domingo, 21 de abril de 2019

Proposta legislativa pró liberdade de opinião



 Não obstante nossa “total” liberdade de opinião, na imprensa e na internet, essa liberdade é teórica, fictícia — mesmo quando exercida sem abuso. Isso ocorre por causa de uma ameaçadora possível ação de “indenização por dano moral”, movida por quem errou, sabe que errou, continua errando mas pretende silenciar seus críticos — mesmo quando mentalmente honestos —, “usando” a Justiça para seu astuto objetivo. 

Espero que as entidades encarregadas da defesa da liberdade de expressão leiam este despretensioso texto, redigido em estilo coloquial, compreendendo que com a atual legislação — em um país atolado em milhões de processos demorados —, o receio de uma arrasadora condenação por “dano moral” paralisará a busca da verdade ou a tornará imensamente arriscada.

Friso que este artigo não ataca o demandante bem intencionado que realmente foi caluniado, ou difamado. Visa apenas os que utilizam o “medo financeiro” como forma de manter escondidos seus malfeitos.

Em toda ação judicial, deve estar presente a máxima genial de Voltaire que gosto de invocar: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Hoje, na ação por dano moral movida pelo poderoso contra o remediado — por exemplo um jornalista —, este pode perder todo o seu patrimônio, enquanto o risco patrimonial do poderoso é praticamente nenhum, “coisinhas”. Isso leva o poderoso a abusar de seu poder de intimidação econômica, forçando o jornalista a calar a boca porque, se não o fizer, poderá perder o pouco que tem.

O presente artigo sugere uma curta modificação legislativa, no processo civil, que funcionará como desestímulo para tais ações quando visam apenas intimidar o réu — jornal, jornalista, repórter, revista, rádio, televisão, blogs e opinião desfavorável de qualquer modo publicada. Ao mesmo tempo, essa lei, aqui sugerida, teria o bom efeito colateral de desestimular, na mídia, críticas desnecessariamente ácidas — até com obscenidades, dando uma péssima imagem do país, — com ofensas pessoais que aproveitam a oportunidade da crítica, talvez justa, para insultar e desmoralizar uma pessoa física ou jurídica. A tentação do abuso, tanto de um lado quanto do outro, é uma constante na história do Direito. 

O sofrimento apenas moral varia muito, conforme  a sensibilidade de cada um. Tais ações podem demorar vários anos — quanto mais, melhor para o autor, em certos casos, porque sua verdadeira intenção é calar o réu, que precisa ser silenciado “a qualquer custo!”. Um custo financeiro previsível para o autor da ação, mas imprevisível para o réu, pois não há uma tabela legal impondo limites máximos para indenizações por dano moral. A quantia em jogo é uma caixa misteriosa.

 Penso, até, que a legislação poderia fixar o limite máximo da condenação do réu nessas ações, mas com um parágrafo, de exceção, permitindo condenação indenizatória superior ao teto, se confirmado, nos autos, que o autor agiu com indiscutível má-fé, na certeza de que poderia insultar à vontade porque o juiz estaria impossibilitado de aplicar uma condenação alta, exemplar, acima da tabela. 

A propósito, diz a história, ou lenda, que na Roma antiga uma lei previa que um tapa da cara tinha como castigo uma pequena indenização de xis moedas de cobre, o sestércio. Apoiado nessa legislação, um ousado gaiato rico saía na rua, acompanhado de um escravo forte carregando um saco de moedas. Quando o excêntrico topava com alguma pessoa cuja cara não lhe agradava o maldoso a esbofeteava e seu escravo pagava, no ato, à própria vítima, a multa prevista em lei, que era modesta. Daí a minha sugestão de que se houver uma eventual fixação de teto para indenização do dano moral que a lei preveja também uma indenização alta, caso bem comprovado o permissivo abuso do poder econômico. 

Em algumas ações de indenização por dano moral, paradoxalmente — porque nas ações judiciais, é o autor quem tem pressa no término da demanda —, quanto mais tempo ela demorar, melhor para o criticado, autor, porque sua verdadeira intenção não é obter o dinheiro da indenização mas incutir medo paralisante — na alma e/ou no “bolso” — de quem apontou suas falhas. O réu sabe que o tema “dano moral” é, por natureza subjetivo, “escorregadio”, e os juízes variam muito na quantificação da dor moral. A sorte do réu vai depender, em muito, da distribuição do processo, ou do recurso.

É por causa da desigualdade de forças financeiras entre autor e réu que muitas investigações importantes, iniciadas por órgão de imprensa, somem do noticiário. A investigação, a “busca da verdade” contra um poderoso pode significar um pesadelo capaz de arruinar uma vida ou uma empresa.

Um “detalhezinho” jurídico-processual que facilita a intimidação de jornalistas e críticos em geral — mesmo quando mentalmente honestos — está na permissão de o Autor da ação dar à causa um valor mínimo, “simbólico”, como, por exemplo, R$1.000,00, frisando o Autor, na petição inicial, que deixa “a critério de Vossa Excelência” (o juiz cível) “fixar o valor da indenização”.  Esse “valor simbólico” representa uma enorme vantagem psicológica para o autor da ação, o criticado — quando mentalmente desonesto —, porque caso ele perca a demanda — algo bem previsível para ele —, sua condenação pela “sucumbência” (pagar honorários à parte contrária) será mínima, eis que a condenação dele não poderá exceder 20% do valor da causa. 20% de R$1.000,00 é R$200,00. Essa ridícula “condenação”, de duzentos reais em honorários, estimula sua prepotência, o uso “baratinho” da Justiça para silenciar, durante  muitos anos de demanda, quem revelou suas faltas.

Ocorre, no entanto, que como o valor da causa, dada pelo autor da ação, foi “simbólico”, esse baixo valor não proíbe o juiz — segundo a jurisprudência — de condenar o réu (o jornalista, p. ex.) a pagar uma altíssima indenização, sem valor previsível, caso entenda que a crítica ofendeu moralmente o autor. Enfim, o réu, mesmo ciente de que não fez nada errado, vê-se obrigado, por mera prudência, a sempre contestar a ação, mesmo com baixo “valor da causa”, contratando advogado e sofrendo um longo desgaste emocional. Nenhum jornalista previdente, p. ex., se absterá de contestar uma ação dessa natureza presumindo que, se condenado, a condenação será pequena. O juiz pode pensar diferente. Se o autor não contestar a ação será revel, “confesso”. Perde a ação por omissão.

É, portanto, de urgente necessidade moral e jurídica — tendo em vista que tais ações podem estender-se por muitos anos — que o legislador conceda ao réu — um jornalista, por exemplo — o direito de, quando citado em ação cobrando “danos morais’, apresentar “reconvenção”, pedindo contra o autor uma indenização, de igual valor ao pretendido pelo autor, também por dano moral, só pelo fato de estar sendo processado injustamente. Na sentença, o juiz decidirá, com base na prova, a boa e a má intenção do criticado e do crítico. Não tem cabimento, é injusto exigir que o jornalista seja obrigado a ser “fritado” vários anos, apenas se defendendo, aguardando o remoto trânsito em julgado de sua inocência para, só depois, poder processar quem o processou injustamente. Propõe-se aqui, em vez de duas ações, em sucessão, apenas uma, simultânea. 

Alguém poderá alegar que a lei agora proposta é desnecessária porque se o autor perder sua ação poderá ser condenado por “litigância de má-fé. Ocorre que os que frequentam o fórum sabem que, nessas ações, a condenação por “litigância de má-fé” do autor é raríssimamente aplicada tendo em vista que a sensibilidade moral é muito variável na sua ocorrência e medição. 

Se, com a legislação atual, um juiz admitir — por economia processual —, a utilização da reconvenção nessas ações de indenização por dano moral, essa decisão ensejará infindáveis e sutis discussões acadêmicas e judiciais, com o argumento de que a “mera” condição de Réu em ações desse tipo não representa um “sofrimento moral” já ocorrido, passado. “Seria necessário” — dirão os críticos da ideia — “um prolongado tempo de sofrimento do jornalista, após sua citação, para justificar o pedido do Réu”. Este teria — “tecnicamente” — que sofrer longamente para, só depois, muitos anos depois, transitada em julgado sua absolvição, ter o direito de pretender cobrar do Autor a mesma quantia pretendida pelo Autor que o intimidou financeiramente por longo período.

Ponha-se o leitor na pele de um jornalista que foi citado judicialmente para pagar, digamos, uma indenização de cinco milhões de reais, porque não comprovou uma falcatrua — ouvida de fonte confiável, em tese crível. Essa ameaça tira-lhe todo o estímulo para o jornalismo investigativo. E pode ocorrer que, devido a globalização, a ação por danos morais seja processada em país estrangeiro propenso a indenizações milionárias.

O jornalista Paulo Francis, por exemplo, na década de 1990, foi condenado, pela justiça americana, a pagar uma indenização de cem milhões de dólares por haver mencionado — em entrevista, divulgada também nos EUA —, que a diretoria de uma empresa estatal brasileira, teria desviado altas somas da empresa para contas particulares dos diretores, em banco suíço. Como Francis não comprovou em juízo esse desvio — o sigilo bancário era inviolável —, o jornalista foi condenado a pagar os cem milhões. Ele justificava-se, dizendo que ao fazer suas denúncias pensava que o governo brasileiro iria investigar o fato, supostamente ilícito, mas a investigação não ocorreu. Pelo que presumia a mídia, nos anos 1990, o enfarte do jornalista foi apressado com tal condenação.

 Não sei se Paulo Francis tinha, ou não, razão no que disse, mas de qualquer forma, é impossível escapar da insônia — do enfarte, ou do mesmo do câncer induzido por angústia — com tal espada sobre a nuca. Não tem cabimento impor tal sofrimento moral, por muitos anos, a qualquer réu que vive da escrita, para só depois de transitar em julgado sua absolvição ter ele, réu, o direito legal de requerer uma indenização por dano moral contra alguém que o processou sem razão, conforme reconhecida pela justiça. O dano moral, o sofrimento psíquico, começa a existir a partir do momento em que o jornalista é citado e prolonga-se enquanto o processo caminha lentamente, como uma máquina de moer neurônios, no processo de milhões em que só sofre o réu.

Por que não, repita-se, decidir as culpas recíprocas no mesmo processo? Se ficar provado, no conjunto da prova, que o jornalista abusou, que pague pelo abuso. Se ficou provado que não abusou, que receba do “ofendido” a mesma quantia que este lhe cobra. Justo, não? Quem ganhar, leva tudo. Se ambos erraram e também acertaram, que a justiça fixe a divisão da quantia em disputa, na medida e proporção do abuso de cada um. E tem mais: se o conflito em exame exigir dois processos, um após o outro, pode acontecer que a prova apresentada no segundo processo seja diferente da prova produzida no primeiro processo, acarretando uma contradição da justiça, abalando a confiança da comunidade.  

Há mais a ser modificado com essa futura lei. Ela exigirá que em toda ação de indenização por dano moral — seja qual for o motivo — o Autor será obrigado a mencionar expressamente, na petição inicial, o valor que pretende receber do Réu, não podendo deixar isso “o critério do juiz”, na sentença. Nada mais racional que cada ofendido quantifique, ele mesmo, monetariamente, o grau de seu sofrimento psíquico. Só ele é quem melhor pode revelar o grau de seu sentimento. Que assuma sua responsabilidade, e o risco processual da sucumbência. 

A menção obrigatória desse “quantum” pelo autor teria a vantagem de permitir a qualquer réu, quando demandado, abster-se de contestar a ação, quando o valor mencionado for mínimo, não justificando maiores gastos com sua defesa judicial. Como está hoje a legislação — ensejando ao Autor não quantificar o valor que pretende cobrar —, todo Réu sente-se forçado, por prudência, a contestar qualquer ação de danos morais, mesmo que a considere risível.

A lei a ser proposta também deveria ter a virtude “extra” de forçar maior urbanidade, ou compostura, nas críticas, impressas ou orais, antes e depois de proposta a ação, contra pessoas ou instituições. Isso porque, se os fatos criticados forem verdadeiros, mas o crítico aproveitou a oportunidade para enxovalhar, mesmo com algum  “brilhantismo”, a reputação do criticado e de sua família — muito além da intenção de apenas criticar um ato —, ele verá reduzida sua indenização.  Não pela sua crítica — na essência verdadeira —, mas pela forma abusiva, insultuosa, ou obscena, de se expressar.

Essa possível lei teria também um “efeito colateral” civilizador, educador. O direito de livre crítica, reconhecido mundialmente, foi concebido “para o bem”. Não como maldosa oportunidade para ofensas, verbais ou escritas, que estimulam imitadores, do pior nível imaginável, transformando a mídia em um bordel vocal, com insultos de baixíssimo calão, que estimularão novas ações judiciais, ou vinganças à bala. Quem insultar desnecessariamente a parte contrária, mesmo com o direito de receber uma indenização, ficará sabendo que o seu montante indenizatório será diminuído, na decisão, na proporção do exagero no insulto desnecessário. Analogamente, se a lei processual permite que o juiz, nas ações cíveis, pode mandar riscar, nos autos, os insultos incompatíveis com o decoro judicial, poderá também punir financeiramente os palavrões e ofensas equivalentes. Será útil, para a boa imagem do país no exterior, que políticos, economistas e “filósofos” de boca suja policiem seu linguajar, mesmo que façam isso só pensando no dinheiro, não por virtude.

Encerro, aqui, minha sugestão. Observo ao leitor que não escrevo para juristas, mas para pessoas em geral. Daí meu estilo coloquial.  Vou encaminhar esta proposta às entidades de defesa da liberdade de imprensa, as maiores interessadas no direito de informar o que ocorre no município, no estado, no país e no planeta. 

Desnecessário, de minha parte, apresentar agora um esboço de projeto de lei a respeito, pois há advogados e juristas do mais alto nível que podem fazer isso melhor do que eu, afastado que estou, há anos, da atividade forense.

FIM

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Arte Moderna



Ao terminar um artigo da série “A era da mediocridade”, classifiquei Pablo Picasso mais como um hábil psicólogo e expert em marketing e propaganda do que como pintor. Nunca o concebi como grande pintor porque eu considerava, e ainda considero, como necessária qualificação de qualquer pintor, a capacidade de desenhar muito bem.

Repito: muito bem. Um talento pouco difundido e talvez inacessível apenas com a mera insistência “muscular” ou auto- ilusão entusiasmada. Algo assim como o “ouvido musical”, um dom. Realmente, não é fácil reproduzir com fidelidade um rosto, um cavalo galopando, uma figura humana em posição pouco convencional, o movimento das ondas do mar, uma cachoeira, etc.

De todos os itens, porém, de uma global “era de mediocridade”, aquele que me deu maior trabalho para concluir alguma coisa — por conta própria —, foi a definição do que seja arte; como interpretar a reação do público frente a um quadro ou escultura; a difícil “explicação” do sentimento da beleza e a vasta nomenclatura que surgiu depois do classicismo. Quem quiser entender o que significam impressionismo, pós-impressionismo, fauvismo, cubismo, expressionismo, futurismo, dadaísmo, surrealismo, concretismo, abstracionismo, primitivismo, “pop art”, “arte mínima”, etc., enfrentará grande dificuldade em estabelecer fronteiras entre essas variadas “escolas”. E para complicar ainda mais um assunto tão escorregadio, terá que levar em conta os “pós-” isso e aquilo, porque a espécie artística é bastante mercurial.

Há, porém, uma nota comum em todos esses movimentos: quanto mais moderna a obra, menor a necessidade do “suor”, físico e mental, do artista. Dizendo de outra forma: quanto mais moderna a pintura, maior o grau — dispensador de esforço — de imaginação, preguiça, subjetivismo, pretensão, valorização da quantidade sobre a qualidade e a total necessidade da propaganda para venda do “produto”. Sem propaganda, ninguém é “gênio”. Gênio, mesmo, é o cérebro comercial por trás da promoção do pintor.

Se, por mera por brincadeira, uma pessoa que nunca antes pegou em um pincel — e até desprezasse a arte da pintura —, fizesse, com os olhos fechados, alguns traços rápidos em uma tela e solicitasse a Picasso que a assinasse, “só por farra”, esse quadro passaria a valer milhões de dólares, a comprovar que não é o quadro que importa e sim a “marca”. Os supostos e talvez ingênuos “conhecedores” do estilo do pintor famoso, nessa hipotética experiência, vendo confirmada, pelo próprio Picasso — um gozador —, a autenticidade da assinatura, diriam que com esse quadro o “gênio” mostrava, mais uma vez, a “versatilidade de seu talento”.

O mundo das artes é estranho. Vincent Van Gogh só vendeu um quadro, enquanto vivo. Aquelas poucas pessoas que adquiriram, por preço vil, seus trabalhos, logo após sua morte, tiveram o máximo interesse financeiro em exaltar a genialidade do pintor. Quanto mais o elogiassem, mais valor teriam os quadros comprados após seu passamento. Não há dúvida que Van Gogh foi uma extraordinária figura humana, mas causa estranheza que só depois de sua morte é que seus quadros tenham passado a valer tanto. Uma prova de que “psicologia financeira”, digamos assim, tem um peso imenso, na realidade total, na valorização das obras de arte. A genialidade do pintor holandês, enquanto vivo — pergunta-se —, estaria tão pouco visível, para os “entendidos”, que foi preciso que seus quadros mudassem de mãos para valer fortunas? Os “negociantes de arte”, que só conhecem a “arte de negociar”, têm melhor “olho artístico” que os verdadeiros estudiosos da pintura?

Eu me sentiria mais confortado se soubesse que a genialidade de Van Gogh tivesse sido reconhecida quando ele ainda estava vivo. Foi um homem sofredor, trágico, que só nos inspira simpatia. E com um detalhe: sabia desenhar. Seu bom caráter, sensibilidade e personalidade merecem o máximo respeito, mas seu exemplo é uma prova de que o dinheiro contaminou e domina o mundo das artes. Quadros e esculturas tornaram-se muito mais um tema financeiro — à semelhança das ações de sociedades anônimas —, do que um assunto de arte propriamente dita. Aqui a explicação do porque incluí as artes plásticas na minha série de artigos sobre a mediocridade em geral. O dinheiro “mediocrizou” as artes.

Leonardo Da Vinci levou cinco anos pintando o “Mona Lisa”. Pintava umas poucas horas em um dia e outro tanto em outros, esforçando-se na busca da perfeição do detalhe. De qualquer forma, gastou um tempo considerável para pintar um único quadro. Em contraposição, Picasso chegou a dizer, conforme suas citações na internet, que “Give me a museum and I'll fill it”. “Dê-me um museu e eu o encherei de quadros”.

Como qualquer museu é enorme, somente um pintor rapidíssimo e malandramente “abstrato” poderia preenchê-lo sozinho. Com uns vinte ou trinta quadros diários Picasso daria conta do recado, em poucos meses. Uma prova de que o que lhe interessava era a quantidade e a mera declaração, dele mesmo, de que havia, naqueles poucos traços, um “significado” profundamente emocional. Tão profundo que só sentido por ele mesmo. Acredite quem quiser.

Um observador da arte moderna, Tom Stoppard, chegou a dizer que o único critério para distinguir um quadro de uma escultura moderna seria o seguinte: se a obra está pendurada numa parede, trata-se de um quadro; se você pode dar uma volta em torno dela, é escultura.

Richard Schmid, provavelmente um conhecedor do assunto — porque mencionado em sites de arte —, dizia que “Eu honestamente acredito que estudantes de pintura no próximo século rir-se-ão do movimento da arte abstrata. Eles se maravilharão de tal regressão das artes plásticas”.

Al Capp, outro demolidor, de estilo mais pesado, dizia que “A arte abstrata é o produto do sem talento, vendido pelo sem princípios para os imensamente estupefatos”.

Outro crítico acerbo da arte moderna chegou a dizer que “Trying to understand modern art is like trying to follow the plot in a bowl of alphabet soup” (Tentar compreender a arte moderna é como tentar seguir o enredo em uma tigela de sopa de alfabeto).

E, finalmente, o que diz o príncipe dos pintores, Leonardo da Vinci? Ele dizia que “Onde o espírito não trabalha com a mão, não há arte”. Elitismo? Não, simples reconhecimento de que à técnica perfeita de desenhar e pintar o artista deve acrescentar alguma emoção.

Com outras palavras: sem a “mão” do verdadeiro artista não basta o subjetivismo do pintor, por mais que ele sinta-se sinceramente emocionado — a grande desculpa para o pintor moderno que confia apenas no que ele sente, não no que sinceramente poderá sentir o público olhando para seu quadro.

No fundo, no fundo, a função essencial da arte é despertar prazer. O prazer verdadeiro, não o fingido, exigido pela moda. Em um concerto de piano, de música clássica, um pianista, mesmo frio no íntimo mas dotado de uma técnica invulgar — tão invulgar que arrebatará o auditório — será um melhor artista do piano do que um martelador de teclas, tremendamente emocionado, suando, gemendo, olhos em alvo, mas tocando tudo errado, quase esmurrando o teclado.

Se, com a arte moderna, o que interessa é a emoção do artista — e não o efeito, nos outros, do produto de suas mãos —, imaginemos que a ciência tenha inventado um aparelho capaz de registrar o grau de emoção e inspiração quando da execução de uma peça musical. Um aparelho, de eficácia comprovada, semelhante àquele usado hoje para medir a pressão arterial. Ou semelhante ao atual detector de mentiras. A diferença é que este último indica a presença da mentira, e o outro, mais moderno, comprovaria a real sensibilidade do artista. E prossigamos dando um exemplo.

Anunciada, com estrondo, a chegada ao país de um novo gênio da música, um pianista estrangeiro — tão genial que poucos ouvintes teriam a capacidade de “entender” a profundidade se sua arte — seu empresário mencionaria que a inspiração do artista não poderia ser fingida porque em seu braço estaria afixado o tal aparelho infalível que comprovaria o grau autêntico de sentimento que um ser humano pode suportar.

Na propaganda, que precederia o concerto inaugural do recém-descoberto gênio, haveria a advertência de que pessoas sem um excepcional grau de sensibilidade musical não deveriam, sequer, comprar os ingressos porque provavelmente não seriam capazes de “captar” a profundidade da arte escondida em aparência simplória. A presença do grande artista no país, seria até um favor prestado aos brasileiros. Mostraria aos próprios nacionais uma riqueza artística que eles não tinham percebido em seu antigo folclore. Essa falta de interesse em vender ingressos a pessoas sem sensibilidade artística até aguçaria a procura desses ingressos. Todos, comprando, estariam demonstrando quão sensíveis são à beleza artística.

No dia anunciado, Teatro Municipal lotado, ao braço do pianista seria atado o “detector de emoções sinceras”. Após impressionante silêncio o artista começaria a tocar, usando apenas um dedo:— “Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to, não morreu, reu-reu. Dona Chica-ca, ad’mirou-se-se, do berrô, do berrô que o gato deu, miau!”.

O auditório, pasmo, com vontade de rir mas temendo passar por ignorante, manteria o rosto sério mas ficaria observando o imenso painel eletrônico — conectado ao “aparelho da sinceridade”—, com a esperança de ver um mau “resultado emocional” que autorizasse a vaia represada na garganta. O aparelho, no entanto, confirmaria o ponto máximo da emoção artística sentida por um ser humano. A extraordinária inspiração do pianista estaria tecnicamente comprovada. Com isso, o público apenas se recriminaria intimamente: — “Devo ser um tremendo ignorante, mas não confessarei isso a ninguém. Vou aplaudir de pé”.

E se o artista sofresse um derrame, seu coração incapaz de aguentar tanta emoção, caísse morto ao terminar seu especial concerto, haveria uma longa discussão teórica sobre a genialidade do pianista e os motivos misteriosos que fizeram o artista escolher essa modinha e não outra. As teses seriam, entre outras: — “ Por que dona Chica atirou o pau no gato? Qual a simbologia dessa violência?”, e por aí afora.

Exagero, claro, no exemplo, mas em substância é o que ocorre com a desculpa de que o artista tem que pensar apenas no que sente ao externar sua arte. Pensar apenas em si. Não lhe interessa se o público sentiu ou não prazer autêntico. Se prazer houver no público, será o prazer de “de estar por dentro, enturmado, dentro da moda”.

Voltando à pintura, tudo ia bem com ela, no classicismo, até que surgiu uma novidade técnica, fora do mundo artístico, mas que abalou o pacífico panorama que valorizava a arte de desenhar as coisas tal qual se apresentavam aos olhos: a fotografia. Com um simples “flash” conseguia-se “desenhar” qualquer coisa, com uma precisão de traços e equilíbrio de proporções que só mesmo um Leonardo Da Vinci conseguiria. A difusão e aperfeiçoamento da fotografia foi a desculpa salvadora de muitos artistas que, não obstante o entusiasmo pela pintura, não conseguiam desenhar.

Estava aberto o caminho — ou atalho —, para o homem que admirava as artes, identificava-se emocionalmente com ela e gostaria de fazer parte desse misterioso mundo, cheio de seduções. As mulheres de então — fins do século 19 e início do século 20 —, sentiam uma especial atração pelos artistas, geralmente impetuosos e libertos de restrições em assuntos relacionados com a mulher alheia. Hoje, provavelmente, elas preferem os “artistas das finanças” e dos esportes de massa, muito mais lucrativos, digo, atraentes para elas. Os pintores eram, então, quase sempre homens.

O mundo artístico — quando sincero, autêntico — tem realmente uma faceta interessante. Suas intuições são, frequentemente, certeiras. Freud confessou que raramente chegou a alguma descoberta sem que algum poeta não tenha estado lá primeiro. A verdadeira arte tem isso de bom: ela alcança, “sem querer”, por intuição, áreas ainda não alcançadas pela ciência. Voa, mesmo caindo frequentemente, enquanto o cientista vai a pé.

Houve, também, com o advento da fotografia, o aparecimento dos “pintores espertos” que queriam apenas um caminho fácil e rápido para a fama e seu sub (ou super?) produto: dinheiro. Era a “democracia” artística que permitiria a qualquer audacioso, sem talento para o desenho, mas na caradura, “aparecer”, chamar a atenção. “A ordem, agora, é escandalizar!”. E quanto mais chocante seu trabalho — desconforme com a aparência normal dos objetos —, maior o “escândalo” capaz de chamar a atenção, com boas consequências comerciais.

Para enfrentar os observadores mais desconfiados, ou céticos, que diziam que ali só havia audácia, não arte, havia duas desculpas espertas: 1) quem quiser a reprodução exata de uma paisagem ou objeto, que tire uma foto; 2) nas artes, o que importa é sentimento do artista, não o produto físico, visível, dessa emoção.

Pablo Picasso foi quem, com maior franqueza, externou o argumento de que na pintura e na escultura o que vale é a emoção do artista, não aquilo que conhecemos como a “mera realidade”. Para ele, o pintor pode até pintar de olhos fechados, desde que esteja “inspirado”. O público não deve ser importar com a aparência. Deve apenas “sentir” o mesmo que “sentia o artista”. E falava essa bobagem com tanta convicção — extraordinário psicólogo que era — que alguns milionários passaram a comprar seus quadros, com isso provocando imensa valorização de qualquer quadro com a assinatura “Picasso”. Ele se dava ao luxo de dizer não ser suficientemente rico para ter em sua casa um “Picasso”.

Vejamos algumas citações dele, obtidas na internet.

“I paint objects as I think them, not as I see them”.   
(Eu pinto objetos como os penso, não como os vejo)

“Painting is a blind man's profession. He paints not what he sees, but what he feels, what he tells himself about what he has seen.”.
Comentário: era um engraçadinho.
(Pintar é a profissão de um homem cego. Ele pinta não o que vê, mas o que sente, o que ele diz a ele mesmo sobre o que viu).

“The people who make art their business are mostly imposters”.
(As pessoas que fazem da arte seus negócios são  na maior parte impostores)

“The world today doesn't make sense, so why should I paint pictures that do?”
( O mundo hoje não faz sentido, assim, por que eu deveria pintar os quadros que pinto?)

“To draw you must close your eyes and sing”.
( Para desenhar, você precisa fechar seus olhos e cantar”)  

“Who sees the human face correctly: the photographer, the mirror, or the painter?”
( Quem vê a face humana corretamente: o fotógrafo, o espelho, ou o pintor?).

O que explica, então, a permanência da arte moderna, seu alto valor econômico, mesmo sendo fácil, breve, chocante e nada coincidente com a realidade visível?
Para mim, a explicação está na personalidade do artista. Na audácia, na firmeza, na caradura, no “carisma”, na “personalidade forte”, como foi o caso de Picasso, grande psicólogo. Ou na integridade e compaixão, como foram os casos de Vincent Van Gogh e de seu amigo Paul Gauguin. É impossível ler a biografia desses dois sem que fiquemos comovidos com almas tão sensíveis. Sabiam desenhar? Sabiam o suficiente, mais que a média das pessoas que não são artistas. No entanto, eram pessoas de imensa integridade.

O caráter de um artista “contamina” sua obra, positiva ou negativamente. Influi bastante no que se refere a sua aceitação pelo público. Inclusive sua orientação política. O próprio Picasso se beneficiou disso. Tinha ideias generosas e era franco em suas opiniões, como se lê nas citações acima. Se ele tivesse sido um homem de direita, ou nazista, jamais seria considerado um pintor famoso. “Guernica” o impulsionou. O mesmo ocorre em outras artes: a personalidade do artista “contamina” sua obra, para cima ou para baixo.

Abstração é terreno mais apropriado para a filosofia, não para a pintura ou escultura. Penso que, pelo menos por longo tempo, o ser humano ainda exigirá algum grau de virtuosismo, dificuldade e trabalho em todo pintor. Nas competições esportivas, no circo, no desempenho cinematográfico, na redação de contos, romances, crônicas e poesias espera-se que o artista se expresse com uma habilidade acima do comum. Não aceito que um escritor apenas “sinta” emoções refinadas na sua misteriosa cachola, escrevendo apenas tolices, ou coisas incompreensíveis até para o próprio escritor. Daí o preconceito geral, fundamentado, contra aquela arte moderna que não agrada nem à vista e pode significar qualquer coisa: — “É fácil demais. Assim, até eu mereço um prêmio qualquer...”, pensam as pessoas mais sensatas.

Agora, uma palavra ligeira sobre a música. De todas as artes, penso que ela é a menos suscetível de enganação. A mediocridade musical não consegue flutuar muito tempo porque pode ser avaliada em questão de minutos. Afunda porque não há qualquer vantagem financeira em mantê-la à tona, quando não agrada a praticamente ninguém. Basta ouvir uma música nova, durante um minuto, para sabermos se vale ou não a pena continuar ouvindo. A abundância de sua produção e o tamanho do público são tais que não vale a pena gastar com propaganda de músicas que ninguém quer ouvir, nem muito menos comprar em forma de disco. Já com a pintura moderna, existe algo material e um restrito mercado de ricos compradores, funcionando os quadros como reserva de valor, quando o nome do pintor é muito conhecido. O quadro é físico, palpável, concreto, como se fosse um título de crédito. Já a música que ninguém quer ouvir é mero ruído, não interessa a ninguém, não há como transformá-la em joia.

Apenas com relação ao jazz é que cabe uma dúvida. A maioria das pessoas não gosta, porque não há uma melodia identificável. A meu ver, o jazz deveria ser utilizado apenas como técnica de composição. Os músicos ficariam na improvisação sem fim mas quando, por mero acaso, os errantes executores “topassem” com uma nova melodia, passariam a desenvolvê-la, compondo uma música “normal”.

Encerrando, a arte moderna tem sua utilidade na propaganda, no humorismo, na caricatura, na fabricação de enfeites, brinquedos, móveis, capas de livros, etc. Não como grande pintura ou escultura.

Alguém poderá perguntar: porque dizer tais coisas óbvias, desprestigiando museus e exibições de quadros e esculturas que servem como local de passeio, distração, conversas e namoros, dando emprego a muita gente?

É uma boa pergunta. Minha desculpa é que muitos pensam como eu e sentem-se insultados na inteligência. Pelo menos coloquei no papel o que muitos pensam mas não se atrevem a dizer. Ficarão mais confortados na nossa “santa ignorância”.

FIM