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(Sobre o “regalo” equino leiam o final do artigo)
No dia três de janeiro corrente tuitei: “O juiz de garantia, criado pela Lei 13.964/19, é um traiçoeiro "Cavalo de Troia" na luta contra os crimes do colarinho branco. Será um reizinho, anulando investigações, concedendo habeas corpus na fase de investigação, etc. Será muito mais poderoso que o juiz do processo. Enterrará a Lava Jato”.
Como no Twitter o espaço é restrito, sinto-me na obrigação de fundamentar minha opinião, como mero cidadão, alertando que na redação da lei que criou o “juiz de garantia” ficou comprovada a intenção de “escorregar”— para dentro de uma lei que deveria ser “contra o crime” —, algumas facilidades “garantistas” que visam, no fundo, proteger os autores desses mesmos crimes, quando descobertos.
Concordo com o velho ditado popular que não se mexe em time que está ganhando. A Lava Jato até o momento vinha ganhando o “primeiro tempo” da luta contra o tenaz “clube da corrupção”, recuperando milhões de dinheiro público desviado.
Isso nunca foi conseguido antes no Brasil. Significou risco de vida, ou pelo menos de reputação, para quem primeiro —, Sérgio Moro —, se atreveu a usar as armas jurídicas imprescindíveis para barrar um tipo de criminalidade só vencível com alguma audácia jurídica.
Considerando a enorme dificuldade em combater as complexas transações bancárias e informáticas que facilitam os crimes financeiros — exigindo meses de investigação, até no Exterior — seria necessário que o juiz de tais processos mantivesse provisoriamente presos os investigados para que revelassem quando, onde, o que, quanto e quem participou dos esquemas de enriquecimento, rápido ou mensal, mas sempre vultoso. Um pensador antigo, não me lembro qual, já ponderou, séculos atrás, que “quem quiser enriquecer em um dia será enforcado em um ano”.
O juiz de garantia, tal como configurado na lei 13.964/19, funcionará, na prática — caso ele seja um petista apaixonado, mesmo não sendo corrupto —, como uma espécie de advogado de defesa dos infratores de alto gabarito. “Cortará as asas” dos agentes da lei, do delegado e do promotor — profissionalmente interessados em descobrir a realidade fática de crimes — e não moverá um dedo para corrigir as eventuais omissões de delegados temerosos de serem removidos para lugares distantes, caso se mostrem “investigativos demais”.
Essa lei só se preocupa em cortar excessos investigativos, mas nada prevê contra omissões — involuntárias ou propositais —, que só protegem o investigado. E o juiz que vai processar e julgar o caso sentir-se-á travado, porque não pode, legalmente, interferir na atuação omissa ou voluntária do colega de profissão que está apenas arruinando uma investigação. Seria malvisto para o juiz que vai julgar a acusação, na fase judicial, ficar o tempo todo enviando mensagens à cúpula judiciária criticando um colega. O mesmo ocorre com o promotor que estiver funcionando no inquérito. Se ele quiser pressionar o juiz “garantista” para que faça direito o seu trabalho, que colha tal prova antes que ela desapareça, como resolver o impasse entre esse juiz e o promotor? Essas divergências sobre busca das provas no inquérito criará uma série de conflitos que só irão retardar um procedimento já demorado demais com as atuais “quatro” instâncias de julgamento.
Quem redigiu — ou melhor, alterou —, a Lei 13.964/19 parece não entender qual é a função do inquérito policial. O inquérito não é uma investigação concebida para ser “simpática”, “socialite”, defensora de distintos cidadãos suspeitos de cometeram crimes, em especial os financeiros. Não pretende fazer justiça total antes que o caso chegue à fase judicial. Atualmente, antes da aplicação dessa estranha lei, quando no inquérito fica comprovado que o suspeito é evidentemente inocente, vítima de uma calúnia, por exemplo, o delegado reconhece isso e o suspeito nem chega a se tornar réu.
O inquérito policial é, por natureza, unilateral, “desconfiado”, “bisbilhoteiro”, sem medo de investigar ou desagradar. Nele não há espaço para funcionar como se fosse um prévio e exaustivo “contraditório administrativo” antes do contraditório propriamente dito, o judicial, que só existe após o recebimento da denúncia. Se no inquérito houve abusos, violências, falsidades, etc., esses abusos serão discutidos e corrigidos na fase judicial, com amplo contraditório. Não há “contraditório” em inquérito. Lembre-se ao leigo que não é possível, legalmente, condenar alguém só com as “provas” contidas no inquérito. Se neste houver alguma prova contra o indiciado — não confirmada depois, em juízo —, o réu não será prejudicado por ela.
No inquérito — mesmo hoje, antes da lei em exame estar sendo aplicada —, se houve espancamentos, tortura física ou mental, pau de arara, privação do sono, de alimentação, ou tratamento desumano, a justiça intervém, e pode prender o policial, o delegado ou o próprio promotor, caso tenha participado do evidente abuso.
O Min. Gilmar Mendes, notório inimigo da Lava Jato, argumentou em um julgamento visto na TV, que Sérgio Moro, quando juiz, mandava prender o investigado para coagi-lo a delatar seus cúmplices. Isso, segundo Gilmar, seria uma forma de “tortura”.
É descabida, data vênia, a comparação do ministro porque quem aparentemente desviou milhões do governo automaticamente “torturou” número indeterminado de pessoas, embora sua intenção criminosa tenha sido apenas enriquecer ilicitamente. Poderia, no máximo, tal prisão cautelar — censurada por Gilmar Mendes —, configurar um “constrangimento”, fruto, porém, de uma situação causada pelo próprio infrator, que não deveria, por mera cobiça, ter desviado enormes recursos financeiros que, se aplicados no lugar certo, alimentaria melhor as crianças pobres, ampliaria o saneamento básico, a segurança, a instrução pública e o padrão de vida dos menos favorecidos.
Uma vida de pobreza, com humilhações diárias, já é, por si só, uma forma de “tortura” silenciosa. “Tortura” que pode resultar até em morte, por exemplo, quando um doente, dispondo apenas do SUS para se tratar, não é atendido com a necessária rapidez, por escassez de médicos, e por isso morre antes de ser medicado. Houve, neste caso, uma espécie de “tortura indireta” com resultado morte, causada pela carência de recursos, desviados por quem se apoderou do dinheiro público. Lembre-se, sempre, que a Lava Jato só conseguiu as condenações mais importantes porque conseguiu delações de investigados presos, delações comprovadas em juízo, segundos os magistrados que julgaram os casos em duas ou três instâncias.
É quase impossível descobrir a ponta do fio da meada sem a ajuda de algum participante, do esquema criminoso. Foi assim na Itália, na luta contra a Máfia, e no Brasil, na luta contra o Mensalão e o Petrolão.
O dinheiro furtado dá mil voltas, no país e no exterior, fugindo da luz em grande velocidade e o sigilo bancário é protegido pela lei. Os “laranjas” às vezes nem sabem direito o que têm nos bancos. O fatiamento do cobiçado “salame” monetário, para não aparecer na conta corrente, obriga o transporte de malas de cédulas e a polícia não tem como abrir toda mala que vê pela frente. Quem afirma, a sério, que a confissão e a delação só podem valer, judicialmente quando resultam do santo arrependimento — sem a mínima pressão do medo —, vive no mundo da lua. Quando o enriquecimento ilícito não é descoberto, ninguém se arrepende. Pelo contrário, quer mais. É uma “doença”, como já admitiu um ex-governador do Rio de Janeiro, condenado a centenas de anos.
Uma coisa é certa: se não tivesse havido prisões cautelares — provisórias e preventivas, na Lava Jato, possibilitadas pelas “delações premiadas”, o dinheiro desviado não teria sido devolvido. E o Brasil continuaria como o campeão mundial da impunidade, refúgio tão comum que até figurava, poucos anos atrás, nos roteiros cinematográficos como sinônimo de paraíso.
A Lava Jato, ao tempo de Moro, foi muito criticada porque fazia uma condução coercitiva, não precedida de uma intimação para o suspeito comparecer à delegacia em determinada data e hora para prestar “esclarecimentos”.
Sejamos realistas. Se sempre assim agisse a polícia, apenas intimando para futuro depoimento, é claro que o intimado, sabendo-se infrator, imediatamente procuraria um advogado criminalista que logo o orientaria sobre como melhor proceder. Fugir? Permanecer em silêncio? Destruir provas? Jogar toda a culpa em outra pessoa?
Lembre-se que a missão essencial do criminalista é livrar o cliente de qualquer punição. Se isso não for possível, amenizá-la. Não tem qualquer compromisso com a verdade. Se necessário, pode inventar álibis. Tudo isso é normal na profissão, em todo o planeta. Já o delegado, o promotor e o juiz, têm uma missão institucional diferente: a busca da verdade. Delegados, promotores e juízes não ganham um “bônus” financeiro quando condenam alguém. Já o advogado ganha a vida favorecendo seus clientes, claro. Só buscam a verdade se estão convictos de que o cliente é inocente, o que é mais raro. Se só perde causas, com a mania de não querer mentir, terá logo que mudar de profissão.
Em suma, se houve eventualmente provas falsas, na fase do inquérito, essa injustiça será corrigida em juízo. Ela não se sustentará, golpeada pelo contraditório, na primeira ou na segunda instância, onde termina o exame da matéria de fato. Daí a necessidade de prestigiar a condenação de segunda instância.
O leitor pode alegar que tanto o delegado quanto o promotor e o juiz podem, eventualmente, estar interessados apenas em, prejudicar um acusado sabendo que ele é inocente. Se essa anomalia ocorrer existe a segunda instância, com mais de um juiz para julgar o recurso. Não é possível imaginar que toda a magistratura esteja combinada para prejudicar pessoas inocentes.
A vigência da Lei 13.964/19, no item juiz de garantia, é um retrocesso. Provocará imenso retardamento e confusão nos procedimentos criminais. Criará uma espécie de “5a. Instância”, com a peculiaridade aberrante de ser a primeira dos “cinco degraus” de julgamento.
Na verdade, o juiz de garantia pode se tornar o primeiro e único degrau de julgamento, dispensando os outros quatros, tradicionais, porque, não havendo um inquérito bem feito, não haverá sequer denúncia. Morre tudo antes de ser examinado pelo poder judiciário.
Por outro lado, se o juiz de garantia for eventualmente severo e considerar que o delegado e o promotor são preguiçosos, e apenas “fingem investigar”, pretendendo — ele, o juiz de garantia — um aprofundamento da investigação, esse juiz não poderá tomar diligências para corrigir a omissão do delegado e do promotor, porque diz o Art. 3º-A da Lei 13.964/10 que
“O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Isto é, se o delegado e o promotor são omissos, o juiz de garantia não pode colher prova contra o indiciado, por sua própria iniciativa, suprindo a inércia daqueles dois. Como se vê, a cobertura de proteção do investigado, nessa lei, é total, quer o delegado seja muito severo, quer seja omisso.
Outro imenso poder conferido ao juiz de garantia está na possibilidade dele
“ IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento”. “Fundamento razoável” é muito vago. Em mãos erradas, monocráticas, com convicções políticas influindo na profissão, poderá gerar divergências que precisarão da solução de um terceiro, que certamente não será do juiz do processo judicial. Mais demora para terminar um processo criminal já muito longo antes da referida lei.
Para arrematar a demonstração da confusão dessa Lei 13.964/19, mencione-se que, segundo ela, cabe ao juiz de garantia, no Art. 3ºB, item XIV,
“decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código”.
Hein? Pela mais elementar lógica, caberia a uma outra pessoa, ao juiz do processo judicial, receber ou rejeitar a denúncia, não ao juiz de garantia que, é claro, sempre acharia correta sua própria atuação quando a supervisionava o inquérito.
O juiz de garantia tem, nessa lei, tantas funções, tanto poder, que é inadequado dizer que ele apenas visa coibir excessos. Ele é o excesso em pessoa. Tem o poder de cortar abusos do investigar demais e do investigar de menos. Torna-se uma espécie de instância única, podendo gerar discordâncias entre juiz e promotor que terão a forma de recursos judiciais e que levarão talvez anos para serem solucionados antes da persecução penal entrar na fase judicial.
Em suma, a justiça, em todos os países, deve ser e parecer severa. Não só na letra, na legislação, como na sua efetividade, nos tribunais. Se a lei é aparentemente “dura” mas na prática, é vista como “mole”, omissa, confusa, a ausência de medo cresce e todos os crimes prosperam. É o que acontecia no velho oeste americano, quando enforcavam ladrões de cavalos não por causa do caráter dos ladrões, mas para que os cavalos — único meio de transporte nas vastas pradarias — não fossem roubados.
E por falar em cavalo, para os jovens que nada sabem sobre o tal “Cavalo de Troia” — ficção ou realidade? —, basta dizer que houve uma guerra que durou cerca de dez anos — entre 1.300 e 1.200 a.C., entre Esparta e a cidade de Troia, por causa de uma princesa, Helena, de irresistível beleza, esposa do rei Menelau, de Esparta.
Ela foi raptada ou seduzida por um príncipe troiano, de nome Páris. Os soldados de Esparta tentavam invadir Troia — hoje está em solo turco —, para recuperar a sequestrada, mas não conseguiam por causa dos altos muros que rodeavam a cidade. Até que um grego esperto mandou construir um enorme cavalo de madeira no qual havia partes ocas, onde ficaram escondidos soldados espartanos. O cavalão foi colocado perto dos altos portões da entrada da cidade e os espartanos se retiraram. Aparentemente.
Os troianos, cansados do longo assédio, pensaram que o cavalo era uma oferta de paz. Aliviados, puxaram o “presente” para o interior da cidade. Era o que queriam os espartanos. Na madrugada, saíram dos esconderijos, mataram as sentinelas, abriram as portas da cidade e os espartanos não só ganharam a guerra como também queimaram a cidade e mataram os homens.
Essa estratégia, descrita por Homero, simboliza a astúcia de quem presenteia, aparentando amizade, mas com malévolas intenções. É o caso do “Juiz de garantia”, uma lei que aparenta maior rigor contra o crime em geral, mas, na realidade — queiram ou não seus defensores — protege a criminalidade do colarinho branco, inclusive pelo grande aumento da demora.
Alguém pode perguntar: — Por que os gregos escolheram, como presente, um cavalo e não um burro, ou hipopótamo, por exemplo? Porque os troianos tinham a reputação de serem especialistas em domar cavalos. Os gregos utilizaram o ponto fraco do seu alvo, a novidade de agradar um inimigo simulando ser amigo, como aconteceu com a implantação do juiz de garantia, bom apenas em tese, mas um desastre na presente conjuntura, infestada de hackers que só trabalham para um dos lados. A prova ilícita nada vale, juridicamente, mas tem um efeito psicológico concreto superior à cláusula pétrea.
Desculpem o bom humor, depois de tanta seriedade.
(26/01/2020)
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