Quando, poucos anos atrás, decidi escrever artigos, com freqüência, na internet — atento às inegáveis vantagens da rápida difusão das idéias — mesmo com eventual lixo, próprio ou alheio (estamos empatados) — minha motivação principal era livrar-me da subserviência aos humores, marketings e demoras das editoras na avaliação de originais. Para despertar alguma curiosidade no assediado leitor sempre mencionava, como uma espécie de “currículo”, minha condição de desembargador aposentado. Uma discreta vitrine promocional, não censurável porque o que não é difundido simplesmente não existe. As próprias galinhas sabem, na cultura delas, que não basta botar o ovo, é necessário cacarejar.
Algumas décadas atrás o título de desembargador, então pouco generalizado, conferia a seu titular considerável aura de ponderação, cultura e honorabilidade. Aura que hoje não emite luz com igual intensidade. Certamente por causa de uma mistura de variados fatores: jornais investigativos tornaram-se agências privadas de inteligência, com sofisticada tecnologia de espionagem, descobrindo eventuais fraquezas antes não comprováveis; aumento extraordinário do número de magistrados com a denominação de “desembargador” (o prestígio de qualquer cargo é diretamente proporcional à sua raridade); o acesso ao serviço da justiça era muito menor, por parte da população e a legislação, menos complicada, possibilitava menor demora no julgamento dos processos. Juízes minuciosos no julgar sabem que não mais dispõem de tanto espaço em um mundo que valoriza a quantidade, a estatística, o “mérito” do “vapt-vupt” sentenciante.
Finalmente, não esquecer que, por honradez espontânea ou, na pior das hipóteses, por cálculo de vantagem profissional, os magistrados eram, em média, muito mais preocupados do que hoje em transmitir uma imagem — verdadeira — de honorabilidade e imparcialidade, benéfica à instituição, ao país e a eles mesmos, como profissionais. Juízes eram mais reservados, menos “arroz de festa”, o que lhes poupava suspeitas imprevisíveis de favorecer tal ou qual figurão submetido a um processo. Amizades e favores, mesmo inocentes, escravizam e possibilitam desconfianças de favorecimento. Na dúvida sobre reputações não funciona o “in dúbio pro reo”, velha máxima na área penal. A culpa, hoje, é sempre presumida. Quantos magistrados, não lamentam ter comparecido a alguma festa, sendo fotografado ao lado de pessoa depois alvo da mídia? Sobre a pletora de desembargadores e outros títulos honoríficos, um advogado que freqüenta Brasília me dizia que se alguém, no saguão de qualquer edifício, disser, em voz alta, “Ministro!”, metade dos presentes se volta, pensando que é com ele.
Por que menciono, na internet, minha condição de desembargador aposentado? Porque é o único “título” que poderia ostentar. Dizer o que? “Leitor compulsivo”? Não teria serventia. “Professor”? Impossível, porque é uma profissão que exige vocação para exposições didáticas, sem desvios, virtude que não tenho, como já constatou o leitor. Eu divagaria o tempo todo, na sala de aula. A rapaziada acharia tudo muito engraçado mas a reprovação os aguardariam nos Exames de Ordem. “Escritor” também já pouco representa — segundo a Câmara Brasileira de Livros, em 2009 foram publicados no Brasil 52.509 títulos. A fauna intelectual cresceu demais, vítima do conselho anti-ecológico de que todo homem deve ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. O que adianta plantar uma árvore para cortá-la depois, transformando-a em papel?
A qualificação de “desembargador”, mesmo aposentado, tem, porém, o seu lado negativo. Predispõe à auto-censura quando o assunto é, por si mesmo, indiscreto, e as conclusões do redator mais indiscretas ainda. Pensamentos na contramão do enfoque dominante “não combinam” com a função de julgador, mesmo quando este não mais exerce a profissão. Se o politicamente incorreto já trava o escritor ou jornalista “respeitado”, o que não se dirá de um magistrado ou ex-magistrado? Por outro lado, a intenção de pesquisar a “realidade feia”, deve, em tese, valer infinitamente mais que a preocupação com uma pomposa “seriedade”. É escorado nessa justificativa que escrevo o que se segue.
Entre todas as principais religiões existentes no planeta, o islamismo é a que mais cresce, segundo as estatísticas. Primeiro, porque os muçulmanos têm mais filhos que os praticantes de outras religiões, e filhos usualmente seguem a religião dos pais. Segundo, porque o Islamismo cultiva e exige, pra valer, até fanaticamente, um sentido de decência e pudor feminino — burca e vestes que cobram o rosto por inteiro — que, não obstante o evidente exagero e inconveniência — um terrorista pode estar no lugar de uma mulher — representa uma reação contra o calejado visual de bordel de segunda classe, presente, a qualquer hora do dia, na televisão e no cinema, no mundo ocidental. Avós e pais cristãos — ou mesmo ateus, quando não insensibilizados —, chocam-se, frequentemente, deparando-se com cenas de sexo explícito, ou quase isso, mal ligam a televisão e na sala há crianças, adolescentes ou pessoas idosas, habituadas a ver gente vestida. Nádegas, seios e diálogos explícitos relacionados com sexo oral e anal enchem as telas, como se todos os espectadores estivessem habituados a viver em tais ambientes.
Ocorre que a maior parte do auditório não vive assim. Até homens casados, de comportamento não exemplar, escolhem o ambiente em que dão vazão aos seus instintos sexuais normais. Geralmente, entre quatro paredes e sem filmagem. Mesmo moral e juridicamente cientes de que estão errados, preferem mais uma amante com algum pudor do que uma avacalhada companheira de ato, um animal de saia, ou melhor, sem saia. Mocinhas de boa família e até de bom comportamento, em outros aspectos, sentem-se na obrigação de mostrar, tanto quanto possível, seus atrativos sexuais. Não querem ser “caretas”, extrema humilhação. Por isso, usam calças compridas praticamente costuradas no corpo, com a finalidade de provocar desejos. Uma mera espiada, desencadeando um “raio” no cérebro masculino pode, quem sabe, valer mais, financeiramente, para uma mulher, que centenas de horas de estudo e peleja em um mercado de trabalho duramente concorrido. Assistindo entrevistas, escutam seus ídolos, artistas famosas, confessar, com a maior desenvoltura, que é preciso dar certas coisas para subir vida.
Queiramos ou não, o pudor é um “mistério” cerebral, presente na sensibilidade da maioria de homens e mulheres do planeta. Afastado o atual exagero muçulmano da mulher mostrar apenas os olhos — às vezes nem isso — a prática do pudor, quando na dosagem certa, beneficiará o Islã em termos de proselitismo. Parecerá mais “decente”, na prática, que outras religiões. Mesmo não sendo antropólogo, creio que o pudor não é apenas de um hábito cultural, adquirido, porque mesmo índios em regiões afastadas da civilização não costumam praticar o sexo em plena “praça pública”. E a televisão é uma praça pública virtual. De qualquer forma, a discrição na prática do sexo e o pudor das mulheres no exibir as “partes” é algo que se incorporou definitivamente à civilização, tal como a concebemos e assim continuaremos talvez por longo período. A chamada civilização cristã, não obstante o esforço de seus sacerdotes, não conseguiu que aquelas “cristãs de recenseamento”, seguissem um padrão menos apelativo de estímulo da libido masculina.
Em suma, quem, sentindo “um vazio” na alma, a sensação de lhe falta algo indefinível está propenso a mudar de religião, verá com melhores olhos a religião que exige, efetivamente, compostura de seus seguidores, principalmente das mulheres. E o islamismo se enquadra nessa exigência. Principalmente se vier a podar os conhecidos excessos: apedrejamento de adúlteras, açoite em praça pública, forca de homossexuais e outras práticas primitivas que provocam repulsa nos não-islâmicos e talvez em boa parte deles, embora não se atrevam a externar publicamente a repulsa, temendo represálias de governos teocráticos.
Finalmente, expliquemos o “bônus” islâmico da poligamia, referido no título deste artigo.
Nenhum biólogo sério negará que o homem — muito mais mamífero do que anjo — é polígamo por inclinação natural. Uma estatística, pré-AIDS, na Itália, dizia que cerca de oitenta por cento dos homens casados já tinham tido um ou mais “casos” fora do matrimônio. No Brasil, desconheço estatística a respeito e qualquer delas seria inconfiável porque poucos se atrevem de revelar suas fraquezas a estranhos. Somente padres, ouvindo confissões, poderiam talvez informar melhor, mas isso lhes é vedado. O inegável é que qualquer leitor sabe de inúmeras “fofocas” ou “fatos comprovados” entre parentes e conhecidos que redundam em separações e divórcios, amigáveis ou conflituosos, com pagamentos de pensão, disputa pela aguarda de filhos e demais traumas que atormentam homens, mulheres e filhos na civilização ocidental. Políticos, em particular, são alvos especialmente investigados por adversários — nem todos santos... — que tudo fazem para descobrir algum “podre” conjugal que possa significar mudança de voto nas eleições.
De todas as religiões monoteístas, o islamismo é a única que oferece uma solução “prática”, vantajosa (para o homem), quanto ao problema da paradisíaca conciliação de uma “vida privada incensurável” — embora com mais de uma mulher —com o exercício de qualquer cargo público, por mais respeitável que seja: a poligamia legalizada, como ocorre no mundo muçulmano. Esse o “bônus” referido no título deste ensaio. Muitos políticos ocidentais casados, com algum deslize já ocorrido, atual ou futuro, bem que gostariam de se livrar do medo de ser descoberto pela mídia, desde que “tratando igualmente bem todas as esposas”, exigência do Islã.
Os mórmons, nos EUA, praticavam aberta e unanimemente a poligamia invocando sua aceitação no Velho Testamento — Jacó, Abraão, Davi, Salomão, etc. — até que uma lei federal, de 1890 proibiu essa prática. Joseph Smith Júnior, o fundador da seita ( ou religião) teve mais de trinta mulheres, mas acabou sendo linchado, em junho de 1844, com um irmão e companheiros, por uma turba, quando estava preso e a cadeia foi invadida. Resta saber se os linchadores estavam verdadeiramente impregnados de santa indignação religiosa ou com inconsciente inveja “desses safados!”.
Oficialmente, a poligamia está abolida entre os mórmons, mas há quem diga que grupos dissidentes continuam a prática, de forma disfarçada. O dono da casa apenas fornece abrigo e alimentação desinteressada às inúmeras “parentes distantes” que, em troca, ajudam a criar as crianças e cuidam da casa.
Se a proibição legal da poligamia fosse levantada, qual a opinião do leitor sobre o crescimento ou diminuição de adeptos dessa religião? E qual a opinião da mulher ocidental — quando bem casada — a respeito da poligamia masculina? Rejeição violenta. “Os direitos não são iguais?”. No entanto, mulheres solteiras ou separadas, mas com poucas esperanças, talvez tivessem opinião mais tolerante. Terminada a II Guerra Mundial havia, na Alemanha, mais de sete milhões de mulheres condenadas à solidão irremediável. Os homens na faixa entre dezoito e cinqüenta anos haviam morrido na grande carnificina. Conseqüência: mulheres nas calçadas, forçadas à ganhar a vida na prostituição. O que fez o governo para tirar essas mulheres das ruas? Fechou os olhos à prática da bigamia informal, mal menor que a prostituição.
Hoje, porém, há um certo equilíbrio entre o número de homens e mulheres, o que não justifica mais, estatisticamente, o retorno da poligamia. A não ser, talvez, em casos excepcionais — em que década futura esse assunto será levantado por um legislador suicida? — quando a velha esposa, que não gostaria de viver sozinha, percebe que seu antigo casamento acabou, “biologicamente”. Nesses casos, a senhora preferiria não ver seu bom companheiro — virtuoso e dedicado em tudo o mais —, agir como um rato, acovardado e inquieto, mentindo constantemente para esconder algo que ela já sabe, há muito, mas prefere não demonstrar, só para não magoar. Não por fraqueza de caráter, mas por um tipo raro, ou estranho, de solidariedade humana. “Homens...É o jeito dele ser feliz... O fogo vai passar...Sei que já me amou muito; e ainda ama, de outro modo...”
Há, também, um outro argumento contra a poligamia, quando equilibrado o número de homens e mulheres: se metade dos homens ficar com duas esposas, a outra metade ficará sem esposa alguma, o que afronta a democracia e a igualdade de direitos. Com aumento da violência e estímulo indireto à homossexualidade por mera necessidade física.
Suponho que a espécie humana encontrará uma saída sábia para o problema de conciliação entre os espontâneos instintos naturais e os severos códigos morais. Elogiáveis pela intenção mas sujeitos a contínuas violações e conseqüentes tormentos; justamente porque as regras não coincidem com as necessidades naturais do ser humano. Mas, para isso, as religiões terão de fazer adaptações, ou fusões, hoje impensáveis.
Para encerrar, de forma bem-humorada, dissertação de tema tão difícil e desagradável, cabe aqui uma anedota: em uma aldeia da Polinésia, no Pacífico Sul, algumas décadas atrás, o pastor inglês, após doutrinar a tribo, convoca seu chefe e lhe diz que, doravante, como cristão, só poderá ter uma esposa. Ordena ao trêmulo líder que ele deve ir direto pra casa, reunir as cinco mulheres, escolher apenas uma delas e mandar embora as outras quatro. O chefe abana a cabeça e retruca: “Não! Eu ficar aqui! O senhor vai lá e diz isso pra elas!”
(17-8-2010)