Não sei onde os contistas, no geral, procuram inspiração para suas estórias. De minha parte, o jornal, lido pela manhã, me abastece com muito mais material do que posso aproveitar.
Isso porque a vida continuamente
forja incidentes que nenhum escritor, por mais imaginativo que seja, teria a
audácia de lançar no papel.
Não que falte aos ficcionistas
suficiente imaginação. Usualmente têm-na até em excesso. Junte-se todo o
delírio imaginativo de um asilo de loucos furiosos e a soma ficará muito aquém
do imaginário de um único escrevinhador. O problema está na preocupação com a
verossimilhança.
Precavido com a possibilidade de
afrontar a inteligência do leitor, possivelmente mais inteligente do que o
escritor, apenas não tendo paciência para cansar o traseiro escrevendo, por
exemplo, um romance, o ficcionista não se arrisca a lançar no papel situações
aberrantes, criadas pela sua imaginação.
Já a vida real não está nem aí.
Desenrola-se com a mais altiva indiferença, nem um pouco preocupada se vão, ou
não, acreditar nos seus caprichosos movimentos. Bocejando, a vida simplesmente
acontece.
De minha parte e outros, igualmente
comodistas, o grande truque da chamada “inspiração” — artigo hoje quase
dispensável, tal o acúmulo de estímulos que chegam de toda parte — está em
agarrar o fato real, dramático ou pitoresco, relatado pelo obscuro repórter —
que, por justiça, mereceria parte dos direitos autorais — e dar ao relato dele
uma “ajeitada” embelezadora. Ou “banho de loja”, no linguajar dos vendedores de
carros usados — outra categoria profissional com a qual toda cautela é pouca.
Sem preocupação quanto à possível rejeição dos leitores mais críticos e
sabidinhos. Afinal, se o fato básico realmente ocorreu, embora inacreditável,
pode o autor permanecer tranquilo, não obstante a previsível chuva de
impropérios e perdigotos, felizmente cuspidos em sua ausência. Em resposta dirá apenas um “É inacreditável,
claro, mas é a própria vida. Apenas carreguei nas cores”.
Um ficcionista pode, por exemplo,
necessitando reduzir o elenco de personagens, descrever a cena em que uma cobra
pica o pé de uma moça. Convém que ela seja linda porque escritores e leitores
jovens não gostam de gastar tinta e tempo com gente feia sofrendo os efeitos do
veneno. A jovem morrerá com maior ou menor estilo, talvez nas exageradas
“vascas da agonia” — que já foi uma imagem forte, muito requisitada, embora por
demais produtoras de saliva. Ou até mesmo não morrer, apenas passando perto, se
o autor subitamente se lembrar de que ainda pode precisar da personagem alguns
capítulos mais à frente. “Depois eu mato ela”. Mas nenhum escritor teria a
coragem de ir tão longe dizendo, por exemplo, no caso da cobra, que quem
morreu, após a picada, foi a cobra, não a linda moça. Pois foi o que ocorreu, na
vida real segundo um jornal —, quando uma serpente caiu na besteira de, na zona
rural, morder o calcanhar de uma baiana vigorosa que saiu ilesa, aos pinotes,
enquanto a cobra desencarnava. Talvez morta de susto ofídico e arrependimento;
não pela maldade da picada, mas pela burrice na seleção do alvo.
É claro que notícias assim — “Cobra
morre após picar o pé de uma mulher, que sobrevive” —, geralmente muito
sumárias, merecem ser lidas com alguma reserva. O repórter se interessa apenas
pela síntese intrigante. Não esmiuça os fatos. No caso da cobra, pode ser que o
pavor da mulher ao sentir-se picada tenha feito a mulher saltar e sapatear,
numa espécie de dança guerreira. Sendo, talvez, muito pesada — o jornal não
esclarecia — aquele bate-estaca humano, com mais de noventa quilos, mais a
velocidade da descida do pinote —, desabando em cima da frágil espinha da
tentadora de Eva, possivelmente explicasse melhor a “causa mortis” do ofídio.
Mas não, o repórter apenas conta o produto final: foi só a cobra que morreu
após a picada. Induzindo o leitor a pensar que o veneno da mulher era muito
mais forte. Claro que isso acontece, às vezes, com algumas beldades perigosas, mas
não se pode generalizar.
Outra fonte excelente de ficção,
também emergente da vida real, está na memória dos velhos. E não se
impressionem, os moços, com a maior lentidão das anosas mentes porque, como
dizia o também idoso – por isso suspeito – Marquês de Maricá: “ A memória dos
velhos é menos pronta porque seu arquivo é mais extenso”. Admitamos que uma
parte da marcha lenta cerebral seja devida às condições das artérias, entupidas
com excesso de pizzas, torresmos e feijoadas. Mas não se pode minimizar que,
tendo o idoso visto muito, é natural que demore, mais que o jovem, a localizar
aquela determinada ficha mental, entre tantas amontoadas na gaveta cerebral.
Nesses velhinhos aposentados, tão tranquilos
— refiro-me aos mais abonados, ou amparados pelos filhos, porque os que
dependem só do INSS contorcem-se na corda bamba — existem verdadeiros tesouros
de recordações, com registros de fatos que nenhum escritor, mesmo beirando a
loucura, seria capaz de conceber.
Para dar um pequeno exemplo,
transcreverei aqui o que me foi contado por um velho cearense, com quase
noventa anos mas perfeitamente lúcido.
Dizia-me ele que, quando menino, no Ceará,
havia um cidadão que ganhava seu pão cobrando, presencialmente, velhas dívidas.
Credores, cansados de cobrar, sem êxito, seus devedores, contratavam esse
cidadão, um especialista, que ficava com um combinado percentual do que
conseguia recuperar do devedor. Era, enfim, um “cobrador” e tinha um apelido,
“Casaca de Urubu”, isso porque trajava, nas suas cobranças, uma espécie de
fraque velho de cor preta, fosse qual fosse o calor nordestino.
Não existindo, então, um sistema de protesto
de títulos, o Casaca de Urubu quando parava na casa de alguém isto significava
que esse alguém era um devedor que não pagava suas dívidas. Por isso, era
temido, não por ser violento, mas porque ninguém quer ficar com fama de
caloteiro. Sua casaca funcionava como uma espécie de farda, ou uniforme de
cobrança, porque as pessoas das casas vizinhas, vendo o Casaca passando na rua,
logo se interessavam, maldosamente, para ver se ele ia se deter em algum portão
ali perto, porque a fofoca faz parte da natureza humana.
O velho cearense que me contou esse
eficiente sistema prático de cobrança de dívidas não me descreveu —, porque não
me ocorreu a lembrança de lhe perguntar — como era, fisicamente, o “Casaca de
Urubu”. Se alto ou baixo, fisicamente forte ou fraco. Presumo que era um homem
fisicamente forte, grande, porque a pessoa cobrada nem sempre era calma,
pacífica, sabendo que a vizinhança a observava disfarçadamente. Alguns reagiam de
forma agressiva.
O Casaca não chegava ameaçando nem
gritando, mas era firme, de uma tenacidade doentia. Ele simplesmente chegava e
cobrava a dívida. Se o devedor não estava, ou mandava alguém da casa dizer que
não estava, o “Casaca de Urubu” simplesmente se encostava no portão ou muro,
com expressão fechada, e aguardava a sua volta. Não se incomodava de ficar ali
horas e horas, sob chuva ou calor. Se o devedor estava escondido dentro da
casa, ficava “ilhado”, não se atrevendo a sair, nem mesmo para trabalhar. Se
estava fora, não tinha coragem de voltar à própria moradia. Com tática tão
eficiente, caso o devedor ainda tivesse algum dinheirinho ele priorizava o
pagamento dessa dívida, só para se livrar da sorumbática craca humana.
O grande problema para os devedores,
como já disse, é que toda a vizinhança sabia porque o “cobrador” estava
plantado ali, qual uma sentinela do crédito. Ninguém queria ser seu amigo,
porque amizade implica em alguma proximidade física. E uma simples visita de
cortesia do nosso homem equivaleria, hoje, a uma citação judicial, com alto
falante, num pedido de falência. O amigo visitado, tão logo a visita ia embora,
teria que correr quase de casa em casa explicando aos vizinhos que se tratava
de uma visita social.
Para agravar o vexame dos devedores,
a garotada da vizinhança costumava seguir, de uma certa distância, expectante,
o “cobrador”. Uma espécie de alegre procissão, ou chegada do circo na cidade,
porque não era raro que o devedor, sentindo-se desmoralizado, se exasperasse, ameaçando
partir para a ignorância. A cobrança tinha, realmente, um grande potencial de
violência, numa época em que a necessidade humana de ver sangue — o alheio,
claro —, tinha muita chance de ser satisfeita. Naquela época não havia cinema
nem televisão, em que sexo e sangue, juntos ou separados, escorrem pela tela e
pingam no tapete.
A garotada, claro, torcia para que o
devedor não pagasse, porque assim aumentava a tensão e a possível violência. Já
o cobrador, evidente, torcia em sentido contrário. Ele só ganhava na medida do
que conseguia receber.
Até aqui tudo está normal, podendo o
relato ser fruto da minha imaginação. Ocorre que — aqui começa a escalada do
impensável, a originalidade da vida real:
quando o devedor, na primeira visita do Casaca, prometia pagar a dívida
no dia xis — mas não cumpria a sua palavra —, o “cobrador” tinha um “chilique”,
desmoronava, desfalecia, caindo realmente no chão, ali ficando desacordado. O
velho cearense não soube me informar se nesses momentos o “Casaca” tinha
convulsões, ou se babava – o que caracterizaria a epilepsia. O fato é que caía
de verdade, sem escolher jeito menos doloroso de se estatelar. Às vezes
desmoronava na vertical, como que implodido, dobrando os joelhos, sem se
machucar . Outras vezes caia de chapa, para frente ou para trás, machucando o
rosto ou a parte de traz da cabeça. De qualquer forma, seus magistrais desmaios
atraiam ainda mais a atenção dos passantes e vizinhos, que se aglomeravam na
porta do devedor, tentando erguer o cobrador.
O desmaiar, ou sair andando do
“Casaca”, era um outro sinalizador da situação financeira da pessoa cobrada. A
vizinhança inteira espreitava, de perto ou de longe: se o “Casaca” desmoronava
é porque o devedor estava mesmo numa situação tão preta quanto a casaca do
cobrador, inadimplência que representava uma utilidade geral para o comércio
local. Equivalia ao atual Serviço de Proteção ao Crédito, ou cartório de
protesto de títulos. Se não havia desmaio, a situação do devedor não era tão
grave. Ele costumava desmaiar só no retorno para cobrança, sem conseguir receber.
Até aqui não há nada de especial
neste relato. O desmaio seria, talvez, mero fingimento, “teatro” do Casaca?
Algo diferente, grotesco, mas eficiente? Alguns “galos” na cabeça seriam apenas
os ossos do ofício, ou, modernamente, “despesas do protesto do título”?
Ocorre, leitor — e é aí que entra a
genialidade da vida real — que os desmaios não eram simulados. O velho cearense,
homem sério, me garantiu isso. O “cobrador” sofria realmente os ataques, quando
não conseguia receber o que lhe fora prometido. Ao que tudo indica, a contrariedade,
a decepção, após tanta espera, fazendo planos sobre como gastaria a comissão —,
causava um tal choque no seu peculiar sistema nervoso, que seu organismo reagia
desabando. Não constava que ele fosse epilético. Se o fosse, os ataques não
escolheriam hora nem local, salvo melhor juízo da crítica médica especializada.
Nunca soube que decepção financeira, provocasse ataques epiléticos.
Dirá o leitor mais exigente que, ou o
velho cearense mentia, ao relatar os fatos, ou era muito ingênuo, supondo que
os desmaios do “Casaca” eram autênticos. De minha parte excluo a hipótese de
ser mentira ou ingenuidade do velho que me contou. Ele nem sabia, nem eu, que
um dia eu iria escrever sobre seu relato. Se eu soubesse, teria cavoucado
bastante sua narrativa.
Cheguei a conhecer bem o caráter desse
velho, meu parente, homem de total veracidade. Como ele estava convicto que os “ataques”
não eram simulados? Porque, carregado para sua casa, o “Casaca de Urubu” demorava
para recobrar a consciência. Ficava mesmo doente, meio zonzo, não trabalhando
no dia seguinte. Insisti muito nesse ponto — na tese da simulação — mas a
convicção do cearense era inabalável. Ao que constava, o Casaca se machucava de
verdade nas quedas, no nariz, na testa. O velho sentiu-se até ofendido com
minha insistente descrença. O detalhe da possível simulação fora muito debatido
na vizinhança, à época, quando havia poucas distrações na cidade. Agora, se o
“Casaca de Urubu” era tão astuto e indiferente às próprias machucaduras nas
quedas, aí já não sei. Mas a versão do desmaio autêntico era assunto quase
pacífico, mesmo em um ambiente de gente desconfiada. O cearense, pelo que ouço
— vivi em São Paulo desde dois anos de idade — é desconfiado por natureza.
Qual o ficcionista que se atreveria a
inventar coisa tão anômala? Nem mesmo um
neurologista, dublê de escritor — a menos que tivesse tido um cliente nessas
condições — teria lembrança de inventar essa parte final. Talvez o “Casaca de
Urubu” fosse um exemplar único no mundo. Pouco tempo atrás, porém, conversando
com um experiente médico vizinho, em São Paulo, sobre a estranha reação do
desmaio, ele me disse que soubera de um caso semelhante, não de cobrança de
dívidas, mas de desmaios autênticos quando a pessoa sofria uma grande decepção.
Mulheres, com frequência, até em filmes, costumam desmaiar quando recebem
notícias chocantes, como a morte súbita de uma pessoa querida, mas homens
desmaiando para mim é novidade.
Minha particular opinião inclina-se —
mas não garanto —, para a conclusão de que “Casaca de Urubu” fingia desmaiar,
por vários motivos lógicos: primeiro, porque se não fizesse essa cena poucos
devedores pagariam seus débitos e essa “moleza” seria contagiosa, tirando seu
meio de vida; segundo, porque se fosse agressivo, ameaçador, poderia levar um
tiro, ou facada, ou ele matar algum devedor; terceiro, porque, sendo violento,
seria fonte permanente de ocorrências policiais, e o delegado poderia proibi-lo de trabalhar nessa função,
visando a paz pública. Ninguém pode ser chamado de “desordeiro” só porque
desmaia com frequência.
Não sei como terminou a vida do “Casaca”. Pena que não tenha tido a oportunidade de conhecê-lo. Era um homem inteligente, um psicólogo, porque conseguia fazer o que ninguém mais conseguia. Sem burocracia, protestos, justiça ou violência, a não ser contra ele mesmo, mas em diminuta escala. Quem sabe, tendo filhos, tais desmaios possibilitaram estudo em universidade. Haveria fingimento mental com sua técnica? Se havia, o Casaca se punia por isso, machucando-se na queda.
OBSERVAÇÃO.
Esta narrativa foi
escrita vários anos atrás e publicada em livro impresso que publiquei, por
conta própria — mais para distribuir aos amigos —, fazendo parte do livro de
contos “Tragédia na Ilha Grega”. Como não houve difusão desse livro, fiz
algumas alterações. O presente conto — ou será narrativa? — fará parte da 2ª
edição, agora online, que venderei pela Amazon.com, logo que terminar a
atualização de todos os textos reunidos no livro “Tragédia na Ilha Grega”,
agora na versão e-Book.
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conheço meus livros
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oripec@terra.com.br
FIM