Na edição especial
da revista “Época”, de 9-5-2011 — com ênfase no futuro do terrorismo após a morte de Bin Laden —, que
só li dias atrás, há uma interessante entrevista do cartunista dinamarquês, Kurt
Westergaard, jurado de morte pelo Islã porque desenhou uma caricatura de Maomé
com o turbante recheado de bombas.
Dois aspectos
chamaram minha atenção nessa entrevista: o “quarto do pânico”, que o salvou da
morte, em sua residência, e a convicção — que parece inalterável — do entrevistado
de que “Precisamos aceitar que existem pessoas no mundo que não gostam de
nossos valores nem os aceitam”. Evidentemente referia-se aos muçulmanos, quando
fanáticos — porque há também seguidores de Maomé que são capazes de ouvir objeções
sem recorrer à violência. E como toda ideia sugere outra, imaginei o uso do tal
“quarto” também como defesa contra a criminalidade comum, que não para de
crescer.
Presumo que quase
todos já sabem o que significa um “quarto do pânico”. Em alguns filmes de
ficção esses “bunkers” domésticos já apareceram na tela e, certamente,
despertaram curiosidade. Pessoas abonadas, preocupadas com sua segurança, devem
ter se perguntado: “Não seria essa uma boa ideia para minha casa, ou
apartamento? Não me sinto segura em parte alguma”.
Essencialmente, o
que é um “quarto do pânico”? É um local, preferencialmente o banheiro — por
razões óbvias, considerando que é impossível prever, com exatidão, por quanto
tempo as pessoas da casa ficarão nele refugiadas.
Marginais
usualmente não conseguem penetrar nos lares, defendidos por muros altos,
fechaduras, grades e outras proteções. Todavia, quando os bandidos conseguem
ultrapassar tais barreiras e já estão dentro do lar — sem ainda dominar os
moradores—, onde se esconder e de lá pedir socorro à polícia?
Tais refúgios representam
forte proteção ao morador —, isto é, quando houve tempo suficiente para correr
e fechar a porta, geralmente de aço. Para arrombar essa porta, só com tremenda
explosão que praticamente destruiria a casa inteira e não serviriam aos
propósitos dos bandidos, que evitam chamar a atenção da vizinhança. Dentro do
“quarto” existem celulares, telefones fixos, aparelhos de televisão, computadores,
monitores ligados a câmeras internas que mostram o que acontece em outras
partes da casa e mesmo do lado de fora. Além disso, lá ficam armazenados
alimentos e bebidas para eventual longa espera de socorro policial. Enfim, todo
o conforto necessário aos moradores, até mesmo por vários dias, deve estar
presente no “cofre forte de humanos”, enquanto cresce, simultaneamente, a
sensação de perigo para os invasores da residência, presumindo que o pessoal da
casa já chamou a polícia. Obviamente, quanto maior a segurança e conforto do
“bunker”, maior o seu custo.
Considerando-se
que, em matéria de segurança pública, no Brasil, é mais previsível que as
coisas piorem, em vez de melhorar — porque os governos vivem travados pelo medo de parecerem “duros
demais” — é previsível que comecem a surgir,
aqui e ali, firmas especializadas em instalar “quartos do pânico”, como
aconteceu com a ideia dos carros blindados, cada vez mais procurados por
pessoas convencidas da incapacidade das autoridades em garantir a segurança nas
ruas.
A progressão da
criminalidade generalizada, cada vez mais solta, é fácil de constatar. Nas
pequenas cidades do interior, até poucas décadas atrás, muitos moradores nem
trancavam a porta da rua durante a noite. Depois, houve necessidade de trancar
bem portas e janelas, tanto de dia quanto de noite. Isso revelando-se
insuficiente, foi necessário colocar grades, no portão, janelas e mesmo em
algumas portas, transformando as grandes cidades em presídios excêntricos em
que os moradores são os “reclusos”.
Isso não bastando,
as firmas de segurança atenderam a uma exigência do mercado, instalando alarmes
contra invasões de residências e empresas em geral. Isso, porém, ainda não bastou.
Os automóveis passaram a ser roubados quando o motorista aguarda a abertura de
sinal nos cruzamentos. O que fazer para evitar o perigo de ser de ser assaltado
quando o sinal de tráfego está no vermelho?
Surgiu então a
fase do carro blindado. Principalmente porque o perigo não está tanto na subtração
do veículo, pois muitos deles estão no seguro. O maior perigo está na
possibilidade do carro ser levado com as pessoas que estão em seu interior.
Principalmente se forem mulheres e crianças. O medo do estupro ronda... E o
assalto pode também se transformar em sequestro, com saques em caixas
eletrônicos, além do cárcere privado com exigência de grandes somas.
Um grande amigo
meu, hoje idoso, quando lhe perguntei se nunca houve tentativa de assalto
visando roubar o belo “carrão” dele em que estávamos conversando, ele me
respondeu que houve, sim, uma tentativa. Ele estava então no banco de trás e o
motorista aguardava a abertura do sinal. O ladrão deu umas pancadinhas com o
cano do revólver no vidro da janela do motorista, mandando que ele abaixasse o
vidro. O motorista, imperturbável, disse simplesmente que não iria abrir. Aí o
ladrão perguntou: —“Esse carro é blindado?”.
O motorista disse que sim e o bandido se afastou sem efetuar disparo.
Certamente, pelo som das pancadinhas no vidro reforçado o meliante percebeu que
o carro era realmente blindado. Se ele disparasse, a bala não penetraria no
interior do veículo mas o choque contra o vidro — capaz de resistir a tiros de
pistola de alto impacto — provocaria estilhaços que iriam ferir o próprio
assaltante, certamente um conhecedor do assunto.
Falta, agora, “progredir”
para “sala do pânico”, pelo menos para pessoas de grandes recursos financeiros.
Não que a classe média não queira também “bunkers” domésticos. O problema está
no gasto excessivo e na pouca probabilidade de que venha a precisar dele um
dia.
Na entrevista
referida na abertura deste artigo, o chargista dinamarquês conta que em razão
da sentença de morte decretada pelos islamista, o governo dinamarquês instalou
um posto policial em frente da sua residência, no subúrbio de Aarhus, na
Dinamarca. Além disso, mantém dois guarda-costas que estão sempre próximos
quando sai de casa. Isso, no entanto, não impediu que em um determinado dia um
terrorista invadisse seu lar no momento exato em que o chargista deixava na
sala uma neta de cinco anos e ia ao banheiro, transformado em “casa do pânico”.
Mal entrou, ouviu o ruído de uma janela sendo quebrada. De imediato percebeu
que era o matador que vinha executar a sentença de morte. O caricaturista fechou
imediatamente a porta de aço mas logo depois preocupou-se com a sorte da neta.
Aí lembrou-se de que a segurança dinamarquesa já o instruíra no sentido de que
os “terroristas não fazem mal às pessoas que não são alvo”. Isso o tranquilizou
e depois, tudo terminado, verificou que era verdade, porque o terrorista, com
relação à criança, apenas gritou “Não tenha medo!”
O terrorista, frustrado,
não conseguindo penetrar no “quarto do pânico”
— ou banheiro, no caso —, quebrou o computador, a televisão e os quadros
da sala. Ao sair, a polícia o esperava, atirando nas mãos e joelhos. Certamente
para poder depois interrogá-lo. Seria mais útil vivo do que morto.
Pelo conjunto da
entrevista percebe-se que Kurt Westergaard é homem valente. Um artista de temperamento
forte. Tanto assim que, segundo disse, pensou em lutar com o terrorista armado
de machado e faca, só não o fazendo porque isso causaria um banho de sangue na
presença da netinha. Além disso, sendo um homem de 75 anos, seria praticamente
suicídio enfrentar um jovem naquelas condições e decidido a mata-lo, mesmo
sendo morto em seguida. Essas missões são também suicidas, se necessário.
O único reparo que
posso fazer contra o tenaz caricaturista — disposto a nunca ceder em suas
convicções em favor da irrestrita liberdade de crítica —, é que ele não tem uma
compreensão plena da força de uma educação religiosa e tendenciosa — impregnada
de fanatismo —, inculcada desde a mais tenra idade nas crianças, como ocorre em
alguns governos muçulmanos.
Se existisse um
aparelho — semelhante àqueles com os quais é possível medir a pressão arterial
—, capaz de medir o grau de convicção sincera, embora fanática, de uma pessoa,
tenha a certeza, leitor, de que o tal aparelho diria, no mostrador, que o jovem
que queria matar o chargista estava convicto que agia moralmente certo. Não
fazia isso por dinheiro, sexo, ou qualquer outro interesse subalterno. Acreditava
obedecer ao desejo de seu deus, conforme
escrito em um livro que, para ele é santo, o Alcorão. Assim como o cristão
considera a Bíblica um livro santo. Enfim, era um homem profundamente
religioso. Tanto assim que não causou o menor dano à neta do dinamarquês.
Westergaard, que
confessa-se ateu na entrevista e foi contrário à invasão do Afeganistão e do
Iraque, em nenhum momento mostra-se otimista quanto à mudança de mentalidade do
mundo muçulmano, com sua conhecida intolerância. Pelo modo como ele se
expressou na entrevista, não acredita que essa intolerância — em um mundo com mais de um
bilhão de muçulmanos — vá desaparecer. Nesse ponto parece-me estar redondamente
equivocado. Pode e vai desaparecer se o Ocidente agir da maneira certa.
O fanatismo, a
intolerância, é um fenômeno psicológico, estimulado por um grupo de pessoas
muito influentes nos espaços geográficos que ocupam e dominam. Poucas religiões
escaparam das garras do fanatismo induzido. O próprio Cristianismo já passou
por isso, quando queimava hereges e bruxas na fogueira. À medida, porém, que os
governos vão se transferindo, via eleições, para as mãos de leigos — com menor
controle do pensamento —, a comunicação entre as pessoas, a troca de ideias, e
a difusão das informações científicas vão fortalecendo o espírito crítico, comparador,
questionador, que mina a permanência de ideias intolerantes e geralmente
erradas. Dizem que os jesuítas garantiam que se pudessem doutrinar uma criança
a partir de tenra idade, mantendo-a sob sua orientação religiosa até os sete ou
oito anos, essa criança seria cristã pelo resto da vida. É o que acontece nos
países islâmicos, o que explica a temeridade de muitos jovens que envolvem seus
corpos com explosivos, dispostos a se sacrificarem por uma causa que consideram
justa e até mesmo divina.
O que as potências
ocidentais precisam fazer — e já fazem, mas muito lentamente — é adotar uma
política que facilite, às populações muçulmanas, o acesso aos telefones
celulares, tablets e outras formas assemelhadas de comunicação social,
considerada a causa principal da “primavera árabe”. Se isso for feito durante
uma geração desaparecerá a predominância do fanatismo. Se Westergaard cuidar da
saúde e estiver vivo aos 95, certamente constatará que o simples decurso do
tempo, mais o acesso fácil às tecnologias da informação e comunicação
enfraquecerá o fanatismo, porque todo os povos, árabes inclusive, têm uma
natureza humana assemelhada.
Não será com arrogância,
ameaças, assassinatos e ocupações que se anulará a fatia intolerante do
islamismo atual. Os jovens terroristas são uma espécie de vítimas de seus
preceptores religiosos, que moldaram seus espíritos para uma obediência cega a
comportamentos hoje absurdos. Lembre-se, por exemplo, que o apedrejamento, até
a morte, de adúlteras era considerado um castigo perfeitamente correto no Velho
Testamento, obedecido pelos judeus. Lembremo-nos da frase de Cristo com sua
repreensão implícita de que “quem não tiver pecado, que atire a primeira
pedra...”.
Com a diáspora, os
judeus, espalhados pelo mundo, sofreram perseguições e humilhações mas, tendo
que se adaptar a novas duras realidades, novas línguas e costumes, esse involuntário
“banho” de comparações foi aperfeiçoando sua visão do mundo, dando-lhes uma vantagem
intelectual que não teriam se tivesse permanecido sempre na Palestina,
plantando oliveiras e criando cabras.
A solução correta
para o “choque de civilizações” está na difusão da informação, na separação
entre religião e governo e na correção — já! — de algumas gritantes injustiças
cometidas contra os palestinos. Não será
com ameaças e truculências que desaparecerá o terrorismo de origem religiosa.
Pessoas, grupos de pessoas e mesmo nações inteiras, “tomam as dores” dos
palestinos e o resultado final do processo pode ser um conflito generalizado no
Oriente Médio, envolvendo Israel, que tanto poderá, depois, se expandir quanto
encolher, ou quase desaparecer.
O grande “problema”,
pouco mencionado, é que, se adotada, pelo Ocidente, uma política mais inteligente
e tolerante da mentalidade muçulmana, a diminuição do risco de novos conflitos
armados trará forte prejuízo à indústria armamentista, que subsiste e prospera
à custa do medo e da desconfiança. Quanto mais paz no mundo, maior o risco de
falências no setor, desemprego e queda na arrecadação de tributos. E existe algum
chefe de governo, hoje, em país desenvolvido, querendo mais problemas na sua
economia?
O planeta está
moralmente doente, há séculos, e ainda não percebeu. Aliás, uns poucos
perceberam, mas o remédio é amargo demais.
(3-2-2013)