longa
tubulação que não conhecia — ah, o apelo do desconhecido! — muito longa mesmo,
e desembocou num ralo da cela solitária de um presidiário. Quando o preso o
viu, teve uma ideia: — “Vou amestrar esta barata... De outro modo, enlouqueço.
Tenho ainda três anos para cumprir”.
Glutof prosseguiu : — Esse preso havia assassinado, a mulher pensando
que ela o traíra — e estava certo — mas depois pensou que estava enganado — e
não estava —, mas aí já era tarde. O sofrimento na cadeia tornou-se duplo
porque estava arrependido. Assim, pacientemente — já fora amestrador de cães —,
ensinou o Tico a escrever pensamentos famosos de grandes retardados, isto é, de
filósofos humanos. O Tico enfiava a perninha num tinteiro e tascava um
pensamento profundo. Às vezes, misturava as fontes, mas quem é que ia conferir?
O fato de uma barata escrever já era um fenômeno.
— Como é que esse tal de Tico se rebaixava tanto?! Filósofos humanos! Dá
até nojo!
— Por interesse, claro. O Tico logo aprendeu as frases acacianas, mas
disfarçava a sua rapidez no aprender porque cada vez que ele escrevia um
pensamento filosófico, ganhava uma guloseima. Assim, comilão como ele só,
esticou quanto pôde o seu aprendizado, fingindo assimilar com vagar. Não podia
exibir sua genialidade sendo uma barata. Ele era mais inteligente que seu
professor. Se ele já escrevesse tudo, de cara, só comeria uma única vez. E
nisso se passaram meses. Aí, como ainda lhe faltava muito tempo para sair, como
“reeducando” — outra estupidez porque na
cadeia ninguém se modifica para melhor, só para pior — ensinou Tico a dançar de
pé nas patas traseiras.
Glutof fez uma pausa, esfregando
umas pernas nas outras e prosseguiu: — O prisioneiro ensinou ao Tico algo espantoso: dançar o “cancã”,
igualzinho àquelas bailarinas francesas, dando enérgicas pernadas que muitas
vezes levavam o Tico ao chão. Afinal, nossas perninhas curtas não foram feitas
para o “Folies Bergère”. Se a natureza nos deu seis pernas, como se virar com
apenas duas? E o Tico, extremamente vaidoso, já por iniciativa própria,
sentindo-se o máximo, virava-se de costas para a plateia imaginária e fremia as
asas, empinando o traseiro, igualzinho às bailarinas que levantam a saia e
mostram o “bumbum”. Acho que o presidiário chegou a pensar que o Tico era uma
fêmea. E, terminada a exibição, Tico curvava-se em reverências, mandando
beijinhos para a plateia e gritando com voz afeminada, quase inaudível: — Je
vous aime! Je vous aime! Penso que, com um pouco mais de ensaio, o Tico
cambiava de sexo.
— Meu bem, desculpe
interromper. Estou preocupada com a hora... Você não acha que já devíamos estar
em casa? Daqui a pouco os ratos começam a acordar. Diga logo como terminou a
história de seu amigo.
— Terminou que, finda a pena, o preso deixou a cadeia, levando o Tico no
bolso do paletó, dentro de uma caixinha. Ia procurar um empresário. Contava
ficar rico porque jamais, jamais, em toda a história do show business, houve um
espetáculo semelhante. Ganharia rios de dinheiro. Mas, infelizmente, a coisa
não deu certo.
— Já sei, já sei! — Kiti se
antecipou, eufórica, batendo palmas. — O empresário tapeou o Tico!
— Não! Caramba! Como funciona a
tua mente! Que alegria torpe! Não, foi algo muito pior. O ex-presidiário fazia
um tempão que não tomava uma cerveja decente, bem geladinha. No presídio
conseguia, no máximo, uma “Maria Louca”, digna do nome porque, na sua
composição, entra até verniz. Assim, dirigiu-se a um bar a fim de se deliciar
com uma “loirinha”. Mas acabou bebendo quatro ou cinco copos. E não resistiu à
ideia de fazer uma pequena exibição. Tirou a caixinha do bolso, mandou o Tico
sair e o colocou em cima do balcão. Ia mandá-lo dançar e chiar uns trechinhos
da canção “La Vie en Rose”. Chamou o barman com um “psiu!” e, orgulhoso, meio
embriagado, indicou o Tico com o dedo, enquanto perguntava “Tá vendo?” Mas o
barman, um bronco, tão logo viu aquela barata cascuda no balcão, a esmagou com
um estrondoso tapa. Vê se pode... E assim, bestamente, morreu um grande
artista. Quando nós, do Comitê, soubemos do caso, baixamos instrução proibindo,
até segunda ordem, qualquer demonstração de inteligência na presença de
humanos.
— Que estória mais triste... Um mártir! E como reagiu o ex-presidiário?
— Pulou o balcão na hora e esganou o barman, chorando e gargalhando como
um louco. Foi o caso de reincidência criminal mais rápido da história da
Criminologia. Criminólogos, desconhecendo nossa mutação, gastaram rios de tinta
dissertando sobre o caso, até sugerindo possíveis ligações passionais e
freudianas entre um homem e uma barata, que simbolizaria a própria mãe. Tudo
consequência do isolamento brutal no regime carcerário. Fizeram até analogias
com um tal de Kafka, um maluco que escreveu besteiras sobre um cara que se
deitou como homem e acordou como barata, ou inseto. Como se fosse possível um
aperfeiçoamento tão súbito. Ninguém acreditou na estória do Tico de que a
barata dançava cancã e cantava em francês.
— Se dominarmos a Terra, você deveria, para homenagear esse herói,
instituir um “Prêmio Tico”, o equivalente ao Oscar humano. Eu mesmo gostaria de
concorrer. Adoro o palco, qualquer palco...
— Não é o seu caso, mas todo ator só pode ter mau caráter. Como é
possível passar a vida toda fingindo sentir o que não sente, sem ter um parafuso
frouxo, pelo menos no caráter?
— Estou começando a ficar zonza. Você é tão profundo que após uns dez
minutos, escutando-o, sinto um torpor... Vou dormir um pouco e depois assistir
um jornalzinho na televisão para me atualizar.
— Cuidado, não acredite muito em jornais! A imprensa também é ... — ele
se interrompeu porque viu que Kiti roncava suavemente.
Sentiu pena dela. Parecia tão tolinha e desamparada... Delicadamente a
despertou. Já tinha passado da hora de voltar.
Enlaçados, caminharam lentamente na direção do buraco embaixo da pia da
casa em que viviam. Sem perceber que dois ratões esfomeados, de olhos maus,
vinham logo atrás, na ponta dos pés, já salivando com as “tâmaras” que
consideravam no papo.
Kiti, mais leve, menos glutona, escapou milagrosamente do ataque, mas
perdeu duas pernas, uma antena e uma asa. E chorava, de luto, no dia seguinte,
no enterro do marido. Ou melhor, das duas coxinhas cabeludas e uma asa, o que
restou do grande líder, “Glutof, o Libertador”, que já ingressara na história.
Mas ela estava grávida e, logo, logo, todos aqueles projetos de heróis,
ainda dormindo nos ovos, nasceriam e substituiriam o pai na criação heroica de
uma nova civilização.
FIM
Observação:
Este meu conto, ou fábula, foi redigido cerca de dez anos atrás e publicado em meu antigo site.Como não foi difundido, dei uns pequenos retoques e agora o republico porque é uma espécie de súmula — gaiata, porém verdadeira —, da evolução do mundo, vista pelos mais pessimistas. Ou realistas.
FIM
Observação:
Este meu conto, ou fábula, foi redigido cerca de dez anos atrás e publicado em meu antigo site.Como não foi difundido, dei uns pequenos retoques e agora o republico porque é uma espécie de súmula — gaiata, porém verdadeira —, da evolução do mundo, vista pelos mais pessimistas. Ou realistas.