(Este artigo foi escrito em janeiro de 2007
mas como não foi promovido, poucos o leram. Penso que conserva alguma
atualidade, nas suas considerações).
Qual a “seriedade” de nossos sentimentos e
julgamentos? Quase nenhuma. Flutuamos, em nossas opiniões, ao sabor dos ventos.
E não se trata tanto de volubilidade de caráter. Mesmo gente “firme” muda de
opinião, conforme o que lhe transmitem os sentidos, notadamente a visão — não a
razão mais profunda. Por vezes, aquele homem “firme como uma rocha” não altera
seu parecer porque não quer ver abalada sua reputação. Mudou, mas só poderá
dizer isso em doses homeopáticas. Fica menos vexatório assim. Se trocar
bruscamente de opinião, mais de uma vez, como ficarão aqueles, bem mais
“borboletas”, que dele dependem psicologicamente? É por isso que Margaret
Thatcher dizia que o político não pode ficar no meio da estrada. Não pode ser
meio de direita e meio de esquerda. Se agir desse modo, “justo em excesso” —
expressão minha, não da Thatcher —, será atropelado pelos veículos das duas
faixas. “Não podemos contar com essa besta...”, murmura o colega de partido.
Isso porque somos noventa por cento emoção.
Conhecem
aquelas birutas dos aeroportos? Somos muito parecidos. Marionetes das impressões que chegam ao
nosso computador de carne, principalmente as visuais. Isso significa que se
fossem diferentes as imagens recebidas — meras imagens — nossa opinião seria
talvez oposta. Não é estranhável isso nos orgulhosos e “lógicos” campeões da
evolução biológica e cerebral do nosso planeta? Afinal, raciocinamos com a
mente ou com olhos e ouvidos? Um choro de mulher muda muita coisa...
Sempre fui favorável à pena de morte, embora não
disposto a mover uma palha para que ela vigorasse no Brasil. No “olho por olho”
há uma proporcionalidade justa, embora primária, com um efeito intimidativo
útil, quando a pena é cumprida à risca e com pouca demora. Ocorre que é uma punição
que passou de moda, soa como peça de museu de horrores. Parecia-me, no entanto, que a aversão que ela
desperta origina-se da circunstância das execuções terem sido filmadas e
exibidas ao público, sem o “contraditório visual” da cena da vítima sendo
esfaqueada, estuprada, martelada, queimada viva ou morta a cacetadas, conforme
o caso. Achava que se aparecesse na televisão, juntamente com a cena da
execução, a cena — com atores profissionais — da vítima apavorada e
ensangüentada, a “biruta” da indignação mudaria totalmente de direção.
Aplaudiríamos até mesmo a forca.
Saddam foi enforcado. Parecia ser um decisão justa,
pois matou milhares. Todavia, quando assisti — houve uma filmagem não
autorizada —, pela internet, seus momentos finais, praticamente mudei de
opinião sobre a pena capital. E depois de duas horas mudei de novo após ler a
lista de suas maldades e ver fotos de crianças e mulheres curdas “gasificadas”.
Meus olhos mandavam em mim mais do que a razão. Decidiam por mim? Alguns anos
atrás, assistindo parcialmente um júri, ouvi um eloqüente criminalista, Waldir
Troncoso Peres, perguntar aos jurados — sem esperar resposta, claro — se algum
deles já havia entrado na casa de um ladrão. Referia-se, presumo, ao ambiente
de miséria de um ladrãozinho barato e não agressivo, com família para
sustentar. Patrão inflexível que entre, por acaso, na moradia do ascensorista
de sua empresa talvez sinta imediata vontade de lhe aumentar o salário. Só
porque entrou na modesta habitação. É o olho, é o olho...
Admitido que a condenação de Saddam foi “legal” —
embora melhor teria sido se julgado por um tribunal internacional, sem juízes
inimigos — foi-lhe negado, censuravelmente, o pedido de morrer fuzilado. Ele
queria morrer como soldado. A forca, no seu país, é reservada aos criminosos. Bush
poderia ter satisfeito seu desejo, pedindo ou pressionando o governo iraquiano
nesse sentido. Alegou — a meu ver falsamente —, que a legislação local
determinava que a execução previa a morte por enforcamento, e “dura lex, sed
lex”. Falsamente, porque Bush não é assim tão fanático na obediência às leis,
notadamente as internacionais.
Não acredito que a justiça iraquiana teria coragem
de negar esse pedido dos Estados Unidos, que praticamente montaram o tribunal,
escolheram e treinaram seus juízes, todos presumíveis inimigos do réu. Não
consta que sunitas figurassem entre os julgadores. Além do mais, leis podem ser
mudadas. A Bush interessava mais um Saddam enforcado que fuzilado. O tempero
gostoso da humilhação. Só que, pelo simples detalhe do enforcamento,
notadamente filmado, mais soldados americanos morrerão, vitimados por explosões
oriundas do ódio exacerbado dos seguidores do líder derrotado. A generosidade
do vencedor para com o vencido, mesmo com fins obviamente políticos, sempre
gera simpatia. Mas é preciso alguma inteligência para perceber isso e Bush dá o
que tem.
Faço aqui um confissão um tanto exótica: quando
Saddam foi retirado do buraco em que se refugiara — estratégia nada
inteligente, alguém acabaria revelando o segredo... — senti a tentação de me
oferecer como mais um dos advogados que integrariam seu grupo de defesa. Como
advogado poderia, sem infração da ética profissional, me oferecer como
defensor, desde que não cobrasse pelo serviço.
E, como eu, certamente pensaram centenas de advogados do mundo inteiro.
Medalhões e ilustres desconhecidos em busca de “vitrine”. No meu caso, buscaria
o “frisson”, a excitação de fazer parte de um julgamento de tal envergadura.
Naquela época, uma das filhas de Saddam estava na Síria. Obtendo o e-mail da
embaixada ou consulado do Iraque na Síria seria, provavelmente, possível fazer
chegar a ela meu oferecimento, mais um entre centenas. Evidentemente, eu teria
que me limitar a sugerir algumas abordagens de defesa, pois não falo árabe e
meu inglês é suficiente apenas para ler, não para falar fluentemente. Se
conseguisse evitar a pena de morte já seria uma vitória excepcional, porque
Saddam realmente cometeu muitos crimes.
Se tivesse participado — mera elocubração — da
equipe de defesa, teria sugerido as seguintes atenuantes: a) Saddam teve uma
infância difícil, onde não faltaram espancamentos, vindos de um padrasto meio
sádico que não lhe poupava varadas. Isso deforma o caráter de um menino, com
reflexo na idade adulta; b) o Iraque é um Estado artificial, “montado” pelos
ingleses após a 1a.Guerra Mundial, sem nenhum respeito à natureza
dos três grupos que integram o país: xiitas, curdos e sunitas. Argumentaria,
mera comparação, que se tivesse sido criado, pela força, no início do século
XX, um “país” composto de ingleses, franceses e alemães, certamente apenas um
punho de ferro, extremamente temido e implacável, conseguiria governar essa
salada indigesta, impedindo que esses três povos se digladiassem continuamente;
c) o Iraque era — ainda é, os americanos constatam isso ainda hoje — uma
mistura incontrolável de antagonismos fomentados pela grande mestra das
discórdias insolucionáveis pela argumentação lógica: a religião. Qualquer coisa
você pode discutir neste planeta, exceto a religião. O que contraria nossa
religião é considerado desrespeito ou insulto. Saddam — eu diria aos juízes —,
só poderia manter “ordem na casa”, essa casa artificial, pelo temor e uso
efetivo da força bruta, caso desobedecido; d) diria que quando os curdos
tentaram matá-lo, em uma visita, Saddam raciocinou que se não “punisse”
fortemente o atentado, estaria desmoralizado, estimulando novos atentados
contra sua pessoa. Por isso, não conseguindo saber exatamente quem participara
do grupo conspirador, mandou matar número indeterminado de pessoas; e) diria,
ainda, que no Oriente Médio, essa prática de punir pessoas indeterminadas —
quando não se sabe exatamente quem praticou um atentado —, é ainda hoje prática
rotineira. É o caso dos israelenses, embora em menor escala. Quando vítimas de
um atentado terrorista palestino, revidam bombardeando e demolindo casas que
apenas presumem abrigar terroristas, ou amigos, ou parentes de terroristas,
mesmo que nesses revides morram inúmeros civis inocentes. Eu diria que essa é a
forma usual, embora primitiva, de se “fazer justiça” no Oriente Médio. E Saddam
era um governante nessa região, governando um país especialmente complicado,
mesmo para a região. Pensa-se, no Oriente Médio, que se não houver um “castigo
exemplar” para cada atentado — pouco importando a “culpa” individual dos
fulminados —, estimularemos novos atentados, seremos rotulados de “fracos”.
Saddam não era flor que se cheirasse. Faltava-lhe
um ingrediente indispensável ao grande estadista: um certo grau de bondade, ou
empatia, mesmo usada com moderação, como tem que ser em assuntos de Estado. Sua
única virtude era a coragem, que tinha, ou aprendera a ter, em excesso. Subiu à
posição política máxima não por sua inteligência, que era bem mediana, mas por
sua bravura, que exibiu até o último momento, recusando o capuz do carrasco e
insultando-o. Valente até com a corda no pescoço. Fosse mais inteligente, teria
pensado melhor antes de invadir o Kuwait. Aliás, dizem os historiadores que
Sadan, após uma conversa com uma diplomata americana, pensava que os Estados
Unidos apoiariam discretamente a invasão. E, fosse ele mais inteligente, não
teria se refugiado num buraco, em terreno tomado pelo inimigo. Talvez sua
coragem — não fugindo do Iraque — tenha atrapalhado a já medíocre inteligência
de que dispunha. Possivelmente, queria manter-se não muito longe do invasor,
pretendendo liderar um movimento de resistência. Para isso precisava ficar por
perto, mesmo numa toca. E essa coragem, nada inteligente, foi sua perdição.
Como se vê, até as virtudes — no caso, a coragem —
precisam ser utilizadas com moderação. A própria esperteza, quando em excesso,
prejudica, dizia Tancredo Neves. A coragem é uma virtude. Churchill dizia que a
coragem é a mãe de todas as virtudes porque sem ela todas as demais virtudes
não se manifestam. Com algumas operações plásticas, e vivendo em algum país árabe,
Saddam poderia estar hoje vivo e fazendo o que mais gostava: brigar. No vasto
frigir internacional dos ovos, e vistas as coisas no longo prazo, sua morte
provavelmente ajudará na pacificação do mundo, embora, no curto prazo,
acrescente algumas labaredas na já grande fogueira do Oriente Médio.
Fica aqui minha despedida ao hipotético e virtual
ex-cliente que, pelo menos no item bravura, merece o respeito normalmente
devido aos mortos.
Francisco Pinheiro Rodrigues (19-01-2007)
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