segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A era da mediocridade. Parte I.

Se eu me beliscasse toda vez que me sentisse um estranho no planeta certamente acabaria confundido com um extraterrestre, ou terráqueo de repelente moléstia de pele. A cor azul-arroxeada e as feições inchadas, resultado dos beliscões, seriam, no plano corporal, o equivalente do que sinto por dentro quando avalio, globalmente, o que ocorre em áreas “nobres”, artísticas, políticas e às vezes jurídicas. E garanto que boa parte dos leitores mais exigentes e sequiosos de informação sente, lendo os jornais ou vendo televisão, a mesma sensação diária de estranheza. — “Será que estou sonhando?, que li e ouvi direito o que está na mídia, mesmo a mais respeitável?”

A decadência paira no ar, como uma névoa. Por vezes brilhantemente colorida mas de odor suspeito, a sugerir que algumas ratazanas culturais não foram enterradas a tempo. Provavelmente, parte dos coveiros das asneiras está dopada, embriagada com excesso de fatos e interesses comerciais entrando aos trambolhões na caixa craniana, insuficientemente espaçosa para filtrar e “separar o joio do trigo”. Não digo nada se, logo, logo, as lojas de produtos naturais estarão — corrigindo a referida expressão —, vendendo joio em cápsulas, argumentando que ele é mais nutritivo e anti-cancerígeno que o trigo, esse vulgar construtor de obesidades?

Generalidades gratuitas? Crise de depressão sem fundamento objetivo? Vejamos.

Escolhendo ao acaso, examinemos, inicialmente, a mediocridade que ocorre no cinema, chamado, por tradição, de “sétima arte”, mas sem dúvida a primeira delas, em termos econômicos e de influência social. Notadamente o cinema norte-americano.

É impressionante saber que os “fundadores da sétima arte — os irmãos Lumiére, Auguste e Louis —, supunham que o “cinematógrafo” — assim chamado — era apenas um instrumento científico, sem qualquer futuro comercial, a demonstrar a imprevisibilidade de todos os efeitos do que acontece no mundo. Um modo de olhar, um gesto brusco ou amigo, ou um tom de voz — no momento certo, ou errado — podem despertar sentimentos e juízos capazes de alterar destinos de pessoas e até de países. Isso porque existe uma coisa perigosa, traiçoeira e até involuntária chamada “interpretação”. A ciência jurídica vem tentando criar regras a respeito da hermenêutica das leis e contratos mas nunca se pode dizer que o valor de tais regras é absoluto porque o simples lapso no uso de uma palavra altera o resultado. Se a palavra saiu por engano, não facilmente demonstrável, a interpretação também estará enganada. E paremos por aqui porque as generalizações são mais enganosas que as situações concretas.

Gosto de filmes de ação, que geralmente são americanos. Ou melhor, hoje gosto menos porque estão cada vez mais decadentes, por demais interessados na bilheteria, sem preocupação com qualidade. Tremendamente repetitivos nos enredos medíocres, exageradamente sanguinolentos e recheados de chavões. Se, por exemplo, o policial amigo do herói é maduro, bonzinho e comete a imprudência de dizer que vai se aposentar daqui a alguns dias, é garantido que uma bala do marginal o matará antes do filme acabar. Adeus aposentadoria! Culpa dele! Quem mandou falar que ia se aposentar?! O medíocre roteirista, mesmo não tendo irmão criminoso na cadeia — o que justificaria parcialmente o rancor —parece pensar que nenhum policial merece a recompensa de uma velhice tranqüila.

Outro chavão é o tratamento grosseiro que o policial heróico dá, sem qualquer justificativa, a seu novo companheiro de trabalho e que acaba se transformando em amizade profunda porque o novato salva a sua vida.

Nas perseguições envolvendo carros em grande velocidade, o diretor, violando as mais elementares leis da física — e convicto da estupidez dos espectadores —, acha imprescindível que um automóvel, após colidir com outro, levante vôo e, qual uma patinadora do gelo, rodopie no ar antes de cair, como se isso fosse possível sem a presença de uma rampa (meio torta) de lançamento escondida atrás de um veículo estacionado. Isso sem falar no veículo que cai no abismo e explode antes de atingir o solo. O técnico de efeitos especiais, bem distante, apertou antes do tempo, no controle remoto, o botão de explosão. — “Repetir a cena? De jeito nenhum! A platéia nem vai notar! Além disso, a gasolina não está barata!”. Não é de estranhar, portanto, que os EUA tenha que endurecer sua política externa no Oriente Médio, com isso diminuindo sua dependência de petróleo, porque metade do óleo importado é queimado em filmes de ação. Estou exagerando, claro, mas convém esclarecer porque a decadência geral inclui a má interpretação de tudo que se lê e ouve.

Compreende-se que, em filmes policiais, seria difícil evitar algumas cenas violentas regadas com groselha ou vinho tinto. Onde entra a faca, ou a bala, sai o sangue. Isso é inevitável, normal e próprio do conflito entre ordem e criminalidade. O crime envolvendo sangue é um atalho percorrido por um indivíduo meio desesperado — ou, mais raramente, frio — que não tem paciência nem disciplina para satisfazer suas necessidades, justificáveis ou não, pelas cansativas vias tradicionais. Não tem paciência nem mesmo para um bom planejamento do crime. A sofreguidão é sua desgraça; dele e da vítima. Quando esta reage, não há caminho de volta. Daí o sangue. Uma realidade da vida em qualquer sociedade.

A decadência atual desse tipo de filmes, porém, revela-se na insistência do sadismo repetido por longos minutos, a vítima gritando. Bandidos de filme já não se contentam em atirar nas vítimas. Submetem-nas a cenas de choques elétricos prolongados. Quebram mãos e pés com marteladas ou tacos de beisebol . Arrancam unhas com alicate. A tortura insistente, em filmes, parece atender a uma suposta “exigência de sadismo” do mercado. Basta ver o sucesso da série de “Sexta-feira, 13”, em que um maluco forte e “imorrível”, com máscara branca furada — ele nunca corre mas sempre alcança as vítimas que correm —, sente prazer em cortar cabeças e outras partes, gratuitamente.

Esse cultivo deliberado da barbárie é jogado para consumo em massa, sendo comprado em DVD, visto em cinema e televisão e até mesmo imitado por marginais imensamente ignorantes que, ou já nasceram com baixíssimo nível de compaixão, ou sofreram muitas bordoadas e privações na vida e estão dispostos a “ir à forra!”. Com arma na mão, em grupos, invadindo lares, não se contentam em exigir dinheiro das vítimas. A graça está em aterrorizar. Acham “bacana”, “cool”, fazer como viram nos filmes, ameaçando matar e deliciando-se com o terror estampado nos olhos dos “burgueses” indefesos. E o clímax da sensação de poderio é obtido quando matam friamente, com tiro na cabeça, aquela vítima que já entregou tudo o que era possível entregar. O chique aristocrático da eliminação, antes do marginal ir embora, está justamente no detalhe de matar por capricho. Afinal, matar por necessidade seria muito, “terra-a-terra”, esperável. Não acredito que matam apenas para não serem reconhecidos porque às vezes o assaltante está mascarado ou com capacete e, mesmo assim, mata.

Para “enriquecer” o gênero policial, é cada vez maior a tendência da indústria cinematográfica de aceitar enredos em que o criminoso é um “serial killer”, porque já seria “acanhado demais” matar um só: — “Se tudo evolui para a produção em massa, por que o cinema deveria ser uma exceção?”

Mesmo em detalhes secundários, a imitação é a regra. Virou moda o personagem vomitar ao ver o estado do cadáver desfigurado. Mocinhas e camareiras de hotel, tempos atrás, apenas gritavam, longa e histericamente, quando se deparavam com um morto, mesmo deitado no chão em posição digna. Bastava um leve ferimento e o fato de estar morto — reação que já era uma falcatrua da realidade, porque na vida real as mulheres não reagem desse modo, berrando longa e agudamente. Hoje o diretor manda que elas vomitem. De preferência, com a cara enfiada no vaso sanitário, exigência de realismo. Depois pode desmaiar. E por aí vai.

O infantilismo intelectual também vem sendo intensamente incentivado com filmes que compensam a falta de coerência e senso crítico com um excesso de brilhantes efeitos especiais. Brilhantes pelo lado técnico mas estúpidos e infantis pelo lado do enredo. Filmes que deveriam ser assistidos apenas por crianças — por exemplo “Godzillas”, um monstro sem pais, compostos de milhares de toneladas de proteína ( cerca de 30 filmes) — são vistos com prazer por marmanjos desacompanhados de filhos ou netos. Mesmo o sucesso de bilheteria “Avatar”, premiadíssimo, é um insulto à inteligência, embora bem intencionado na doutrinação ecológica e da paz entre os homens. Para mim, o diretor James Cameron decaiu em sua biografia, apesar da premiação. Espero que se reabilite, porque é um diretor de grande talento e preocupação com o detalhe. Arte também é detalhe, que não o diga Picasso, esse espertinho que deu certo.

Quem dirigiu a obra-prima “Titanic” poderia produzir coisa bem melhor que aqueles extra-terrestres verdes com rabos que vi no “Avatar”. Não me lembro se no filme os “rabudos” usavam esse apêndice como os macacos pequenos, para agarrar os galhos e não cair das árvores. Ou se o rabo funcionava apenas como requinte de originalidade. A função do rabo entre os macacos é só de segurança. Nos grandes macacos a natureza eliminou esse quinto membro, como se constata nos gorilas, orangotangos e chimpanzés.

Outra ofensa à inteligência: os “Predators”, alienígenas fortíssimos, munidos de tecnologia muito superior à nossa, portanto mais evoluídos e inteligentes — podem ficar invisíveis à vontade —, aparecem com garras imensas, próprias de mamíferos primitivos que precisam agarrar como leões ou cavar a terra como tamanduás. O “E.T.”, com todos os seus prêmios, era biologicamente incoerente porque não tinha, na cabeça, espaço suficiente para abrigar um cérebro evoluído. Era só olhos. Não é possível que numa civilização superior seus habitantes tenham um cérebro minúsculo como era o caso do “E.T.”

Outro vexame em termos de pobreza imaginativa está na insistência dos repetidíssimos “vampiros” e “lobisomens” transmitindo a “vampirice” com uma chupadinha no pescoço. E os filmes que falam em “buracos negros” sem o diretor possuir a menor idéia do que sejam? Buraco negro é uma estrela que se esgotou, virou um imenso carvão. Não é porta de entrada para uma "outra dimensão". E os “anjos” transformados em carne e osso? Esses absurdos, pelo menos, procuram transmitir idéias de bondade e altruísmo. E o que dizer das cenas em que dois sujeitos, que se odeiam, apontam reciprocamente suas armas e ficam trocando insultos e ameaças, sem que nenhum dispare? Difícil supor que isso ocorra na vida real. E como justificar, a não ser pela preguiça, a prática de o cinegrafista ficar sacudindo a câmera nas cenas de violência mais difíceis — atrapalhando a compreensão do espectador — ou quando o diretor não conseguiu construir um “monstro” mais convincente e que não seja cópia do monstro de “Aliens”?


O leitor deve estar se perguntando: — “Por que ser tão ranzinza? As pessoas querem apenas se divertir! Ninguém ignora que é tudo ficção”. É evidente que não acreditam. O que me preocupa é a formação do hábito mental da aceitação contínua do insulto à própria inteligência, a total abdicação do espírito crítico. Será que essa longa prática não deixa um certo calo de passiva estupidez, principalmente nos jovens? É interessante o contraste de reação entre a aceitação fácil de tais filmes e a maneira como a pessoa procede quando alguém insulta sua inteligência tentando enganá-la. Se um vendedor idiota insiste em convencê-la a comprar algo que só um débil mental compraria, ela reage até com indignação. Por que reação parecida não ocorre quando assiste um filme?

Finalmente, um pouco sobre o sexo cinematográfico, abusivo e de mau gosto, exibido sem solicitação e assistido por quem estiver, por acaso, na sala. Para preencher o vazio do enredo, as cenas de sexo quase explícito duram demais. Nada apenas sugerido. Tudo explicitado, inclusive no linguajar chulo relacionado com o uso da boca para fins diversos da comunicação de idéias. Descabe argumentar que basta mudar de canal. Isso presume que o pai ou a mãe da criança ou adolescente está sempre em casa, o que não é verdade.

Digo essas coisas não por intenção de moralista ultrapassado. Sou até “avançado” demais na compreensão do relacionamento entre homens e mulheres. Apenas descrevo um fato: a decadência da arte cinematográfica, principalmente a americana e daqueles países europeus que cada vez a imitam mais. Não acredito que historiadores do futuro — se houver futuro... — descreverão o cinema atual como uma época de progresso global das artes.

Assim como os governos se preocupam com a qualidade dos alimentos — colesterol, açúcar, sal uma infinidade de produtos potencialmente cancerígenos na alimentação —, seria recomendável alguma preocupação com tantos “venenos” na “nutrição mental e moral” de nossa população jovem que está chegando em massa ao campo de um “conhecimento”, cada vez mais apenas “visual” graças a uma melhoria de renda. E não tenho certeza se meninos e adolescentes, incentivados pelo triunfo financeiro dos maus e espertos saberão distinguir o que devem imitar ou evitar. Principalmente quando criminosos, jovens e charmosos, de ambos os sexos, acabam se saindo muito bem rumando, de avião, para o “Brazil” com a sacola cheia de dólares roubados.

Obviamente, não cabe ao governo proibir a indústria cinematográfica de produzir filmes de enredo idiota, difundindo ignorância ou estimulando valores escolhidos por assaltantes. Não se está sugerindo, aqui, que o governo financie filmes com essa preocupação, porque sempre existe o risco da má-fé, o governo perdendo o dinheiro e o filme nunca saindo do papel.

Em outro artigo abordarei a mediocridade em outras áreas. A sensação global é a de que vivemos em um mundo em decadência. “Coisas” bem feitas deveriam ser a regra, não a exceção. Talvez uma 3ª. Guerra Mundial, ou séria ameaça, melhore o homem, porque só assim — na base do sofrimento e do medo — é que nós, asnos de duas pernas, conseguimos aprender alguma coisa.

(16-01-2012)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Peluso ou Calmon? Quem está certo? Ambos.

Considerando a ácida celeuma sobre os poderes do CNJ em investigar condutas, renda e bens dos magistrados brasileiros, lícito é a qualquer cidadão brasileiro — no caso, o signatário —, opinar a respeito, mesmo sendo, há muito tempo, um desembargador precocemente aposentado, conforme a legislação permitia. Sua opinião será encarada, com razão, como suspeita porque há séculos sabe-se que é exigir demais de um ser humano que seja absolutamente justo em causa própria, dos parentes, dos colegas de profissão, dos amigos e inimigos. Farei, no entanto, um esforço de objetividade, sem prejuízo de recomendar — desnecessariamente — ao leitor a salutar cautela de pensar com a própria cabeça, esporte com poucos adeptos.

A propósito dessa dificuldade, de ser justo em causa própria, pouca gente sabe que, instaurado o governo militar, em 1964, o então presidente do Supremo Tribunal Federal — Min. Ribeiro da Costa —, procurou o Marechal Castelo Branco propondo que o STF concordaria com uma alteração legislativa no sentido de que as ações judiciais, movidas por magistrados, visando aumento de seus vencimentos ou outras vantagens, seriam julgadas não pelo Poder Judiciário, mas pelo Senado. Com isso, o referido Ministro, homem íntegro, pretendia demonstrar que os magistrados não temiam qualquer controle externo da magistratura, em termos de remuneração. Tal era, no entanto, o prestígio, então, do Judiciário brasileiro, que o Mal. Castelo Branco rejeitou prontamente a sugestão, dizendo confiar plenamente na nossa justiça, mesmo julgando as pretensões de seus integrantes.

Essa confiabilidade — ou pelo menos o respeito formal —, perdurou enquanto o fluxo de novas demandas foi compatível com a quantidade de magistrados em exercício e a quase satisfatória qualidade da legislação processual na área cível e penal. Publicada, porém, a Constituição Federal de 1988 a justiça tornou-se vastamente acessível e a anterior “demanda reprimida” foi substituída pelo seu oposto: um “tsunami” de ações, o que se percebe ainda hoje com a existência de mais de cinqüenta milhões de processos em andamento.

Ocorre que a justiça, quando da nova Constituição, não estava — nem está ainda hoje — adequadamente aparelhada para lidar com esse gigantesco volume de serviço porque o juiz é uma abelha sem ferrão. Isto é, ele tem a obrigação de proporcionar o “mel” judicial — decisões cuidadosas, em enorme quantidade — mas não dispõe do equivalente “ferrão”, isto é, de uma legislação processual que possa impedir que devedores (na área cível), e réus abonados (na área penal) “estiquem” seus processos à vontade, bastando redigir uma petição, mesmo sabendo não ter razão. Além do mais, as “abelhas” não são em número suficiente, levando-se em conta a nossa antiquada legislação processual. Quem não tem razão e está bem consciente disso, sabe que com recursos jogará para um futuro incerto a decisão que o prejudica. E como milhares pensam da mesma forma, está explicado, em boa parte, a grande lentidão da justiça brasileira. E não vai aqui uma crítica aos advogados porque o que está errado é o sistema, não o profissional. Nenhum advogado de cabeça normal deixará de proporcionar a seu cliente esse serviço — recorrer, enquanto o sistema legal assim autorizar. Se não recorrer, podendo legalmente fazê-lo, ou perderá o cliente ou correrá o risco de ser processado por ele, que o acusará de desidioso, no Conselho de Ética da OAB, ou pedirá indenização judicial pela “inércia”.

Nesse ponto, merece apoio a preocupação do Min. Cesar Peluso quando propõe uma modificação legislativa que corte, pela raiz, a velha e nociva prática brasileira de ensejar quatro instâncias recursais — fora os agravos de instrumento, mandados de segurança e outros “penduricalhos” processuais — que permitem, à parte que não tem razão, eternizar uma ação judicial. Nenhum outro Ministro do STF, até agora, pelo que sei, teve a coragem de enfrentar essa brecha — ou “rombo” — legislativo que só beneficia o poder econômico, porque o “pé-rapado” não tem condições financeiras para arcar com os custos da delonga proposital. O Min. Peluso propõe que, julgado o caso pela segunda vez, ele possa ser executado. Quem não se conformar com isso, que entre com a desestimulante ação rescisória, muito mais trabalhosa e incômoda porque só pode discutir questões de Direito, não a prova dos autos.

Concordemos, ou não, com tal modificação, essa proposta revela o audacioso idealismo do Min. Cesar Peluso, tentando melhorar a justiça brasileira mesmo sabendo que nada contra a corrente e ainda reboca uma casa de marimbondos desferindo ferroadas. Poderosos e influentes devedores, na área tributária, previdenciária, cível e comercial tudo farão para que não se converta em legislação essa iniciativa visando abreviar a duração dos processos. O mesmo ocorre na área penal em que os réus “poderosos” são encarados, pela população, como privilegiados, tendo em vista a jurisprudência dominante no sentido de que só podem ser presos réus condenados por decisão transitada em julgado — leia-se: após julgamento do STF. Essa impunidade do “colarinho branco” acarreta imenso desprestígio do judiciário. A população passa a acreditar que existem dois tipos de justiça: a dos “pobres”, mais severa, e a dos “ricos”, imensamente tolerante. Não sei, até, se na presente “onda” de ataques à presidência do STF não há algum componente oculto visando diminuir a influência da proposta do Min. Peluso. Se desprestigiado o Ministro, por questões remuneratórias, ficaria também desprestigiada, por “contágio”, o que vem dele, isto é, sua principal e polêmica iniciativa que pretende reduzir a duração dos processos.

O leitor inteligente deve estar se perguntando: — “Qual o nexo entre o controle dos ganhos dos juízes, pelo CNJ — tema principal deste artigo — e a insatisfação popular com a lentidão da justiça, além da sensação de que existem duas justiças: a dos pobres e a dos ricos? Por que o articulista trouxe à baila a questão da lentidão e da impunidade decorrente do sistema recursal?

O nexo é o seguinte: se a justiça brasileira fosse rápida e eficaz, portanto admirada, tanto na área cível quanto na penal — com diminuição da sensação de insegurança até mesmo nas ruas — a população estaria pouco interessada em saber quanto ganha o juiz. Este poderia até ganhar o dobro do que recebe hoje, sem reclamo dos contribuintes. Se o “serviço” Justiça fosse encarado com simpatia e gratidão os jornais não teriam interesse em examinar minuciosamente tais ganhos. Como é lenta, pesada, vitimada por uma legislação processual imensamente ingênua no encarar a verdadeira intenção — protelar — da grande maioria dos recursos, a opinião pública fica propensa a encarar com simpatia toda notícia que diminua o prestígio dos componentes do judiciário. Se, ao ver da população, a justiça é ruim, qualquer salário dos magistrados lhe parece excessivo.

O juiz brasileiro ganha bem? Ganha, para padrões brasileiros, por sinal bastante injustos com a classe trabalhadora em geral. Injustos inclusive na tributação do Imposto de Renda. É o cúmulo um trabalhador que ganha R$4.000,00 mensais pagar 27,5% de I.R. O teto de vencimento para um Ministro do STF é de R$26.723,00. Tal verba sofre, na fonte, um desconto de 27,5% de Imposto de Renda, mais um desconto de 11% de contribuição previdenciária. Com esses dois descontos, totalizando 38,5%, sobram R$16.436,00, que ainda é um bom salário — se comparado com o salário de um bancário, que ganha mal —, mas não exagerado se pensarmos que para um juiz de carreira chegar a esse nível máximo foram necessárias várias décadas de muito trabalho e estudo. E pouquíssimos chegam lá.

Altos executivos e bons profissionais liberais com, digamos, trinta anos de profissão — é o tempo médio para um juiz de carreira chegar ao Supremo, se chegar... —, que não ganham mensalmente bem mais de R$16.000,00 não se sentirão “vencedores” em suas respectivas atividades. E um Ministro do STF, no degrau mais alto da magistratura, certamente não pode ser considerado intelectualmente inferior a um alto executivo. Se o seu salário não fosse “podado” com um desconto de 38,5%, antes de chegar à suas mãos, não haveria o que reclamar. E não esquecer que, após o desconto inicial de 38,5% , será preciso pagar planos de saúde — pesados por causa da faixa etária —, e talvez um seguro de vida, também caro por causa da faixa etária. Um recente ex-candidato à presidência dos EUA, Herman Cain, da Geórgia,que desistiu da sua candidatura, tinha na sua plataforma a intenção de instituir uma alíquota única de 10% para o Imposto de Renda da pessoa física, uma boa idéia para o Brasil. A diferença, perdida pela Receita, seria cobrada da imensa massa dos informais, ou dos que conhecem os bons truques contábeis que permitem escapar da tributação e por isso precisam depositar seus ganhos no exterior. Foi por causa deles que apoiei a nova versão da CPMF desde que acompanhada de substancial redução do imposto de renda. Com o “imposto do cheque” ficar-se-ia conhecendo os ganhos reais daqueles que são pobres no papel mas não tão pobres na vida real. Se todos pagassem o I.Renda as alíquotas poderiam ser bem menores.

Voltando ao tema, um ganho mensal líquido de cerca de R$16.000,00 — ou R$13,000, se pensarmos nos caros planos de saúde — não é exagerado para um Ministro do STF. É até bem modesto se comparado com o que ganham competentes executivos, advogados, médicos, dentistas, comerciantes, industriais, donos (milionários) de certas igrejas, e outras profissões de pouco status mas de bons lucros.

— “E a “bolada” de “atrasados” de que fala imprensa, paga de uma só vez?” — perguntará o leitor.

Como estou afastado da atividade judicante há muitos anos, informei-me com um ex-colega, invulgarmente severo, sobre o que ocorre. E a explicação que recebi foi a de que esses atrasados eram direitos funcionais devidos a título de férias não gozadas, licenças-prêmios não recebidas, auxílio-residência não pago na época e correção monetária de salários. Correção concedida pelo próprio Tribunal — portanto mal vista — com fundamento no preceito constitucional de que o salário do juiz é irredutível não só teoricamente, mas de fato, economicamente. Isto é, se a inflação, grande ou pequena, “corroeu” o poder aquisitivo da moeda, seria sustentável, legalmente, que essa parte “corroída” fosse paga aos juízes, o que foi feito por decisão do próprio Tribunal, em prestações mensais. Se tal decisão for injusta, haveria injustiça do próprio legislador constitucional quando disse que o salário do magistrado seria irredutível, não dizendo o mesmo com relação ao salário do trabalhador em geral. Em suma, embora antipático, elitista, o privilégio constitucional da “irredutibilidade real” dos vencimentos dos magistrados, não se pode ver, no pagamento desses atrasados, se corretamente calculados, uma ilegalidade, a menos que fique apontada onde está a ilegalidade. Se houve erro de cálculo, que se o retifique, com devolução do excesso recebido.

Examinemos, agora, a postura da Min. Eliana Calmon, do STJ – Superior Tribunal de Justiça e Corregedora Nacional da Justiça. Trata-se de uma juíza imensamente corajosa, intelectualmente honesta e incapaz de agir ou falar ao contrário ao que manda sua consciência. É uma mulher cujo talento e coragem (rara) não devem ser desperdiçados, de forma alguma. O que se pode dizer contra ela é que, num impulso irrefletido de indignação disse, em público que a magistratura, hoje, “está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga”.

Foi um típico exemplo de “defeito na virtude”, isto é, a sincera indignação de uma pessoa retilínea, somada a um temperamento forte, que deixou de lado a diplomacia recomendável no tratamento de um assunto delicadíssimo e de grande influência social. Do jeito como externou seu pensamento a conclusão que logo aflorou no espírito da população brasileira — inclusive dos marginais, agradavelmente surpreendidos — é que a maioria dos magistrados é composta de bandidos, o que está longe se ser uma verdade. Ela não disse, claro, que “todos” os juízes são bandidos, mas o superlativo “gravíssimo” pode sugerir que a maioria é composta por gente desonesta. Minha impressão pessoal, quando juiz de carreira, foi sempre muito diferente, nos anos sessenta, setenta e parte dos oitenta, quando magistrado em São Paulo. Em média, o nível de idoneidade moral dos magistrados paulistas que conheci era igual ou superior ao nível da nata moral das demais profissões.

Sabendo das palavras terríveis da Min. Eliana, é natural que o Min. Peluso — um magistrado realmente honrado, embora não preocupado apenas em parecer simpático — ficasse indignado e procurasse a Ministra pedindo explicação. Talvez não precisasse bater na mesa ao fazer isso, mas com os ânimos exacerbados os excessos são comuns. Se o Min. Peluso não protestasse de forma veemente, a opinião pública diria: “Quem cala, consente...”. Se pedisse a retratação todo delicadinho, tímido, sorrindo medrosamente, a mídia diria que essa brandura seria um indício de que a Ministra estava certa no seu ataque generalizado.

Por que o Min. Peluso protestou? Porque a missão do Judiciário não é somente a de julgar os processos que chegam a ele. Faz parte de sua missão transmitir a idéia de que os juízes são profissionais severos, confiáveis, sobretudo honestos — tanto em termos financeiros quanto intelectualmente. Se a comunidade respeita seus juízes, e a justiça for rápida e eficaz —a meta principal do Min. Peluso — as pessoas cumprem mais prontamente as leis e os contratos porque sabem que, agindo de modo errado, serão punidas de alguma forma. É a justiça atuando pelo exemplo, virtualmente, sem nenhum gasto e menos vítimas futuras, criminais e civis. Com esse respeito de temor, diminuem as infrações. E o temor da lei ainda é necessário. Se, porém, espalha-se a noção de que a magistratura é em grande parte composta de bandidos, por que obedecer as leis? “Bandidos togados” podem ser subornados, pois não?

Já li, muitos anos atrás, já não sei onde, que nos EUA havia uma determinação, ou orientação, obedecida, proibindo que nos filmes de ficção o personagem “juiz” — quando havia algum —, fosse um mau-caráter, venal, falsário ou estuprador. O porquê dessa proibição era, obviamente, evitar que na cabeça dos espectadores — a maior parte de limitado entendimento —, se formasse, pela repetição, a idéia de que os juízes, de modo geral, são criminosos de toga. Não houvesse essa proibição, ou forte aconselhamento, o roteirista de pouca imaginação, ou burro, buscando “sucesso escandaloso”, apresentaria, com freqüência, o personagem “juiz” como chantagista, estelionatário ou mesmo “serial killer”. Nos filmes de mistério, o criminoso já não seria mais o mordomo, mas o juiz. Essa praxe seria imensamente nociva à ordem social e francamente incentivadora da criminalidade.

Pondere-se, ainda que se um alto magistrado dissesse, na presença de repórteres, que as diretorias de jornais, das associações de médicos, de advogados e de engenheiros estão impregnadas de bandidos, certamente os presidentes de tais entidades protestariam veementemente contra a generalização injusta. Foi o que aconteceu com a reação de Peluso frente ao ataque à magistratura.

Descontado o excesso verbal da valorosa Ministra, não vejo, porém, razão para processá-la porque mandou examinar os ganhos dos magistrados. A transparência faz parte da sua missão. O idealismo, coragem e tenacidade da Ministra precisam ser aproveitados, porque nem todo idealista é suficientemente corajoso e nem todo corajoso é tenaz e idealista. Ela ainda poderá prestar imenso e definitivo serviço à magistratura nacional. Vou aproveitar o presente “terremoto” para enviar a ela algumas propostas para a melhoria da justiça. Já estou desanimado com a falta de interesse e informação da maioria dos legisladores, que só opina sondando antes direção dos ventos e pensando na reeleição e . A existência do CNJ é um fato legal consumado e nenhuma atividade humana está livre da má-sorte de ter em seu meio pessoas que tiram proveito indevido do prestígio da profissão. Note-se, ainda, que as Corregedorias judiciárias não investigam seus desembargadores e ministros. Quem faria isso? O jornalismo investigativo, com jovens repórteres? Esse vazio investigativo justifica a existência do CNJ, porque, como dizia um romance — Em cada coração, um pecado” — nenhuma ser humano está livre da tentação. Nenhuma profissão pode garantir que todos os seus praticantes são encarnação viva da santidade.

A propósito, cumpre esclarecer ao leitor que, ao contrário do que parece sugerir a mídia, os juizes — todos eles, presumo — apresentam suas declarações anuais de rendimentos à Receita Federal, e com elas a declaração de bens. Houvesse omissão nesse sentido haveria crime tributário e os magistrados não se atreveriam a tal. O que tem ocorrido — segundo fui informado —, é que o CNJ exige que os magistrados em atividade apresentem, além da usual declaração anual, já apresentada à Receita, outra declaração de bens, dirigida ao CNJ. Muitos magistrados antipatizam com essa segunda exigência, alegando que na declaração de bens que acompanha a declaração de renda já estão todas as informações necessárias. Se a Receita já recebeu, dizem eles, tais informes, “por que repetir a dose?” Essa exigência do CNJ parece-lhes mais uma exibição de prepotência, ou exigência de submissão, que outra coisa. Os que atendem à exigência do CNJ o fazem, mas de má-vontade. E juizes não estão, felizmente, habituados a receber ordens. Há esse lado psicológico pesando no conflito.

Como o presente artigo está longo demais — e assim mesmo omisso, porque haveria outros aspectos a considerar —, encerro-o frisando que a insatisfação popular com nossa Justiça não desaparecerá com maior controle sobre o ganho usual dos magistrados. Fosse nossa justiça mais rápida e eficaz, não haveria exigência pública de nenhum órgão de controle externo. Ou, ele existindo, seria até um alívio para os magistrados honestos — a vasta maioria —, não ter que julgar os próprios colegas que caíram na tentação do mau caminho. A raiz do problema está muito menos no controle dos juízes do que no controle da má qualidade de nossas leis processuais. Um dos maiores danos à nossa Justiça foi a jurisprudência formada no sentido de que os réus crimnais só podem ser presos após transitada em julgado sua condenação, geralmente no STF. Nenhum réu em juízo perfeito vai ficar em casa quando seu caso, criminal, estiver sendo julgado pela derradeira vez. Ficará longe, talvez em outro país, esperando o telefonema de seu advogado. Se absolvido ou condenado à prisão domiciliar, volta para casa. Se condenado à prisão de verdade, desaparece no vasto mundo, porque bobo ele nunca foi.

Em termos de honestidade, melhor seria que, na composição do STF, oitenta por cento de seus ocupantes fossem magistrados de carreira, indicados e votados pelos Tribunais dos Estados e da União, sem interferência do Presidente da República. Os vinte por cento restantes viriam da advocacia e do Ministério Público. Isso porque com cerca de trinta anos de profissão, subindo na carreira, o magistrado já teria mostrado, aos colegas e jurisdicionados, que tipo de pessoa é. Sua eventual má-tendência já seria percebida. Não seria fácil dominar-se por tanto tempo. Com as livres nomeações presidenciais o caráter o magistrado pode, em tese, oferecer surpresa e aí será tarde porque a nomeação é vitalícia, e nem todo deslize pode ser provado. Felizmente, temos tido sorte, no fator honestidade, no STF. Mas não basta a honestidade para compor um juiz excepcional, requisito essencial para quem dá seu voto na última decisão.

Está, como já disse, na melhoria da legislação processual a sorte da magistratura brasileira. Inclusive na Constituição, travada demais com um excesso de “cláusulas pétreas”. Napoleão Bonaparte não era um jurista. Longe disso, mas era um estadista muito arguto. Ele dizia que “As Constituições deveriam ser curtas e obscuras”. Há uma mescla de ironia e verdade nessa curta frase.

Encerro com a esperança de que Peluso e Calmon unam seus talentos, firmeza e idealismo — nem precisam se tornar grandes amigos — e consigam fazer o que sequer foi tentado antes: consertar corajosamente a justiça brasileira.

(01-01-2012)