Para mim foi
uma agradável surpresa ser alertado, por conhecidos, que o congelamento de
seres humanos para futura sobrevida —
Criônica — havia se transformado em uma novela da Globo, com o título acima.
Esclareça-se
que a Criogenia é um termo genérico, significando o estudo do efeito do frio
intenso na matéria e também nos seres vivos (peixes, frutas, etc.). Quando
aplicado no ser humano os americanos cunharam a palavra ”Cryonics”, que eu “aportuguesei”
para Criônica.
Bem antes de
2005 escrevi um longo artigo, “Criônica, um polêmico Mergulho no Futuro”, que posteriormente, em 2005, publiquei,
em papel, um romance, pela Edições Inteligentes, com o título “Criônica”, com o
subtítulo “O primeiro romance brasileiro sobre congelamento humano”. Por falta
de propaganda, ou porque o tema é algo meio lúgubre, ou “indigesto” — com
objeções até religiosas — pouco se falou ou comentou sobre esse livro no
Brasil.
Esse romance
está no momento disponível, gratuitamente, como e-book, conforme pode ser visto
no meu site, bastando acessar o site; www.500toques.com.br
Alertado,
como disse, sobre a existência da referida novela da Globo — há mais de 30 anos
não assistia novelas — fico contente de saber que o potencial da Criogenia em
seres humanos recebeu agora um impulso, pelo menos nas artes. Porém, como o
objetivo máximo das novelas é o de distrair pessoas — não o de aborrecê-las com
longas considerações técnicas e jurídicas — transcrevo, em seguida, o meu longo
artigo em que eu disserto sobre o “imorredouro” — propriamente dito —, anseio
do bicho homem em não morrer. Se possível, nunca. Quer continuar vivo, se não
for possível em carne, pelo menos em espírito, como informam as religiões.
Para o
telespectador mais terra-a-terra, ou “cientista”, da novela “O tempo não para”,
julgo que ele gostará de ler o despretensioso artigo abaixo, que fornece
informações demostrando que será possível, sim, em futuro não distante, impedir
que um ser humano doente incurável possa se congelar por anos até que a doença
que agora o mata seja derrotada com um futuro remédio. Acho um atraso um ser
humano morrer muito antes do tempo porque os cientistas ainda não conseguiram descobrir
o remédio que o salvaria. O frio que nos aborrece no inverno, congela e
paralisa vírus, bactérias e demais inimigos da nossa atormentada espécie.
Leiam,
pois, o artigo e depois, o romance “Criônica”, em versão e-book, grátis, que,
garanto, não é ficção científica. É bem realista e aborda também os aspectos
jurídicos do congelamento.
Tudo isso
sem deixar de assistir à novela.
"Criônica", um Polêmico Mergulho no Futuro.
Quando Alberto Santos Dumont, em 23 de outubro de 1906, nos campos de
Bagatelle, Paris, conseguiu erguer no ar seu fantasmagórico e desajeitado
"14–Bis", não podia imaginar que naquele momento lançava as sementes
de um futuro ramo do Direito, o Aeronáutico, aceito como autônomo nas mais
recentes constituições brasileiras. Espantoso é saber, hoje, que
no segundo voo, em 12 de novembro no mesmo ano, o aparelho percorreu 220
metros, em 31 segundos, na "vertiginosa" altura de dois metros. Foi o
primeiro voo controlado do homem. Uma velocidade — 37,50 km/h — ligeiramente
“inferior’, claro, à do "tataraneto" do "14-Bis", o
supersônico Concorde.
A evolução, como se vê, foi rápida. Já em maio
de 1927 Charles Lindbergh realizava a primeira travessia aérea do Atlântico, no
sentido oeste - leste, a comprovar a velocidade criativa do ser humano, pelo
menos na área técnica.
Quem, eventualmente,
assistiu algum filme documentário sobre a história dos foguetes certamente terá
se espantado com o desnorteamento desses primeiros artefatos que, contrariando
os cálculos dos engenheiros, mais pareciam gigantescos busca–pés sem vara,
destituídos da mais remota noção do lugar em que iriam cair. Nesses antigos
documentários é impossível deixar de rir — não obstante o trágico da situação —
quando se observa a velocidade de fuga das pernas dos técnicos, engenheiros e
operários — muito superior, no chão, à do "14 – Bis", no ar. Filmados
de certa distância, os homens parecem formigas desesperadas, fugindo do
provável local de impacto da máquina louca e mortal, porque carregada com
toneladas de combustível.
Não obstante este difícil
começo, em 1969 a "Apollo 11", nave tripulada, pousava no Mar da
Tranquilidade, Lua. Algo, inicialmente, para muitos — mesmo com formação
científica — inconcebível, porque os foguetes espaciais não possuem aletas que
possam influir no seu direcionamento. No vácuo as aletas são inúteis. Como já
observou alguém, o ar é inimigo do foguete e o vácuo é inimigo da aeronave. E
não esquecer que quando o foguete é acionado, o nosso planeta não está imóvel.
A velocidade de rotação da Terra é significativa. Só não somos centrifugamente
"cuspidos" para o espaço por causa da gravidade. Um mínimo erro de
cálculo no projeto e a tripulação da espaçonave perder-se-ia no imenso vazio,
numa viagem sem volta. Como calcularam, sem erro, tal viagem? Hoje, a tarefa é
café pequeno, comparada ao projeto de enviar nave tripulada ao planeta Marte.
Os "malucos" do
foguete — não esquecer o principal, o alemão Von Braun — não sabiam, à época, que lançavam não só seus
foguetes como também as bases de outro ramo do Direito, o Espacial, igualmente
alçado ao reconhecimento do legislador constituinte( art. 22 da Constituição
Federal de 1988).
Werner von Braun era tão
importante para os previdentes norte-americanos — que pouco sabiam, então, da
tecnologia dos foguetes — que as bases de lançamento das "V-2"
(foguetes que castigavam Londres na 2ª Guerra Mundial) poderiam ser destruídas pela aviação inglesa, desde que
poupados os dormitórios que abrigavam os cientistas. Detalhe que dificultava a
tarefa dos pilotos britânicos, obrigando-os a se aproximar perigosamente na
seleção dos alvos. Mas os ingleses, embora contrariados com a restrição, provaram
ter boa pontaria. Von Braun e seus colegas escaparam dos bombardeios e, finda a
guerra, foram requisitados para trabalhar nos Estados Unidos, apressando a
conquista espacial.
Um avanço tecnológico que,
suponho, ainda vai abalar nossa civilização — com reflexos óbvios na área
jurídica —, talvez em escala muito mais profunda que a invenção do avião e do
foguete, está na utilização do frio como forma de preservação de corpos
humanos, afetados por graves acidentes ou moléstias no momento incuráveis.
Se não nossos
filhos, pelo menos nossos netos bacharéis terão que coçar a cabeça e criar
normas jurídicas para disciplinar o espinhoso campo da criogenia, ou
criobiologia, no item de conservação de seres humanos em temperaturas extremamente baixas, para
descongelamento futuro. Haverá, consequentemente, em remoto futuro, um
"Direito Criônico".
A conservação, pelo frio,
de frutas, carnes, peixes, sêmen, ou óvulos fertilizados é, hoje, algo
rotineiro. Tais atividades referem-se à criogenia. Todavia, para a
"ciência", ou técnica — ainda incipiente — de conservação de seres
humanos não foi ainda cunhado um específico termo, no nosso idioma. E o caminho
natural para esse "batismo" parece ser o aportuguesamento da palavra
inglesa "cryonics", adotada por Robert Ettinger, professor de Física
norte americano, no seu livro "The Prospect of Immortality",
publicado em 1964. O acesso a informações sobre esse tema, na Internet, só é possível digitando-se a palavra "cryonics".
"Criônica", portanto, será a
provável denominação dessa novíssima área de pesquisa. De qualquer forma, a
palavra é o que menos importa, não tendo o signatário objeção ao uso de
qualquer outro termo, melhor escolhido por mentes autorizadas do mundo
acadêmico.
Mesmo o leitor
mais tolerante deve estar se perguntando: — O que leva o autor deste artigo a
procurar tão esdrúxula matéria? Não estaria o tema melhor localizado em uma
revista de Ficção Científica?
Realmente, o
assunto cabe nos dois espaços. E também no médico. Pondero, a título de
justificação, que os bacharéis também têm o direito de especular com o futuro;
embora o Direito, normalmente, só seja lembrado depois do trabalho pioneiro dos
cientistas e inventores. E assim mesmo quando surgem os primeiros conflitos de
interesse. O Direito é como o "leão de chácara", ou o agente
policial: só é convocado após as primeiras brigas na boate. Como, no Brasil,
pelo menos, não houve ainda qualquer conflito jurídico relacionado com o
congelamento de pessoas, para revivicação futura — e nem mesmo o congelamento
deliberado, em si —, é natural que aqui se desconheça até a palavra. E
satisfaço a curiosidade do leitor quanto à origem do aparecimento do tema.
Vários meses
atrás li, nas notícias internacionais de um jornal paulistano, que uma senhora
inglesa, provavelmente com doença incurável — a notícia era muito sumária,
quase telegráfica —, havia procurado uma firma, ou entidade, se não me engano
daquele país, que se dedica a essa nova e estranha atividade de conservação de
seres humanos em nitrogênio líquido — 196 graus centígrado negativos — até o
momento em que a ciência esteja em condições de, não só curar a doença, como
também de reparar os danos causados pelo prolongado congelamento.
Dizia, ainda, o
jornal, que o preço exigido para a conservação do corpo inteiro era
elevadíssimo — salvo engano do jornal, oitocentos mil dólares. Assim, não
dispondo de tal quantia, referida senhora contratou a empresa para que
conservasse apenas a cabeça ("neuro-suspensão"), o que implicaria na
redução dos custos para trezentos mil dólares. Confiava, certamente, na
possibilidade futura, embora remota, de "transplante de corpo".
Aparentemente,
referida senhora pagou caro, porque atualmente, na Califórnia, uma entidade
denominada "Alcor Life Extension Foundation" cobra cento e vinte mil
dólares para a conservação do corpo inteiro. Redução que parece ser um grande
avanço, em termos de difusão da ideia — presumindo-se que se trate de entidade
séria. O exótico da iniciativa não implica em desonestidade. E pelo que tenho
lido, um grande entusiasmo contagia os interessados em transformar a mera
possibilidade em realidade.
Como se tratava de uma
notícia sobre fato real, não uma brincadeira de ficção científica, ou
literatura de horror — a menos que se cuidasse de pouco provável
irresponsabilidade do jornal — interessei-me pelo problema como tema para
futura obra de ficção, sem pensar nos desdobramentos jurídicos.
Procurando material
informativo, a primeira providência natural seria dirigir-me às livrarias
especializadas em Medicina, mas as funcionárias de plantão nem mesmo sabiam do
que se tratava. Desconheciam até as palavras.
Através da "Livraria
Cultura", que lida com livros importados, fiquei ciente da existência de
um livro, "The First Immortal" ( "O Primeiro Imortal"), de
James L. Halperin, editora Del Rey, romance, obra de ficção, mas que poderia
trazer algumas primeiras informações. Seria preciso começar a pesquisa por
algum lugar. À míngua de obras "sérias" — jurídicas, nem pensar! — a
solução seria iniciar pelo tal livro. O volume, de preço baratíssimo, foi
importado através da mesma livraria, faltando, hoje, poucas páginas para eu
terminar sua leitura.
O que não esperava é
que o autor dessa obra fosse tão aberto, tão entusiasta do tema. Absolutamente
confiante quanto à real utilidade dessa nova tecnologia, que mexerá com a
profunda fome de eternidade que assola o homem desde o momento em que começou a
refletir sobre seu futuro. Ao contrário de muitos autores que, se
"fecham" quando encontram um novo filão, James Halperin menciona, no
livro, todas as fontes informativas, possíveis e imagináveis, dando endereços
completos e praticamente oferecendo a casa dele para receber as visitas dos
entusiastas.
Da leitura do
livro e de outras fontes, via Internet, conclui-se que as entidades que
iniciaram, efetivamente, essa atividade pioneira — ditas sem fim lucrativo, não
sei se todas, e que não relaciono aqui porque não visitei pessoalmente nenhuma
delas —, admitem que até agora não conseguiram a
"vivificação", digamos assim, de nenhum dos "pacientes"
(eles utilizam essa palavra; jamais "cadáveres", "mortos",
ou termos semelhantes).
Os adeptos da
revolucionária novidade apoiam-se na possibilidade teórica da preservação das
células, na temperatura do nitrogênio líquido — 196 graus Celsius negativo,
como disse — até o momento em que não só a doença for facilmente debelada como
também revertidos os danos causados pelo esfriamento. Com o "bônus"
eventual de um indefinido prolongamento da vida se detido ou revertido o
processo de envelhecimento.
Que o frio
extremo paralisa a atividade das toxinas destruidoras das células, não é
novidade. E em regiões geladas, há casos de pessoas encontradas aparentemente
mortas, com grave hipotermia, congeladas por duas ou três horas, e que,
convenientemente aquecidas e com auxílio de medicamentos conseguem voltar ao
estado normal. E, como disse, o congelamento de esperma bovinos e humano também
é procedimento cientificamente banal, não havendo indícios de que bezerros e
pessoas concebidas com esperma congelado sejam de alguma forma inferiores
àquelas concebidas normalmente.
O grande
problema técnico da Criônica — adotemos, pelo menos por enquanto, essa
denominação — reside no fato de nossas células conterem um alto percentual de
água, mais de setenta por cento. E
quando a água se congela formam-se cristais, dotados de arestas que perfuram a
membrana celular. Ao que deduzi, no processo de congelamento a água também
"vaza", congelando-se do lado de fora das células, entre elas. Com a
conversão da água em cristais de gelo há uma dilatação do líquido; algo
parecido com a ruptura dos canos que levam a água até as residências, nos
países de clima frio.
Para minimizar
tais danos celulares, as entidades que atualmente congelam seres humanos
retiram o sangue do indivíduo imediatamente após o seu falecimento, injetando
em suas artérias e veias uma substância chamada glicerol, que suaviza o
problema da formação dos cristais. Além disso, impregnam os corpos com
anticongelantes, permitindo que a água permaneça em baixíssimas temperaturas
sem o congelamento. Líquidos pelo menos assemelhados, suponho, com aqueles
usados em radiadores de veículos, nos países frios.
Os entusiastas
da Criônica apostam na invenção de uma técnica futura que resolva esse problema
dos cristais de gelo. Problemas muito maiores, dizem eles, já foram
solucionados pela humanidade. Por que apenas esse seria insolúvel?
Outra abordagem
dos novos desbravadores está na utilização futura da nanotecnologia, isto é, na
técnica de elaboração de "máquinas" microscópicas que, injetadas
imediatamente após o descongelamento, reparariam, uma por uma, as células
danificadas. Quem, ao que sei, mais desenvolveu as especulações a respeito
dessa ultrarrevolucionária perspectiva — a nanotecnologia, reconstrução das
coisas em nível molecular — é um cidadão de nome Eric Drexler, que publicou um
livro denominado "Engines of Creation", e um trabalho mais técnico
chamado "Nanosystems".
O uso da
nanotecnologia ("nano" vem de "anão") para reparação de
milhões de células danificadas pelo congelamento já é algo mais duro de
"engolir", intelectualmente. A confecção de tais "máquinas"
parece-me coisa para se pensar somente em futuro remotíssimo, bem além de um
século. É certo que a engenharia genética já trabalha a nível molecular,
alterando a posição dos genes dentro dos cromossomos, mas é pedir demais
acreditar que tão cedo se possam criar essas microscópicas "máquinas"
— ainda mais de proteína! —, aptas a consertar, uma por uma, as células
danificadas.
Os defensores
dessa nova técnica, a nanotecnologia — que seria, na Biologia, e demais áreas,
mais revolucionária que o "chip" do computador — argumentam que
alguns vírus já fazem isso sem prévia “formação universitária”. Esses
minúsculos seres grudam-se à membrana de uma bactéria, fazem nela um buraco,
injetam seus DNAs e ela passa a gerar, não novas bactérias, mas novos vírus.
Tornam-se "fábricas", ou "úteros", dos vírus invasores.
Como a natureza
consegue tais engenhosidades é realmente um mistério. Pessoas religiosas têm um
nome para isso. E, maior mistério ainda, é a própria anatomia e fisiologia dos
vertebrados. Mas nós, humanos, "instruirmos" uma "maquininha",
a consertar células danificadas — ou provocar a formação de réplicas sãs das
mesma célula — será tarefa para um futuro por demais distantes, se é que
chegaremos lá.
Nada a opor
quanto a essa ambiciosa intenção de utilização da nanotecnologia. O mundo nada
tem a perder, exceto tempo, com tais projetos, mas suponho que a ciência
resolverá o problema da danificação das células congeladas por outro caminho:
impedindo a formação dos cristais.
Alguém, com
senso prático, poderá perguntar: Como é que existem pessoas, nos E.U.A. que
arriscam seu dinheiro nessa aventura quando os próprios técnicos confessam que
a ainda não "ressuscitaram" um só paciente?
A resposta é
simples. Se o paciente sofre de moléstia incurável e apenas aguarda a morte
para ser enterrado, ou cremado, o percentual de chance de voltar à vida é zero.
Se congelado e "acordado" daqui a cinquenta ou cem anos a chance será
superior a zero, porque a evolução científica é cada vez mais rápida. Em
teoria, pelo menos, é perfeitamente possível esse rápido congelamento, seguido
da volta ao "status quo", desde que descoberta a técnica adequada.
Em 1966 um
cientista japonês, Isamu Suda, congelou o cérebro de um gato após impregná-lo
de glicerol. Um mês depois, descongelou cuidadosamente o órgão. Submetido a um
eletroencefalograma o aparelho registrou traços de algumas funções cerebrais. É
pelo menos o que diz uma página da Internet, "A Short History of
Cryonics", de autoria de Charles Platt. A tese do japonês, segundo o mesmo
autor, teria sido publicada na revista "Nature", periódico de bom
conceito no campo da Biologia.
Há também uma
boa justificativa, ou desculpa, para o não-descongelamento, até agora, de
pacientes mantidos em refrigeração: são pessoas portadoras de males incuráveis,
quase sempre câncer, doença para a qual ainda não existe tratamento infalível.
Descongelar pacientes, no momento, a título de demonstração, seria
irresponsabilidade e quebra de contrato. O compromisso da entidade congeladora
é de descongelar quando a doença for perfeitamente curável, e aplicada a
técnica capaz de reverter os danos causados pelo próprio frio. É preciso
lembrar que o frio extremo também pode provocar fraturas.
Ao que dizem os
entusiastas da Criônica, alguns cães foram descongelados, aparentemente sem
dano, mas somente poucas horas após o congelamento.
Como se vê,
estamos mais em uma situação de aposta. E como boa parcela da humanidade gosta
de jogar, supõe-se que logo, logo, teremos alguns apostadores, aqui mesmo no
Brasil, fazendo sua "fezinha".
Um problema que
ainda amarra a difusão dessa inusitada tentativa de sobrevivência está no custo
financeiro. As entidades que inicialmente se dedicavam a essa atividade
recebiam dos parentes do paciente a promessa de uma contribuição mensal para o
custeio do serviço de conservar o corpo
em nitrogênio líquido. Por mais isolado, termicamente, que fique o corpo nas
seus “tubos” — denominados "dwar" —, um pouco de calor ambiente
penetra no recipiente de alumínio, evaporando parte do nitrogênio. Assim, é
preciso, com certa periodicidade, acrescentar mais nitrogênio líquido, o que
custa dinheiro, se bem que não muito pois o nitrogênio, em si, é abundante na
natureza.
A experiência,
entretanto, comprovou que essa sistemática financeira não era adequada. Os
parentes do "morto" logo perdiam o interesse de aplicar recursos em
algo tão incerto — e conflitante com seus próprios interesses. Se "o velho
doido" realmente "acordar" — os herdeiros pareciam pensar — será
que não vai exigir o dinheiro da herança de volta?". E, sem recursos para
a manutenção dos corpos os “pacientes” acabavam descongelando.
Em 1978 surgiu
uma demanda nos EUA que abalou severamente a já exígua confiança da população
nessa história de congelar pessoas. O episódio ficou conhecido como "O
Escândalo de Chatsworth".
Robert Nelson,
o primeiro "crionauta", grande entusiasta do assunto, talvez um homem
honesto, anteriormente simples consertador de aparelhos de televisão, foi o
fundador da "CSC – Cryonic Society of California". De boa ou má-fé no
seu pioneirismo, foi acusado, pelos parentes de um dos pacientes, de
negligência na conservação dos “pacientes”, permitindo que os mesmo se
descongelassem. Jornalistas, policiais e legistas obtiveram autorização
judicial para examinar os porões da empresa e constataram que os corpos estavam
apenas parcialmente congelados, o que resultou na condenação da CSC a pagar
alta indenização, juntamente com o agente funerário que o ajudava nos trabalhos
de preparação dos pacientes.
No processo,
Robert Nelson, defendendo-se, alegava que os mesmos parentes de pacientes que
não pagavam a manutenção — violando o contrato — é que se diziam vítimas do
dano moral. Os parentes, por sua vez, argumentavam que não pagavam justamente
porque não confiavam na seriedade do negócio. Ao que deduzo — porque não tenho
como examinar o caso a fundo — a questão se tornou semelhante à velha disputa
sobre a antecedência existencial do ovo ou da galinha.
De qualquer
forma, o caso teve repercussão ruinosa à reputação da Criônica, mas serviu para
provar o equívoco da sistemática contratual de se deixar para os parentes do
"morto" a incumbência de pagar a manutenção do paciente. Assim, os
incansáveis entusiastas da novidade passaram a exigir pagamento adiantado.
A nova técnica
financeira, todavia, apresentava a desvantagem de exigir uma verba alta para
algo tão incerto. E os parentes "do velho maluco" tinham bons motivos
para se opor a esse desfalque em suas perspectivas financeiras. Mesmo porque,
convenhamos, o assunto, em tese, é propício aos espertalhões de todo o gênero.
Como saber se o "empresário do gelo" está mesmo agindo de boa-fé?
Quem garante que a "firma" vai estar operando daqui a vinte, trinta,
cinquenta anos?
Novamente, os
ousados norte-americanos encontraram uma saída financeiramente mais engenhosa:
o paciente, bem antes do fim, antes mesmo de ficar doente, faz um seguro de
vida, instituindo a entidade "congeladora" como beneficiária. Com um
prêmio mensal relativamente baixo, um homem de trinta e cinco anos pode
acalentar a ideia de uma quase eternidade — supondo-se que daqui a cinquenta,
cem anos, o processo de envelhecimento esteja revertido por meio da engenharia
genética. E os possíveis herdeiros não sentirão uma sensação de perigo, desde
que o amado pai faça um testamento dizendo expressamente o que fica para os
herdeiros, em definitivo, após o congelamento.
As poucas
entidades que, nos EUA, trabalham nessa área, aconselham os candidatos a
contratarem o seguro o mais cedo possível, porque quanto mais jovem menor o
prêmio mensal exigido pelas seguradoras. Lembre-se que pessoas atacadas de
doenças graves não são aceitas pelas companhias de seguro. E se omitir a doença
na proposta, a indenização não será paga.
Com o tempo, as
entidades do ramo também aprenderam que tinham de operar com base mais
profissional, diminuindo os riscos financeiros de uma demanda de indenização
que pode arrasar qualquer empresa. Se uma empresa dessas tiver que pagar alta
indenização, ficará privada dos fundos necessários à manutenção dos demais
pacientes, que nada têm a ver com aquele processo, e que verão derretidas não
só suas esperanças como suas próprias formas físicas.
Pensando nisso,
as empresas passaram a operar em segmentos distintos: umas cuidam apenas das
operações iniciais, logo após a morte do paciente. Outras cuidam somente da
conservação. Objetos sociais e patrimônios distintos. Se um parente achar que
seu pai foi "pressionado" a assinar o contrato, não estando, em razão
do desespero, em condições de bem discernir o que fazia — e convencer disso o
tribunal — a indenização será imposta apenas à empresa que contratou com o
paciente. A entidade incumbida da conservação nada tem a ver com esse vício de
vontade, com aquela demanda, não sofrendo abalo capaz de comprometer seu objeto
social.
Como se vê,
quando chegar ao Brasil essa estranha atividade, múltiplos serão os problemas
jurídicos a serem solucionados. Principalmente na área criminal, pois é da
essência dessa nova atividade congelar o paciente o mais depressa possível após
a morte. Em muitos casos, a presença dos paramédicos — o futuro paciente passa
a usar uma pulseira, ou colar, para rápida localização e convocação dos
técnicos — ao lado do iminente defunto, esperando, atentos, poderá caracterizar
um induzimento ao suicídio. Um paciente com início do "Mal de
Alzheimer" achará conveniente se congelar antes que seu cérebro fique
totalmente deteriorado. Tecnicamente, haverá um suicídio. E a
"equipe" da entidade conservadora dificilmente escapará de uma
suspeita de homicídio ou induzimento ao suicídio. Outro problema: se congelado
um criminoso, corre contra ele, nesse período, a prescrição da sua pena? A
legislação, como se vê, terá que ser profundamente alterada, principalmente
criando mecanismos de vigilância das entidades, talvez com atuação do
Ministério Público. — "Mais essa!", será a reação de qualquer membro
do "parquet".
As religiões se
levantarão contra a ideia. Dirão: - " E a alma, como fica? Nos anos de
congelamento, por onde andará? Um budista dirá que foi reencarnada. Assim, como
traze-la de volta, abandonando o novo corpo?"
Tudo isso soa agora
como divagação ociosa, ou quase insulto. Mas tenho certeza que a humanidade
seguirá por esse caminho. Se vai dar
certo, não sei. Mesmo porque, principalmente dando certo, surgirão problemas
sociais, inclusive de aumento populacional. O que pode minimizar o
desenvolvimento dessa atividade é a perspectiva, cada vez maior, de a
engenharia genética alterar o processo de envelhecimento nas pessoas ainda
vivas, fazendo com que as células se renovem como se se tratasse de um
organismo jovem. E também a cura das moléstias atualmente incuráveis. Mas restarão, certamente, muitas doenças sem
cura, mesmo com a engenharia genética. E talvez doenças ainda desconhecidas.
Uma coisa é
certa: o homem anseia pela imortalidade. Da forma que for possível. Espiritual
ou material. Antes, apenas espiritual, porque não havia alternativas. Agora,
com o mero aceno de uma eternidade biológica, centenas ou milhares de pessoas
tentarão embarcar nessa aventura, desde que economicamente viável. Assumirão o
risco, pura e simplesmente. Inclusive o de "acordar" em um mundo
totalmente diferente, o que para muitos é até algo excitante, não triste.
Presumem que o "novo mundo" será menos hostil que o atual, porque
mais civilizado. Homens e mulheres “da idade da pedra” acordando em pleno centro
refinado de Paris.
Sempre
existiram os aventureiros. Os vikings arriscavam-se pelos mares sem grandes
cautelas, até mesmo desconhecendo a bússola.
Para muitos, a
vida é excessivamente curta. Mesmo agora, com uma expectativa média de setenta
e cinco anos. Até os vinte anos o "cavalinho" de duas pernas galopa
alegremente pelo mundo, relinchando e escoiceando de alegria — isso tendo sorte
na "escolha" dos pais. Depois, cai na dura luta pela sobrevivência.
Batalha para sustentar a família, raramente trabalhando no que realmente gosta.
Entrando na aposentadoria, poderia fazer o que realmente o satisfaria mas aí
percebe que suas forças estão em clima de fim de festa. E morre frustrado.
A Criônica será
essencial para a conquista do espaço. Para o homem atingir outros sistemas
estelares, mesmo da nossa galáxia, terá que tripular as naves espaciais com
pessoas de extrema longevidade, tendo em vista as enormes distâncias. E nenhum
cosmonauta espera viver, agora, trezentos ou quatrocentos anos.
"Ars
longa, vita brevis", foi sempre a queixa dos artistas. E não se argumente
que nossos filhos e netos terminarão as obras por nós iniciadas. Não! Eles
nascem com outros interesses. E têm direito a isso. O pai é, digamos, um grande
cientista, com longo projeto de trabalho pela frente. O filho, porém, prefere
passear de moto, escrever versos, construir prédios, desenhar carros ou
escrever obras jurídicas. Cada geração que vem ao mundo é uma nova invasão de
bárbaros, já disse alguém. O trabalho do cientista será, talvez, terminado por
uma estranho. E muito depois, porque ele não virá tão "embalado".
Mesmo um médico, interessado apenas em sua profissão, dificilmente poderá
abarcar todo o conhecimento médico de nossa época. E essa limitação, para
alguns, "dói". Se há quem repreenda essa excessiva curiosidade
intelectual, outros a defendem, dizendo que tais curiosos são o sal da
terra. Outros gostariam de dominar
várias línguas. Para gente tão curiosa nossa atual extensão de vida é insatisfatória.
Há quem goste de viver, e disposto a lutar por uma duração muito maior que a
atual.
Até agora a
"eternidade" estava restrita à alma, ou memória. Deixar um bom nome
na face da terra. Escrever um grande livro, pintar um quadro famoso, compor
música inigualável, ser indicado para um "Oscar". Pelo menos uma
placa de rua, ou um banco com seu nome na pracinha do interior. Ou até mesmo,
paradoxalmente, se não houver outra alternativa, cometer um crime famoso,
assassinar um estadista, ou cantor.
O que o homem
não aceita é a ideia do nada. Imagina-se apodrecendo. À noite, revira-se
inquieto no leito, imaginando-se como estará quando estiver na cova. Rilha os
dentes, falsos ou verdadeiros, só em pensar que ninguém se lembrará dele da
forma que ele imagina como justa, apesar de suas falhas como ser humano.
Assim é a
humanidade. E por isso não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, aqui
mesmo no Brasil, surgirão entidades — honestas ou desonestas, como em tudo o
mais — que explorarão esse anseio jamais satisfeito por uma vida bem mais longa
e certamente mais promissora, em tempos desconhecidos. Se vai acordar — se
acordar — meio abobado, paciência. E as companhias seguradoras estarão de olho
nesse vazio, por enquanto não preenchido. Os próprios médicos, agora cautelosos
quanto ao assunto — receiam se desmoralizar com muito otimismo — examinarão
melhor as possibilidades técnicas. Concluirão, certamente, que a tarefa de
salvar a humanidade da doença e da dor não implica, necessariamente, em
restringir sua missão ao uso dos recursos técnicos atualmente disponíveis.
FIM
Autor:
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues.
Desembargador
aposentado do TJSP