segunda-feira, 21 de março de 2016

Sem uso do bom senso, nenhuma lei ou teoria presta

O bom senso — a capacidade natural e intuitiva de ver os fenômenos na correta proporção — sempre foi encarada como uma espécie de “prima pobre” na avaliação da inteligência. Falta-lhe o “brilho”, a “novidade”, o “frisson” capaz de despertar a atenção geral. Ninguém fica famoso usando apenas o bom senso, mesmo quando mais refinado. O máximo que dirão dele é que “Fulano de Tal, coitado, não é capaz de grandes voos, mas até que nisso ele tinha razão...’.

Mencionei, acima, o “refinado” porque, como qualquer qualidade, há gradações dentro do próprio bom senso. Há o bom senso do culto e o do ignorante. Do mais e do menos inteligente. Do mais e do menos corajoso no externar o que realmente pensa, quando a audiência é hostil. De qualquer forma, a humanidade nunca estará em condições de dispensar o uso dessa qualidade tão modesta mas que serve como freio ou equilíbrio no uso das brilhantes inovações teóricas ou tecnológicas. Dificilmente veremos, mesmo em futuro distante, o computador travar a digitação enquanto adverte o usuário: — “Para! Agora o amigo está delirando!”.

Enfim: as mentes “brilhantes”, inovadoras, inventam coisas novas mas antes de pô-las em prática é bom consultar antes o “Departamento de Bom Senso”, ou de “Controle de qualidade”. Mesmo porque às vezes o brilho é enganador, se melhor examinado. Poderíamos ficar conversando horas sobre isso.

O presente artigo abordará alguns tópicos do atual conflito entre teorias jurídicas, leis, decisões judiciais e o mais elementar bom senso. A exposição será despojada de erudição. Será direta, acessível à compreensão de qualquer leitor preocupado com o que vem ocorrendo na área da justiça e suas consequências inquietantes. Todo cidadão de bem sente-se hoje vagamente ameaçado por inimigos desconhecidos, portando armas mortais ou desonestas lábias visando enganá-lo na alma ou no bolso. Todos exigem o fim da impunidade (a alheia...) mas protestam, com indignação, contra qualquer tentativa de acabar com a própria. E o texto lembra que a falta de bom senso pode se apresentar também na forma de omissão.

Comecemos pela “teoria do domínio do fato”, que se discutiu muito no julgamento do “mensalão”. Defensores dos acusados, de modo geral, foram hostis a essa teoria, insistindo que a presunção de inocência e as garantias individuais foram violadas pelo STF quando ele condenou réus apenas com base na presunção de que eles seguramente sabiam do que ocorria de ilícito na área que chefiavam. Entendem que, no Direito Penal, nunca se pode presumir dolo ou culpa, cabendo apenas à acusação o ônus de tudo provar, como se o promotor estivesse presente na cena do crime, algo impossível de ocorrer.

A “teoria do domínio do fato”, no entanto, representou um grande avanço, imprescindível, no Direito Penal, considerando a imensa complexidade da vida moderna e o fato de que os magistrados não são ingênuos, incapazes de deduzir o óbvio. No entanto, sem muito bom senso e equilíbrio na utilização dessa teoria, o resultado pode ser tanto a impunidade dos criminosos mais astutos, que não deixam rastros, quanto uma tremenda injustiça individual.

Exigir, a defesa, que a acusação “prove” sempre, em todos os processos — com testemunhas ou documentos — que o superior hierárquico sabia dos “malfeitos” de seus subordinados, é incentivar a criminalidade especializada nos crimes de grande significado financeiro. Mesmo o mais avoado — porém doloso —, “cabeça” de empresa, partido, ministério, ou órgão governamental, jamais deixará sua assinatura dando a ordem ou aprovação de algo que, futuramente, poderá resultar em seu encarceramento. Se falar, não será por telefone, sempre “grampeável”, nem na presença de pessoas que possam um dia depor contra ele. Daí a necessidade da criação da “teoria do domínio do fato’(leia-se: “quem manda no ‘pedaço’ está ciente das grandes jogadas”).

Por outro lado, não se pode presumir que só porque Fulano de Tal é chefe, ou diretor, ou presidente, ele sabia, ou deveria saber, o que ocorria entre dezenas, centenas ou milhares de seus subordinados. O diretor de uma grande fábrica de veículos, por exemplo, com mil funcionários, não pode ser condenado porque dois ou três automóveis saíram da fábrica com compartimentos capazes de esconder drogas ilícitas. Ou porque dois ou três empregados traficavam cocaína, reservadamente, no ambiente de trabalho. Afinal, o diretor não tem o dom da ubiquidade. Nesses casos a acusação tem que provar que o grande — e amalucado — diretor sabia e, portanto, aprovava tais irregularidades que só prejudicavam seu próprio negócio.

Em contrapartida, há certas ilicitudes que não podem existir sem o conhecimento e apoio do chefe, diretor e posições equivalentes. A menos que o réu prove, convincentemente, sua inocência — alegando, por exemplo, um bem arquitetado complô para incriminá-lo — será justa sua condenação com base na presunção de que conhecia e mesmo ordenava a conduta delituosa que o beneficiava. O ônus da prova criminal, em sua totalidade, não é encargo, sempre, da acusação. Esta tem apenas o dever de provar os fatos que incriminam o réu. Se a evidência  produzida pela acusação é forte, crível, cabe ao réu fazer prova contrária; ou demonstrar, de forma convincente, com fortes argumentos, que ela é falsa, ou inconfiável. O que não pode é levantar algumas generalidades, ou dúvidas, que beneficiariam o réu e exigir que a acusação “prove” que tais generalidades não ocorreram. O acusado não é um mero observador do que acontece na esfera probatória. 

Se a acusação consegue comprovar o crime de evasão de divisas, em valores significativos, é de se presumir que a direção da empresa conhecia o fato, mesmo sem outras provas da responsabilidade do “chefe”. Isso porque se a evasão de divisas fosse resultado da apropriação indébita de um  funcionário da empresa, em proveito próprio, ele enviaria o dinheiro para sua conta particular, ou de um comparsa. Nunca para a conta da empresa em que trabalha. Vale, no caso, a usual pergunta: “A quem interessa?”.

Enfim, a teoria do domínio do fato é bastante inteligente, necessária e oportuna, mas não será aplicada “automaticamente” contra o réu, só porque ele é o responsável máximo da área em que ocorreu o ilícito. A se aceitar a responsabilidade penal automática do “chefe”, nenhum presidente, governador, prefeito ou diretor de empresa escaparia da prisão porque, afinal, seus subordinados não foram recrutados no céu.

E por falar em crime financeiro, é incrível, até mesmo “obsceno” — segundo alguns juristas —, o que se está tentando fazer no Congresso Nacional. Quem mostrou isso foi o jornal “O Estado de S. Paulo’, em editorial, ou artigo de fundo, da pág. A3 da edição de 5-2-13, “A reforma dos Códigos”. Na verdade, o fato é tão impressionante, para o lado negativo, que não se trata apenas de ausência de bom senso: aí se cuida de evidente má-fé de algum legislador.

Trata-se do seguinte: na Reforma do Código Penal, na parte de crimes financeiros a comissão que, no Senado, redigiu o projeto, segundo o jornal, “... deixa de listar, como delito, o funcionamento de instituição financeira não autorizada e a adoção de contabilidade paralela pelos bancos. Além disso, limita o conceito jurídico de “evasão de divisas” apenas à saída física do dinheiro. Isso significa que um doleiro que fizer uma remessa por meios eletrônicos ficaria livre de punição”. E todo mundo sabe que tais remessas são feitas, quase sempre, via computador, por ser mais cômodo, rápido, e livre de roubos.

Não fosse a vigilância do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) essa barbaridade tornar-se-ia lei. E talvez se torne, se não houver reação.

Está ainda em gestão outro “Bebê de Rosemary”— filme que mostra um menino, filhote de diabo, com poderes sobrenaturais — nesse projeto: a criminalização de eventuais violações das prerrogativas dos advogados. Segundo a proposta legislativa, se o juiz indefere um pedido apresentado por um advogado e este considera que, direta ou indiretamente, esse indeferimento viola alguma prerrogativa do advogado, a decisão do juiz seria um crime. E sendo crime — diz o art.301 do Código de Processo Penal —,  “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

Considerando a grande variação de temperamento entre os seres humanos, o advogado poderá — com base nessa perigosa legislação proposta — fazer queixa num Distrito Policial, ou, quem sabe, solicitar, no ato, a prisão em flagrante do magistrado.  Ou, talvez, ele mesmo dominar fisicamente o juiz. Teríamos folclóricos confrontos físicos entre juiz e advogado, ambos rolando pelo chão, na sala de audiências, cada um tentando prender o outro. O juiz dizendo-se vítima de desacato e o advogado alegando violação das prerrogativas profissionais.

 Se há, eventualmente, algum desrespeito do advogado, por parte de algum magistrado grosseiro e pouco inteligente, o normal seria o advogado fazer uma representação à Corregedoria da Magistratura, para uma eventual punição, como é usual. Se a Corregedoria entender que o abuso do juiz chegou ao ponto de caracterizar um crime, poderá tomar providências criminais a respeito. É obrigação de todo magistrado tratar com respeito não só advogados como também partes, testemunhas, funcionários e qualquer pessoa com quem entre em contato. Se não procede assim, a solução é o advogado fazer uma representação. Mesmo que considere, eventualmente, que a Corregedoria não age com o rigor recomendável, se houver repetidas queixas contra a grosseria do juiz certamente a Corregedoria tomará providências. O que não tem cabimento é transformar todos os advogados do Brasil em autoridades que possam prender, ou mandar prender, delegados, policiais, porteiros, oficiais de justiça, escreventes, testemunhas ou quem lhes pareçam violadores de suas prerrogativas. Cabe também lembrar que a arrogância tanto pode existir em um juiz quanto em um advogado, ou qualquer ser humano.

Um outro exemplo — em fase de germinação no Congresso — de falta de bom senso está na tentativa legislativa da Polícia de impedir que membros do Ministério Público possam fazer uma investigação por conta própria. Os delegados alegam que a Constituição Federal diz que cabe à polícia investigar, e ponto final. Mas, pergunta-se: quando o M. Público sabe, ou desconfia, que o crime está sendo praticado por um policial de alta posição, ou por um político de enorme prestígio? O poder, ou influência, do réu, ou de figura acima dele, desvirtuará toda a investigação. Poucos terão a coragem de depor contra poderosos que poderão fazê-los perder o emprego ou mesmo a própria vida. É evidente que o M. Público, até por questão de comodismo, não ficará desperdiçando tempo brincando de Sherlock Holmes. Não obstante, o absurdo da pretensão da Polícia poderá transformar-se em lei, porque qualquer coisa pode passar no Congresso Nacional, pouco interessado em examinar minuciosamente os projetos.

Finalmente, um caso de falta de bom senso, desta vez na forma de omissão judicial. Talvez explicável porque até recentemente — antes do “mensalão” —,  não havia necessidade de medidas mais severas estabelecendo limites e deveres para advogados e magistrados. Refiro-me ao Supremo Tribunal Federal.

O STF sempre foi um Tribunal muito respeitado. Merecidamente respeitado. Nunca foi acusado, até recentemente, de abusar da circunstância de “dar a última palavra”. Por isso, certamente, não precisou incluir no seu Regimento Interno, algumas disposições mais enérgicas, afetando os próprios Ministros, evitando demoras que impedirão o trânsito em julgado das condenações impostas no “mensalão”.

No entanto, com a referida Ação Penal 470 —, uma quase “Revolução Francesa judicial” — surgiu uma nova realidade. E, se não houver — urgentemente — providência da Corte Máxima, corrigindo duas omissões do seu Regimento Interno, o STF sofrerá uma avassaladora perda de prestígio, pois nenhum dos condenados do mensalão cumprirá pena alguma. E o país, perplexo, se indagará: — “Para que serviu tanto esforço, tantas sessões de julgamento, se não foi possível executar a decisão por omissões do Regimento Interno?”.

Digo isso não porque me alegre ver políticos na cadeia, mas porque não me agradaria presenciar a desmoralização de um Poder que — quando bem exercido —  só melhoraria o dia-a-dia de todos nós, com menos criminalidade, mais honestidade — até mesmo nos negócios —, menos desigualdade, mais rapidez na solução dos conflitos e tudo o mais que existe de bom e necessário para a vida em sociedade. Quando o Judiciário funciona, em qualquer país, menos “malfeitos” ocorrem, porque o infrator prevê que não vale a pena por em risco sua liberdade.

O que precisa ser modificado no Regimento Interno do STF? Primeiro: estabelecer um limite quantitativo para apresentação de embargos de declaração. Um só. Ou nenhum. Atualmente, não há limites previstos. Em tese, um réu pode apresentar infindáveis embargos de declaração, sempre insistindo que o último acórdão omitiu ou foi contraditório. Com isso o réu impede o trânsito em julgado da decisão. Imagine-se cerca de trinta condenados apresentando sucessivos embargos de declaração, com necessidade de julgamento em plenário. Será um nunca acabar, com prescrição total ou quase isso. Há países, por sinal, em que nem está previsto o “recurso” de embargos de declaração. Quando há algum erro na decisão o próprio tribunal corrige — uma quantia, ou nome, por exemplo. Note-se, ainda, que se os embargos de declaração não podem alterar o resultado do julgamento, tem havido casos em que a retificação de um detalhe repercute na integridade da decisão, provocando reação em cadeia. 

Essa modificação do R. Interno do STF precisa ser feita já, antes que sejam redigidos e apresentados todos os votos dos dignos Ministros. Modificar o Reg. Int. depois de apresentados os previsíveis embargos será interpretada como uma parcialidade impensável.

Um outro ponto que precisa, data vênia, ser alterado com urgência é a omissão do Rg. Interno no estabelecer um prazo para os Ministros apresentarem seus votos.  Em tese, hoje, um Ministro pode demorar tanto tempo quanto quiser para redigir seu voto. Não poderá ser “pressionado” regimentalmente para apresentar seu voto, mesmo sabendo do risco da prescrição, porque o Regimento, tal como se encontra, não menciona prazo algum. Ressalte-se que nenhum Ministro pode alegar que “não pode ser forçado a julgar com pressa” porque ele já deu sua opinião. Trata-se apenas de retocar, se for o caso, o que já consta de seu voto, lido no julgamento.

Finalmente, seria talvez aconselhável um reexame do Reg. Interno no que se refere aos “embargos infringentes” (utilizáveis quando a decisão não é unânime). Bastam, no caso, quatro votos a favor do réu, para se conhecer e julgar tais embargos. Dependendo do voto dos dois Ministros a serem proximamente nomeados, não será difícil chegar a um empate, nos casos individuais mais polêmicos, empate que implicaria em absolvição.

Com a devida vênia, caso o Reg. Int. do STF não seja logo modificado, serão necessárias terríveis piruetas interpretativas para tornar exequíveis as condenações impostas no “mensalão.

Se as condenações prescreverem — depois do famoso julgamento — a população não conseguirá entender o que aconteceu. Ocorrerá uma tal decepção popular que será menos daninho ao prestígio da Justiça se a Presidente da República anistiar todos os réus. Pelo menos, a Justiça poderá dizer: “A culpa não foi nossa. Foi a Presidente que assim quis e isso está previsto na Constituição Federal”.

Há quem pense que alguns condenados do mensalão apenas tiveram o azar de serem descobertos, porque a prática política “é assim mesmo”. Para essas almas benevolentes já houve suficiente punição no “susto” que tiveram. Entendem que seria tolerável a prescrição. Além do susto ocorreu uma tremenda punição, mesmo sem cadeia: o desmoronamento de suas vidas, em termos políticos, profissionais, financeiros e até familiar. O que não sei é se o povo brasileiro também pensará com tanta benignidade.

Como já disse no início, a falta de bom senso pode ser apresentar também em forma de omissão. Se o honrado e audaz Min. Joaquim Barbosa e seus colegas já anteviram os problemas e estão tomando providências redacionais no Regimento Interno — sem anunciar isso na mídia —, peço desculpa pela pretensão do alerta desnecessário.

                                                                                           Francisco Pinheiro Rodrigues, 17-02-2013.




terça-feira, 15 de março de 2016

Alguém ainda duvida da necessidade de um governo mundial?

O Oriente Médio, hoje, é uma das melhores provas desse imperativo. Há outras, como o quase “fracasso” da OMC — nada mais lógico, natural, sem culpa específica de governo algum —, a poluição ambiental e o crescimento populacional caótico, onde quem pode criar bem os filhos, não os têm e quem não pode, os tem em abundância.

Há idéias simples e eficazes que, não obstante assim sejam, despertam precipitadas reações, seja do raciocínio, do lado emocional ou do vasto arquivo cerebral das opiniões automatizadas.

O cérebro humano assemelha-se a um enorme painel de controle de avião supersônico, com centenas de botões e dispositivos muito sensíveis que, ao mais leve toque, mesmo acidental, desencadeiam reações automáticas que podem até derrubar a aeronave. Obviamente, todos os botões são necessários à segurança ou conforto do avião. O problema está no automatismo da resposta, pois cada item não conhece — isso seria mesmo impossível — a função de seu colega de painel. Faz o seu papel, reage conforme foi programado e ponto final. Se a aeronave cair, a culpa não é dele, botão, mas do piloto, ou do cotovelo da aeromoça que não deveria estar ali. Se o avião cair e o botão ainda estiver inteiro pensará, ainda fumegando: “Por que esse avião caiu? Apenas cumpri o meu dever! Já não entendo mais nada...”

Assim reage a quase totalidade das pessoas — cultas, incultas e intermediárias — quando se fala em um possível governo mundial em forma de federação democrática. Em negrito, no adjetivo, porque dois desses botões mentais referidos — “soberania” e “patriotismo” — logo reagem instintivamente, até mesmo por simples aproximação, como certos enxugadores de mãos que “advinham” a necessidade de seu bafo morno.

As considerações acima surgem-me a todo momento quando vejo, nos jornais, fotos e manchetes do conflito que envolve Israel, na Palestina e no Líbano.

Nenhum exemplo é mais gritante da necessidade de uma efetiva Justiça Mundial para resolver um conflito que se prognostica como permanente e que pode levar todo o planeta a imensas dificuldades, se não houver um poder central legítimo, democrático, que imponha uma solução que seja a mais justa possível.

Na ordem interna de todos os países — todos, sem exceção —, há séculos se constatou que quando vizinhos brigam e não conseguem chegar a um acordo, é preciso que um poder “de fora”, estatal, um juiz legitimado, profissionalmente preparado para o cargo, sentencie e faça cumprir sua decisão, mesmo que não agrade a uma das partes. Seria o cúmulo, impensável, exigir que toda decisão judicial satisfizesse, sempre, a ambas as partes, mesmo a que está errada. A justiça, essencialmente, vem quase sempre, “de fora”, isto é, das partes não envolvidas no conflito. Quando vem “de dentro”, das próprias partes, já não há conflito, nem necessidade de qualquer “juiz”. Nas disputas, as partes intervêm, sim, claro, no processo, mas apenas fornecendo argumentos e provas do que alegam. Mesmo a “justiça privada” — a arbitragem — vem “de fora”, de um árbitro sem interesse material ou ideológico no conflito. E o árbitro é escolhido por ambas as partes. Entretanto, proferida a decisão, esta tem que ser cumprida, queira ou não a parte perdedora. Elementar, não?

Mas não é isso que ocorre na área internacional, em que o elementar raramente é reconhecido. Cada país faz o que quer na “casa da mãe Joana”, que melhor seria definida como “manicômio da mãe Joana”. “Quem pode mais, chora menos”. E para agravar o problema, governantes dos países ou povos envolvidos no conflito, mesmo sentindo, no íntimo, que exageram suas reações, sentem-se como que obrigados, pelo rançoso “patriotismo”, a esmagar o adversário. É preciso, como garotões, mostrar valentia aos eleitores, geralmente meio desnorteados e só preocupados com a própria pele. Nem um pouco preocupados com o sofrimento alheia, com a justiça ou injustiça que seu governo aplicou ao inimigo.

Israel e seus vizinhos árabes continuarão se matando, enquanto um “poder de fora” — tão justo quanto possa ser uma decisão proferida por seres humanos —, não interferir para impor, após estudar profundamente os argumentos — uma fronteira imutável e realmente obedecida. Fazer justiça pelas próprias mãos é “crime”, na legislação interna de todos os países cultos. Na área internacional, no entanto, é “virtude”, pois envolve patriotismo, soberania, “orgulho de nossa raça”, “quebrar mas não vergar” e outras frases bonitas, sonoras, mas que carregam um problema: a parte contrária as repetem na forma mas com conteúdo diametralmente oposto.

O povo judeu sofreu, por séculos, em razão de morar em casa alheia. E sofreram um especial massacre quando Hitler, com sua eloqüência feroz, explorou politicamente os abusos impostos pelo Tratado de Versalhes. Condoído com o Holocausto, o mundo aplaudiu a criação de um Estado de Israel. Mas essa área já estava ocupada pelos palestinos, que são também seres humanos e não se consideram — nem são —, os autores da expulsão.  Alguns, não todos, reagiram e reagindo, são chamados de “terroristas”.

Criado o Estado de Israel — fato irreversível — caberia a “um poder de fora”, no caso a ONU, estabelecer os limites, as fronteiras da pátria judaica e criar compensações para os palestinos, deslocados das terras que ocupavam há séculos. Como não houve essa compensação mas pura e simples expulsão, é natural que um fração de árabes mais aguerridos não aceitasse isso. Tornaram-se “terroristas”, assim como foram “terroristas” os judeus seguidores de Menachem Begin, integrantes do movimento “Irgun Zwai Leumi”, que lutava contra a ocupação inglesa da Palestina. Essa luta não foi apenas verbal.

Centenas de franceses, inconformados com a ocupação alemã da França na 2ª Guerra Mundial, também reagiam por conta própria, sem esperar ordem do governo francês. Era a patriótica “Resistência”, mas para os alemães não passavam de “terroristas”, porque agiam por conta própria, sem delegação formal do governo francês. Se, por mero jogo de raciocínio, os Estados Unidos tivessem sido invadidos pela União Soviética haveria, certamente, um movimento de resistência que se externaria na forma de atentados contra o invasor. Aí os americanos seriam chamados, pelos soviéticos, de “terroristas”.

As considerações acima servem apenas para mostrar que sem um juiz internacional imparcial — com poder de impor suas decisões —, o uso da força como forma de solução dos conflitos é resquício do tempo das cavernas. E na área internacional estamos ainda patinhando no atraso. O tribunal da ONU, a Corte Internacional de Justiça, funciona mais como “parecerista”. Dá suas “decisões”, mas obedece quem quer. Uma desmoralização. E em casa sem ordem, sem um chefe, tudo pode acontecer. Tenho como certo que se os EUA tivessem tratado os palestinos expulsos com a mesma solicitude com que trataram os judeus as Torres Gêmeas ainda estariam de pé. O mundo seria outro.

O planeta tarda em reconhecer o óbvio. A “aldeia global” já se transformou em cidade, em estado, e se não reagir acabará se transformando em terra sem lei.

A OMC e sua conexão com a necessidade de um governo mundial fica para outra oportunidade.


Francisco Pinheiro Rodrigues                                      19/10/2011

quinta-feira, 10 de março de 2016

Crimes e soberania.


Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo.

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder.

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”.

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.  A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas e jurídicas.

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta.

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, por vezes nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real.

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá.

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política.

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania.

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

                                                                      Francisco Pinheiro Rodrigues (4-12-2006)






terça-feira, 8 de março de 2016

As baratas herdarão a Terra

(As notícias, atômicas, bem recentes, sobre a Coreia do Norte me motivaram a republicar o presente artigo, pouco difundido antes. O leitor inteligente logo perceberá as analogias contidas na minha fábula, inspirada em uma curta anedota que li em algum lugar, em inglês).
Duas baratas, macho e fêmea, distinto casal, conversam, no idioma delas, na tubulação de esgoto, enquanto mordiscam restos estragados de comida. Ele chama-se Glutof e ela, Kiti.
 — Por que o entusiasmo? — pergunta o marido em tom desconfiado. Ele é cético, convencido, solene, cascudo, culto, repulsivo, olhos de coruja. Glutão nutridíssimo, lembra uma tâmara escura e obesa, dotada de perninhas finas porém musculosas e cabeludas — ou que melhor nome tenham suas cerdas. Felizmente, não engorda nas coxinhas, o que lhe permite disparar em incrível velocidade nos momentos de perigo, caçado pela tríade maldita de homens, ratos e gatos. Estes últimos uns farristas que matam por diversão porque nem mastigam as presas. Sentem nojo.
Glutof orgulha-se do brilho castanho, quase negro, das suas asas, que consegue rufar com enorme sucesso, provocando gritinhos e delíquios no sexo oposto. Apesar de gordão, é mulherengo, ou melhor, “baratengo”, palavra que pretende incluir no primeiro dicionário da língua das baratas, em elaboração, ele como coordenador. E gosta muito de filosofar, deliciando-se com a basbaquice dos colegas de espécie, quase todos uns ignorantes, quando com ele comparados. Ocorreu uma mutação genética, caracterizada pela maior longevidade e tamanho do cérebro. Mas nem todas as baratas foram igualmente aquinhoadas com o aumento da inteligência. Aliás, por sinal, um problema também humano, só que bem mais antigo.
— Você, crítico e convencido como sempre! — Kiti protesta. — Que mania a sua de me diminuir, quebrar o meu barato! Não é entusiasmo, diabo! É que fiquei espantada, ou melhor, horrorizada — tá bem assim? — vendo a asquerosa limpeza do novo restaurante da esquina, aquele enorme. Consegui entrar lá uma única vez, por baixo da porta, na véspera da inauguração, e dei uma espiada. Ontem, após a inauguração, tentei voltar para beliscar umas coisinhas, esgueirando-me pelos cantos, mas fiquei com medo. Muito movimento. A única fresta que poderia dar uma sopa já foi fechada. A prevenção dos canalhas egoístas contra nós é perfeita. Entrada, só se for pela porta da frente, mas com o risco de ser esborrachada pela sola do porteiro.
— Ainda acho que você parece meio eufórica, quase contente, aprovando inconscientemente a abominável limpeza... — insistiu o marido, teórico respeitadíssimo pelo zelo na defesa dos imorredouros valores da imundície. Interrompeu as chupadinhas que dava num pão embolorado para sorver, estalando os beiços, um copinho de muco, escorrido de uma casa de repouso de velhos pobres.
— É que eu, mesmo não aprovando, lógico! qualquer limpeza — tá pensando que sou o que?! — gosto de ver coisas bem feitas, mesmo discordando delas. Você sabe que sempre fui perfeccionista...
— Em termos... — cortou o marido. — Lá em casa você relaxa. Ainda há muita limpeza aqui e ali... O asseio está ficando insuportável...Você não é muito boa dona de casa, desculpe a franqueza...
— Mas você também não coopera! — ela ergueu a foz fininha, indignada, vibrando as antenas. — Fica lá, paradão, no gabinete daquele advogado velho, dono da casa, mordiscando livros antigos, engordurados, comprados no sebo. Você, meu caro, é um viciado em sal e gordura humana velha.
— Você é que não enxerga um palmo adiante do nariz. Não é só gula, minha cara. Eu estudo. Minha ociosidade é aparente. Está certo que eu também gosto de comer. Leio, porém, tanto quanto como. Opa!...Merece até um trocadilho — sorriu, encantado com o achado: — Como leio! Exclamação. Principalmente saboreio, devagar, degustando não só o sebo dos dedos da decadente prole de Adão, como também a parte abstrata, as próprias ideias impressas. Isso para não ficar dizendo besteira por aí, como nossos irmãos cascudos de pernas finas. Um dia herdaremos a Terra... Lembra-se da profecia? Já li que se houver um conflito nuclear, apenas nós sobraremos. Estaremos bem protegidos aqui no fundo, enquanto a canalhada bípede torra lá em cima, merecidamente. Já imaginou a farra, depois? Tudo será nosso...Do lixo aos computadores...
— Isso se der tempo de correr pra cá. Se você estiver na biblioteca na hora do “Big Bum!” — como provavelmente estará, viciado em livro sebento — não herdará coisa nenhuma! Será apenas mais uma tâmara tostada. Além disso, a que guerra atômica você se refere? Os dois únicos gigantes que poderiam nos prestar esse favor já fizeram as pazes! Está tudo desmoralizado! O chefe russo, aquele urso loiro e cardíaco — referia-se a Boris Yeltsin —, com olhos puxados de mongol — a mãe dele deve ter tido um vizinho japonês mais bonito do que o marido — virou capitalista! Em vez de utilizar os roliços dedos apertando os botões de lançamento dos mísseis, diverte-se beliscando as secretárias! É de desanimar...
— Não perca as esperanças, Kiti. — Ela é graciosa, pestanuda, cérebro rico de intuições loucas e acertadas, tudo misturado. Boazudinha, quase só feromônios e órgãos reprodutores. Tem fama de leviana, mas até agora ninguém teve coragem de testemunhar contra ela porque é influente e vingativa. É o quinto casamento do intelectual cara de coruja, que prossegue, doutoral: — Parodiando o que já disse um empresário americano, ninguém, até agora, perdeu dinheiro apostando na idiotice dos chefes de estado valentões. Melhor dizendo, na idiotice da espécie humana, toda ela, sem exceção, que se diz tão racional, espiritual. Nós, que a conhecemos bem e comemos o que jogam fora, sabemos o que eles são no fundo. Principalmente nos fundos...
Fez uma pausa para mordiscar um resto de banana podre e continuou, erudito, deliciado de ouvir aquela voz que sabia modular com tanta autoridade:
— Felizmente, as chamadas potências emergentes estão aí, preocupadas em dominar o átomo, com isso assustando os vizinhos. Portanto, não desanime. Um dia, estarão fazendo bombas atômicas de fundo de quintal. Chegará a nossa vez, Kiti. Sempre acreditei que nossos ideais de justiça e supremacia final acabarão prevalecendo. O poder dos impérios sobe e desce, qual uma gangorra. Está nos livros de história que lambo, digo, leio. O Poder muda de mãos. Sinto no ar, principalmente no ar poluído — essa cheirosa e estimulante lixeira aérea — os sinais de que está chegando a nossa vez! É sumamente injusto o atual sistema de dominação! Qualquer humano, idiota ou sabidinho, mal nos vê comendo uma mísera migalha no chão da cozinha — mesmo quando estamos à beira da inanição — arregala os olhos como um assassino louco e corre pra cima, com a pata erguida. Por que esse preconceito? Afinal, estamos limpando a cozinha deles, sem nada cobrar! Economizariam com faxineiras! Poderíamos viver tão bem, em harmonia! À noite, os humanos espalhariam suas roupas sujas pelo chão, iriam dormir nus, e nós invadiríamos a casa, comendo toda a sujeira digerível deixada em copos, corpos, pratos e talheres. As roupas teriam lavagem a seco. Lamberíamos todo o pessoal da casa, dispensando-os do banho matinal. Baita economia! Acordariam limpinhos! No entanto, as bestas nos esmagam!
— Que tal a gente montar um rodízio de roupas íntimas? Deve dar dinheiro... — ela propõe, olhos brilhando, sempre atenta a sacar um lucrinho de qualquer ideia. Considera-se uma grande empresária.
—  Desta parte, você cuidaria. Não gosto de me meter em assuntos de dinheiro... Sinto-me como se perdesse a dignidade.
— Tudo bem com essas teorias. Você sabe que não esquento a cabeça com leituras. Só gosto de leitura a jato mas gostaria de saber como vamos comer, se estourar uma guerra nuclear. Os alimentos não estariam contaminados pela radiação?
—... Bem, ora... — ele pareceu surpreso. Nunca meditara sobre isso. Rotulava esses lampejos de bom senso da esposa de “faíscas da ferradura da cavalgadura”, como já dissera um famoso crítico brasileiro. Mas não deu o braço a torcer: — Realmente, claro, hum, de fato, já havia pensado nisso... Durante algum tempo, que nossos técnicos determinariam, não comeríamos o que está na superfície.  Temos nas redes de esgoto um gigantesco e delicioso estoque de supermercado natural, tudo já prontinho e temperado para o nosso consumo. Assim, seria só esperar algum tempo no esgoto, até que diminuísse a radioatividade. — Fez uma nova pausa para lamber, estalando os lábios, uma espécie de musse de chocolate extraída de um papel branco, quadrado, textura suave, e concluiu:
— Seria a glória!, como se estivéssemos no Camboja...
— Por que o Camboja?
— Porque houve lá uma suculenta guerra civil que durou vinte e cinco anos. Nesse período, foram plantadas entre seis e dez milhões — ou seriam só dez mil?, hesitou — de minas terrestres. O resultado é que agora, todo mês, entre duzentas e trezentas pessoas vão pro espaço. Não em aviões de carreira. É o país, embora minúsculo, que tem o maior índice de amputações do mundo. Convenhamos, um paraíso terrestre! Houvesse turismo entre nós, você já imaginou?... Ai, ai, ai! Dá até água na boca, só de pensar! E os lança-chamas? Poderíamos escolher entre carne mal passada, bem passada, saignant, rare, medium.
— Lá vem você com suas exibições de poliglota...
— E dizem os especialistas que serão necessários uns trezentos anos para localizar e desmontar todas as minas.
— Por que eles plantavam tanta bomba? Não era possível uma agricultura mais tradicional?
— Kiti... Você precisa ler com mais calma... Ninguém planta bombas, querida. Eles enfiam explosivos no chão! Cada ala rival, ao se retirar, espalhava as minas para fod..., digo, estrepar — ele não aprovava palavrões na boca de grandes líderes — a cambada rival. E como havia muitas idas e vindas nas contínuas escaramuças, perdendo e reconquistando terrenos, o resultado é que o país virou um vasto açougue, fornecedor de pernas, cabeças e braços — em peças avulsas. Para nós, um paraíso, pois somos levezinhas e podemos caminhar sem susto sobre as minas. Nossas primas cambojanas, aquelas sortudas, têm sangue e carne fresca à vontade. Já está até fazendo mal ao fígado, dizem, devido ao excesso de ferro na alimentação. É como porre de vinho, dá aquela bruta dor-de-cabeça no dia seguinte. Os “inteligentíssimos” humanos, hi!, hi! — riu, erguendo as sobrancelhas, rufando as asas em desprezo — não pararam para pensar que, um dia, o tiroteio iria terminar? Esqueceram a velha definição de que são “bípedes implumes”? Como não voam, pisam... e só então voam. Soube que uma horrorosa princezinha inglesa, uma tal de Lady Di, vinha pregando a proibição de minas terrestres. Será que vem mais essa desgraça por cima de nós? Infelizmente, ela morreu.
— Infelizmente? — Kiti abriu as asas com espanto. — O que deu em você? Foi bom ela ter morrido, parando com essa campanha nojenta.
— Você não tem visão, Kiti... Digo infelizmente porque, com a morte dela, a imprensa passou a venerá-la; consequentemente, dando força ao que ela pregava. Antes continuasse viva, só enchendo a paciência... Seria, viva, menos prejudicial para nossa causa. Perseguiram a infame por anos e anos, vigiando-a, fotografando-a à distância, criticando e fofocando o tempo todo. Queriam até, por causa dela, a queda da monarquia. Agora, bastou a maléfica reformista morrer e pronto! Virou deusa! E aí é que está o perigo para nós! Doravante, em crise de consciência — essa coisa tão doentia nos humanos, e principalmente para vender revistas — a mídia vai querer pôr em prática a pregação dela. Entre os humanos é assim. Só depois da pessoa morta, não mais despertando inveja, porque está apodrecendo, é que é valorizada. Só espero que aquela princezinha, mais feia que a higiene — e já ouvi humanos dizendo, a sério, o contrário — não tenha sucesso póstumo na sua absurda campanha para abolição das minas terrestres. Mas mesmo que não haja guerra nuclear, eles morrerão de qualquer forma, só que lentamente, cozidos no fogo lento do efeito estufa ou envenenados pelo gás carbônico. São burros e ambiciosos demais para parar a tempo.
— Será que um dia seremos também assim, digo, com essas falhas de caráter dos humanos?
— Provavelmente... — Ele suspirou. — Lamento dizer... É o preço da civilização... — Sentia vaidade da sua frieza de estadista. — A menos que criemos uma nova Ética, na qual venho trabalhando há tempos, com a profundidade que todos notam em mim. Para começar, precisamos inventar um reforço de coação, um deus-barata à nossa imagem e semelhança: cascudo, antenudo, poderoso, vingativo. A chefe, diretor, presidente, nem todos obedecem. Mas a um deus-barata, com poder realmente de vida e morte, a barataiada planetária vai temer... e obedecer. Conversarei privadamente com “ele” — eu mesmo, claro... — uma vez por semana no telhado de um prédio alto — sorriu, irônico, fechando um olho de coruja — e em seguida transmitirei ao nosso povo qual foi a mensagem que só eu ouvi... Que tal a ideia?
— E você acha que nosso pessoal vai acreditar nisso, nesse colóquio privado divino? Nossa gente é mais desconfiada que os humanos, porque sofreu mais...
— Acredita, sim, porque faz bem à alma acreditar. Acredita-se sempre naquilo que se deseja acreditar.
— Mas você mesmo acredita?
— Claro que não. Mas ninguém poderá provar que não acredito. A menos que você abra a linda boquinha, mas aí já sabe o que a espera. Apenas vendo um produto muito necessário, a esperança, enquanto houver medo no coração das baratas. “Business”, apenas. E por falar em medo, a civilização dos humanos está afundando justamente por falta de medo. A moda deles agora, o “must”, é a compreensão profunda da motivação dos atos humanos. Os patetas querem é “entender”, vejam só... Resultado: concluíram, por exemplo, que não adianta encher as cadeias, porque a prisão não recupera ninguém. Claro que não recupera! Mas a impunidade, por acaso recupera? Ficam como baratas tontas — êpa! digo, humanos tontos! — não sabendo o que fazer. E malandramente dão um jeitinho de conciliar o velho desejo de retirar de circulação o asqueroso bandido, ao mesmo tempo que podem se elogiar, dizendo que lhe fazem um grande bem, “reeducando-o”. Eu, quando estiver mandando nessa joça, já sei como vou resolver o problema da criminalidade: pena de morte imediata para toda barata cometendo um crime grave. Será um exemplo e tanto. Não gastaremos com processos, papeladas, cadeias e principalmente comida. Para pequenas infrações torturaremos o cara mantendo-o alguns dias num lugar doentiamente asseado. Para ele será a morte! Nunca mais vai querer errar de novo! Do contrário volta para a limpeza.
— Caramba! Que finura! A limpeza! Quando você quer, sabe ser mauzinho... Talvez fosse melhor matar logo de uma vez... Desculpe, meu bem, mas sou contra torturas.  Mas como vamos matar os criminosos mais perversos, se não temos armas, dentes e nem mesmo mãos?
— Amestraremos os ratos. Eles são astutos, mas burros. Há uma grande diferença entre astúcia e inteligência. Eles só pensam em roer e fornicar. A menos que também sofram uma mutação, como a nossa. Aí estaremos ferrados porque eles têm um cérebro maior... e dentes... Aliás, já instruí nosso staff para me informar sobre qualquer material radioativo encontrado na tubulação. Isolaremos imediatamente a área porque, com a radiação, tudo pode acontecer. Se os ratos ficarem como nós, adeus ao nosso milênio de glórias! Eles é que substituirão os homens no domínio da Terra.
— Mas voltando ao novo restaurante da esquina, você precisava ver a limpeza da cozinha! Tudo brilhando! Nenhuma sujeira capaz de...
— Para! Para! — ele a interrompeu aos gritos sapateando, tremendo, grosseiro, amassando e jogando fora o papel higiênico manchado de chocolate. — Não aguento mais esta sua conversa porcalhona, bem na hora da refeição! Quer me fazer vomitar?!
— Chiii!... Precisava gritar desse jeito? Tá com nojinho da limpeza? Que sensibilidade delicada... Parece uma mocinha...
— Olha lá como fala... — suas grandes antenas vibravam de indignação. Nunca batera na esposa, mas estava prestes a fazer isso.
Kiti não se intimidou: — De tanto ler livros de humanos, tá ficando com faniquitos de poeta, todo delicado, sensitivo de torre de marfim. Cuidado, hein... Conheço um que virou a mão...
— Que livros você queria que eu lesse, sua burra? Barata, por acaso, já tem editoras e indústria gráfica? Agora somos inteligentes, claro — tanto assim que os humanos nem suspeitam, pois disfarçamos. Mas temos que, por enquanto, haurir a única cultura disponível, a dos humanos, até que elaboremos a nossa, própria, que será, claro, muito superior.
— Falei pra te chatear... Porque você foi grosseiro comigo. — Com as duas grande antenas, nela especialmente graciosas, fez um agrado na antena do marido, alisando-a, enquanto emitia feromônios que o excitaram. Mas ele se dominou porque achava perigoso fazer sexo após lautas refeições.
— ... Amorzinho — ela indagou, meiga, — por que você lê tanto? Não acha que exagera? Pode prejudicar a vista... E não temos ainda oculistas entre nós. Por falar nisso, acho que você ficaria bacana usando óculos com armação de tartaruga. Impossível ar mais intelectual! Você é meu pão embolorado, meu doce de coco com validade vencida há mais de três anos. Tem muita pilantrinha cascuda por aí me invejando, pensa que não sei?
— Leio porque, se houver algum cataclismo mundial, quero estar preparado para organizar nossa espécie rumo ao milênio. Nós, baratas, não repetiremos os erros dos humanos.
— Que erro, amorzinho? Desculpe, mas com ou sem erro eles estão por cima... Estão milênios à nossa frente. Nossa mutação genética — graças à bendita sujeira radioativa que jogam em qualquer lugar — é muito recente. Os humanos nos esmagam de tudo quanto é jeito. Ou nos envenenam com aquelas esguichadinhas mortais. Um dia, quase morri, te contei, não? Por pouco você estaria conversando agora com um fantasma. Acho até que restou sequela. Nunca mais fui a mesma, uma sensação esquisita no baixo ventre... A dona da casa, cafajesta promíscua — provavelmente vinha da farra porque estava com umas enormes olheiras — mal acendeu a luz da cozinha e me viu ali, bem no meio, estonteada pela claridade, correu para pegar um tubo de inseticida. A carrasca não queria melecar a rica solinha... Nessa hora disparei em círculos, como um busca-pé, até me lembrar de que o melhor seria escapar por baixo da porta que dá para o quintal. Enquanto isso, a fera assassina, esbaforida, rodopiando, com medo de que eu subisse nela, sapateava uma dança guerreira, tentando esguichar o inseticida na minha direção. Felizmente, quase não me atingiu, mas, assim mesmo, só com a neblina, senti cólicas na hora. Penso que abortei... Saiu tudo misturado. Eles não erram, meu bem. Não adianta, o mundo é deles... .E até hoje me arrependo de não ter subido pelo meio das pernas dela, até o fim. Daria uma mordidinha caprichada bem ali. Garanto que a vagabunda desmaiava de pavor!
— Quando digo errar, Kiti, refiro-me ao comportamento dos humanos com os próprios humanos. Eles mesmos se eliminarão, seja com bomba, poluição ou criminalidade nas ruas e bancos. Não precisamos interferir. É só esperar. Na Argélia, alguns caras fanáticos ganharam mas não levaram uma eleição. Estão degolando centenas de pessoas nas aldeias mais afastadas. Vítimas, inclusive crianças, que em nada contribuíram para a ilegalidade política. Também estupram mulheres jovens, antes de matar, porque ninguém é de ferro. E matam a machadadas. Nossas primas argelinas é que se deliciam com esses humanos do capeta, nossos preparadores do terreno.
— Com relação a nós — ele prosseguiu, porque sentia-se especialmente inspirado — e aos ratos, por exemplo — esses canalhas resistentes mas de visão curta, que também nos atacam quando esfomeados — eles, humanos, são muito eficientes... Bem, eficientes em termos, porque soube que no prédio do Pentágono havia uma praga de milhares de baratas americanas, nas barbas deles, exímios guerreiros de computador que são. Sim, os humanos sabem matar, mas, felizmente para nós, odeiam-se mutuamente. Amam-se nos pequenos intervalos da vida, mas, quando contrariados, odeiam-se. Basta discordar e o cara está ferrado. Pai odeia filho e vice-versa. Uma beleza.
— Desculpe, mas não é bem assim... — ela sentia um prazer sutil quando achava uma falha nos argumentos dele . — Alguns humanos não são agressivos nem mesmo com nós. Semana passada, eu e mais umas cinquenta amigas estávamos fofocando no teto da tubulação de esgoto da rua quando um trabalhador da rede pública desceu até ali por uma escadinha. Vendo-nos a poucos centímetros de sua cabeça, gritou para alguns colegas que estavam logo acima, no nível da rua: — “Tudo bem, pessoal! Não há perigo!”. E começou a trabalhar na tubulação, sem nos causar qualquer dano. Um santo! Fiquei comovida... Quase voei nos lábios dele para lhe dar um beijo... Realmente os humanos são surpreendentes... Nem sempre são maus.
Glutof sorriu, superior, divertido com a inocência da companheira: — Então a lindinha pensou que ele te poupou porque gostou de você? Nada disso, candura. Ele te deixou viva porque o fato de haver baratas na tubulação significa que por ali não há gases tóxicos. Justamente quando não há baratas é que existe o perigo. Se há, podem trabalhar sem susto. Só nos poupam quando somos úteis, manjou?
— Caramba, eles não dão ponto sem nó... — Desconcertada, ela coçou a primeira axila direita, como sempre fazia quando sentia-se ridicularizada. — Como você sabe das coisas, bem... Por que, com toda essa sabedoria, não organiza um ataque em massa contra os humanos? Eles são medrosos. Comem muito e têm a vida mansa. Já vi um homenzarrão pular como um macaco, apavorado, só porque havia duas baratas dentro da camisa, que ele vestiu no escuro. Ou porque uma inocente coleguinha nossa voou e entrou casualmente dentro da boca de um velho. Ele praticava exercícios respiratórios, fazendo um profundo movimento de inspiração. Foi realmente o beijo da morte. A pobrezinha foi cuspida como se fosse uma coisa nojenta e... esmigalhada! O mais espantoso é que o velho, em seguida, foi rezar! Pode?!
— Sei que o homem é medroso, mas tem a tecnologia da morte. Numa guerra, seríamos derrotados. Ganharíamos umas mínimas escaramuças iniciais, dando apenas alguns sustos. Voando, por exemplo, nos olhos, ou na boca, ou escondendo-nos dentro das cuecas de alguns figurões, vibrando as asas perto do... você sabe onde... Mas seria só isso... Sustos, coisinhas. No máximo alguns enfartes porque esses importantões, cheios de poder, pizza, lasanha e filé mignon estão com os tubos... — como é que chamam, mesmo? Ah!, artérias! — igualmente cheios de gordura. A natureza nos foi madrasta. Nem ferrão nós possuímos. Se fosse possível uma mutação direcionada nesse sentido... Mas elas ocorrem sem nenhum controle. Agora nós temos a inteligência, mas você já percebeu que nem todos. Estamos muito longe de manipular a engenharia genética. Sem mãos, seres pequenos que somos, o que podemos fazer por enquanto? Apenas pensar e nos organizar. E esperar que eles se matem, o que é quase certo. Para os que gostam de ação, temos o IRA, o ETA, o Oriente Médio. Jamais chegarão, assim espero, a um acordo de convivência porque a cobiça por terras, petróleo e poder não deixa. A paz não interessa, no fundo. Todos aqueles chefões, terroristas e anti-terroristas,  não vão jamais se conformar em retornar à vidinha pacata, sem brilho, chata, ganhando pouco, batendo ponto em fábrica, escritório ou repartição. Iriam lá trocar uma vida excitante, cheia de charme ideológico, dinheiro fácil e mulheres por ofícios tais como carteiro, cozinheiro, comerciário, comerciante, feirante, etc.? Uma desmoralização!
— Mas, meu bem, alguns explodem junto com as bombas... Parecem idealistas.
— ... Certo, certo... mas só os mais tolinhos... Os intelectuais, os chefões, jamais fazem isso. Soldado do terror, explode; general do terror não explode. Nunca! Afinal, “a causa” precisa de seus “potentes” cérebros. Correto? Por outro lado, a ala oposta, que andou dispersa pelo mundo, imaginava o quê? Que iriam retomar a antiga terra, centenas de anos depois, expulsando os locais de turbantes, colonizando sem nenhuma reação?... Não sei, eles que são humanos que se entendam. Ou melhor, que não se entendam nunca! São nossos votos. Além disso, não esquecer a sacrossanta AIDS, néctar dos deuses! É uma praga do bem que, espero, faça uma grande limpeza porque somos a ela imunes. E as drogas, então, essa nossa aliada vingadora, que quando pega não larga mais! Fracos como são, e sabem que o são, os palhaços humanos ainda experimentam, só para “conferir” e constatar depois que a coisa era como diziam. Talvez para passarem malandramente à condição de vítimas, coitadinhos, viciados; no fundo uma boa, pois aí todo mundo paparica eles. Viciado não precisa trabalhar, nem estudar, nem fazer coisa alguma. Precisa só continuar viciado. Um achado! E por falar em achado, eu já tomei meu porre involuntário, pois, quando chega a polícia, a primeira coisa de que o traficante se lembra é de jogar o pó branco na privada e dar a descarga. Sem a mínima preocupação com a nossa saúde, pois vivemos no esgoto. Eu vi aquele pó clarinho boiando e logo pensei que era açúcar. Meti a boca e chupei. Quando dei por mim, estava fogueteando pelas paredes e desafiando ratões para sair no braço.
                  — Não esqueçamos — ele prosseguiu — a maravilhosa infecção hospitalar, um dos poucos segmentos em que podemos colaborar pessoalmente para o êxito de nossa causa. Estamos organizando cursinhos de orientação sobre como chupar a gaze infectada e em seguida beliscar a comida dos doentes. Principalmente das criancinhas, porque é melhor matar o inimigo no ovo. Enquanto as faxineiras fingirem que limpam o chão dos hospitais e seus chefes fingirem que as fiscalizam — pois na verdade têm medo delas, ou receio de parecerem “autoritários” — as coisas irão às mil maravilhas. Mas, voltando ao que dizia antes, nós, baratas, precisamos, acima de tudo, é disfarçar a nossa recente inteligência. Contei o caso do Tico?
— Acho que não... Você fala tanto, bem, que eu às vezes fico tonta...
— Em você isso é normal... O Tico é também uma barata, amigo meu. Foi um dos primeiros mutantes. Mas em lugar de disfarçar, bancando o burro, cedeu à tentação de se exibir. E acabou mal, claro. Uma noite, enveredou por uma longa tubulação que não conhecia — ah, o ilusório apelo do desconhecido! — muito longa, mesmo, e desembocou num ralo da cela solitária de um presidiário. Quando o preso o viu, teve uma ideia: — “Vou amestrar esta barata... De outro modo, enlouqueço . Tenho ainda três anos para cumprir”.
Glutof prosseguiu:— Esse preso havia assassinado, a mulher pensando que ela o traíra — e estava certo — mas depois pensou que estava enganado — e não estava —, mas aí já era tarde. O sofrimento na cadeia tornou-se duplo porque estava arrependido. Assim, pacientemente — já fora amestrador de cães —, ensinou o Tico a escrever pensamentos famosos de grandes retardados, isto é, de pensadores humanos. O Tico enfiava a perninha num tinteiro e tascava um pensamento profundo. Às vezes, misturava as fontes, mas quem é que ia conferir? O fato de uma barata escrever já era um fenômeno.
— Como é que esse tal de Tico se rebaixava tanto?! Filósofos humanos! Dá até nojo!
— Por interesse, claro. O Tico logo aprendeu as frases acacianas, mas disfarçava a sua rapidez no aprender porque cada vez que ele escrevia um pensamento filosófico, ganhava uma guloseima. Assim, comilão como ele só, esticou quanto pôde o seu aprendizado, fingindo assimilar com vagar. Não podia exibir sua genialidade sendo uma barata. Ele era mais inteligente que seu professor. Se ele já escrevesse tudo, de cara, só comeria uma única vez. E nisso se passaram seis meses. Aí, como ainda lhe faltava muito tempo para sair, o “reeducando” — outra estupidez porque na cadeia ninguém se modifica para melhor, só para pior — ensinou Horácio a dançar de pé nas patas traseiras.
  Glutof fez uma pausa, esfregando umas pernas nas outras e prosseguiu:
— O prisioneiro ensinou ao Tico algo espantoso: dançar o “cancã”, igualzinho àquelas bailarinas francesas, dando enérgicas pernadas que muitas vezes levavam o Tico ao chão. Afinal, nossas perninhas curtas não foram feitas para o “Folies Bergère”. Se a natureza nos deu seis pernas, como se virar com apenas duas? E o Tico, extremamente vaidoso, já por sua iniciativa, embriagado de vedetismo, sentindo-se o máximo, virava-se de costas para a plateia invisível e fremia as asas, empinando o traseiro, igualzinho às bailarinas que levantam a saia e mostram o “bumbum”. Acho que o presidiário chegou a pensar que o Tico era uma fêmea. E, terminada a exibição, Tico curvava-se em reverências, mandando beijinhos para a plateia e gritando com voz afeminada, quase inaudível: — Je vous aime! Je vous aime!. Penso que, com um pouco mais de ensaio, o Tico cambiava de sexo.
                 — Meu bem, desculpe interromper. Estou preocupada com a hora... Você não acha que já devíamos estar em casa? Daqui a pouco os ratos começam a acordar... Diga logo como terminou a história de seu amigo.
— Terminou que, finda a pena, o preso deixou a cadeia, levando o Tico no bolso do paletó, dentro de uma caixinha.. Ia procurar um empresário. Contava ficar rico porque jamais, jamais, em toda a história do show business, houve um espetáculo semelhante. Ganharia rios de dinheiro... Mas, infelizmente, a coisa não deu certo...
 — Já sei, já sei! — Kiti se antecipou, eufórica, batendo palmas. — O empresário tapeou o Tico!
 — Não!... Caramba! Como funciona a tua mente! Que alegria torpe! Não, foi algo muito pior... O ex-presidiário fazia um tempão que não tomava uma cerveja decente, bem geladinha. No presídio conseguia, no máximo, uma “Maria Louca”, digna do nome porque, na sua composição, entra até verniz. Assim, dirigiu-se a um bar a fim de se deliciar com uma “loirinha”. Mas acabou bebendo quatro ou cinco copos. E não resistiu à ideia de fazer uma pequena exibição. Tirou a caixinha do bolso, mandou o Tico sair e o colocou em cima do balcão. Ia mandá-lo dançar e chiar uns trechinhos da canção “La Vie en Rose”. Chamou o barman com um “psiu!” e, orgulhoso, meio embriagado, indicou o Tico com um dedo, enquanto perguntava “Tá vendo?” Mas o barman, um bronco, tão logo viu aquela barata cascuda no balcão, a esmagou com um estrondoso tapa. Vê se pode... E assim, bestamente, morreu um grande artista... Quando nós, do Comitê, soubemos do caso, baixamos instrução proibindo, até segunda ordem, qualquer demonstração de inteligência na presença de humanos.
— Que estória mais triste... Um mártir! E como reagiu o ex-presidiário?
— Pulou o balcão na hora e esganou o barman, chorando e gargalhando como um louco. Foi o caso de reincidência criminal mais rápido da história da Criminologia. Criminólogos, desconhecendo nossa mutação, gastaram rios de tinta dissertando sobre o caso, até sugerindo possíveis ligações passionais e freudianas entre um homem e uma barata, que simbolizaria a própria mãe. Tudo consequência do isolamento brutal no regime carcerário. Fizeram até analogias com um tal de Kafka, um maluco que escreveu besteiras sobre um cara que se deitou como homem e acordou como barata, ou inseto. Como se fosse possível um aperfeiçoamento tão súbito. Ninguém acreditou na estória do réu de que a barata dançava cancã e cantava em francês.
— Se dominarmos a Terra, você deveria, para homenagear esse herói, instituir um “Prêmio Tico”, o equivalente ao Oscar humano. Eu mesmo gostaria de concorrer... Adoro o palco, qualquer palco...
— Não é o seu caso, mas todo ator só pode ter mau caráter. Como é possível passar a vida toda fingindo sentir o que não sente, sem ter um parafuso frouxo, pelo menos no caráter?
— Bem, estou começando a ficar zonza. Você é tão profundo que após uns dez minutos, escutando-o, me vem um torpor... Vou dormir um pouco e depois assistir um jornalzinho na televisão para me atualizar.
— Cuidado, não acredite muito em jornais! A imprensa também é nossa grande aliada; inconsciente, claro. Precisando constantemente aumentar a vendagem para humilhar a concorrente, investiga ou fabrica escândalos. O que der para manchetes. E os deputados e senadores, por serem muitos, são os mais visados. Com isso, o povo fica desejando um “homem forte” que, tão logo toma o poder, trata de, livre de restrições, reforçar o poder nuclear ou bacteriológico, o que aumenta as nossas chances de um dia dominar a Terra. Viva!, pois, o poder da imprensa! Você já notou que... — e ele parou porque viu que Kiti roncava suavemente.
Sentiu pena dela. Parecia tão tolinha e desamparada... Delicadamente a despertou. Já tinha passado da hora de voltar.
Enlaçados, caminharam lentamente na direção do buraco embaixo da pia da casa em que viviam. Sem perceber que dois ratões esfomeados, de olhos maus, vinham logo atrás, na ponta dos pés, já salivando com as “tâmaras” que consideravam no papo.
Kiti, mais leve, menos glutona, escapou milagrosamente do ataque, mas perdeu duas pernas, uma antena e uma asa. E chorava, de luto, no dia seguinte, no enterro do marido. Ou melhor, das duas coxinhas cabeludas e uma asa, o que restou do grande líder, “Glutof, o Libertador”, que já ingressara na história.
Mas ela estava grávida e, logo, logo, todos aqueles projetos de heróis, ainda dormindo nos ovos, nasceriam e substituiriam o pai na criação heroica de uma nova civilização.

FIM
Francisco Pinheiro Rodrigues


segunda-feira, 7 de março de 2016

Quando a gratidão torna-se um mal

Não existe sentimento mais digno e nobre que a gratidão. Se consultado algum livro, ou site, de citações famosas na internet sobre essa bela virtude, a grande maioria delas esmera-se em por nas alturas esse fenômeno psicológico e moral que praticamente nos obriga,  com paradoxal prazer — toda obrigação é meio desagradável... — a agradecer e retribuir quem nos estendeu a mão. Mão que provavelmente nos foi negada, anteriormente, por várias pessoas que, da boca pra fora, davam a entender, ou mesmo garantiam, que poderíamos sempre contar com elas.
Os moralistas, frequentemente, insistem na comparação entre o homem e o cão, pois este, se tratado com bondade, mesmo sendo mal alimentado, pode ficar dias perto do túmulo do dono; talvez uivando, o equivalente canino do choro humano. Alegam que homem nenhum passará longo tempo chorando pelos cantos a morte de seu cão. A comparação é obviamente desproporcional porque o “horizonte” mental do cão é tremendamente restrito enquanto que o pensamento do homem sofre miríades de interferências diárias exigindo contínua atenção sobre variados assuntos, práticos e teóricos. E talvez alguns cães sejam mais “sentimentais” que outros...
Há, também, os pensadores “cínicos”, ou “céticos”, que tudo encaram com desconfiança, sempre propensos a investigar o possível “lucro”, financeiro ou social, de todo agir humano.Um grande moralista do passado, François de La Rochefoucauld, dizia que a gratidão pode significar apenas o desejo de novos favores. É claro que há gente dessa laia, mas presumo que representem minoria. O leitor, certamente — se chegou a ler este artigo até aqui é porque tem preocupações morais —, já sentiu algum sentimento de gratidão e ao externar esse sentimento ao benfeitor não teve a mais remota intenção de pedir novo favor, consciente de que gratidão com olho em nova vantagem é “negócio”, ou abuso da bondade alheia.
A gratidão, porém, tem um ferrenho e, no fundo, biológico inimigo: o amor-próprio, o orgulho, a necessidade de preservar o próprio valor. Pessoas que se consideram “especiais” — poucos não se consideram — não gostam de dever favores. Recebê-los é uma admissão de que estão em posição algo inferior, dependente; tanto assim que precisaram “pedir” algo. E, mais vexatório: pedir temendo um “não”. Pedir um favor não é o mesmo que pedir uma informação na rua. Fossem “fortes”, pensam, não pediriam nada: — “Odeio que sintam pena de mim!”. E frequentemente é mesmo a comum compaixão que leva pessoas a atender pedido de amigo, parente, ou mesmo do simples conhecido. Foi pensando nisso, no orgulho ferido, que o “Marquês de Maricá” — pseudônimo de Mariano José Pereira da Fonseca, um carioca  falecido em 1848, que foi senador e Ministro da Fazenda de D. Pedro I,—, chegou a mencionar, em suas “Máximas”, que algumas pessoas “vingam-se dos benefícios recebidos”.
Realmente, “dever favor a um sujeito antipático e que está, talvez, se pavoneando por aí dizendo que me ajudou, é carregar uma ferida que exigiria certa vingançazinha: uma futura posição trocada, ele me pedindo algo que eu talvez negasse de início, só para vê-lo implorando, de joelhos, como me senti quando pedi a ele aquele favor”.
Para evitar a ingratidão por orgulho ferido recomendam, os entendidos em venenos d’alma, que o benfeitor não fique muito tempo perto do ajudado e nunca mencione — em público ou em particular — o favor prestado. Isso cutuca a velha ferida. Um outro fenômeno mental — até mesmo inconsciente — relacionado com a ingratidão é que o orgulho magoado torna seu portador, quando beneficiado por favor em dinheiro, tremendamente sensível a qualquer palavra, gesto, sorriso ou olhar que possa, mesmo remotamente, significar alguma forma de desprezo. O inconsciente do devedor orgulhoso fica o tempo todo em alerta máximo para detectar e valorizar um detalhe que se tornará pretexto para não pagar o que deve: — “ O desgraçado me ofendeu com aquele olhar! Ele pensa que se tornou meu dono só porque me fez um favor?! Vou ensinar a esse camarada! Pagarei quando puder, ou quiser...”
É por isso, evidentemente, que favor em dinheiro vem sempre garantido com um título de crédito. Do contrário, qualquer ligeira demora em responder a um aceno, ou outro ritual de cortesia pode “justificar” o não pagamento de uma dívida sem comprovação documental. E quando o pagamento da dívida for feito com trabalho futuro, o problema será o mesmo. Sair de casa para trabalhar e receber logo a paga é muito mais estimulante do que sair de casa para trabalhar e voltar com as mãos vazias, embora com a velha dívida ligeiramente menor. Sei, porém, de alguns casos em que o devedor de serviço cumpriu direitinho seu dever de pagar dívida de dinheiro com serviço pontual, mas isso é raro.
A frase mais brutal que encontrei entre os pensamentos sobre a gratidão veio da boca de um ditador notório por sua grosseria, tenacidade e impiedade. Ninguém menos que Joseph Stálin, que preferiu trocar seu sobrenome verdadeiro,  Djugashivilli, por “Stálin”, que significa “homem de aço”,”durão”. Referindo-se ao sentimento da gratidão, Stálin assim se expressou, segundo citação, em inglês, constante da internet (BrainyQuote): “Gratitude is a sickness suffered by dogs” ( “Gratidão é uma doença que ataca os cães”). Transcrevi como está na internet porque alguém poderia duvidar do que eu escrevi, contrariando o universal elogio de uma virtude mundialmente admiradíssima.
No mesmo site consta que Stalin também disse: “Death is the solution to all problems. No man - no problem”( “A morte é a solução de todos os problemas. Nenhum homem, nenhum problema”). Ainda tenho alguma dúvida sobre a veracidade dessa citação. Stálin nunca diria isso em público. Se alguém duvida que o Socialismo mundial — ideal concebido para tornar o mundo melhor — esteve sob o mau comando de uma vocação de gangster, essas duas frases tirariam qualquer dúvida. Ou será que um certo grau de “gangsterismo” é indispensável na área internacional, onde impera a força, de braço dado com a mentira?
                    Voltando ao tema mencionado no título, o lado negativo da gratidão, quis me referir à gratidão indevidamente aplicada na política, quando lesiva ao bem comum. Uma ingratidão política pode, às vezes, ser melhor, para a coletividade, do que a gratidão. Cito, a seguir, um exemplo concreto. Omito nomes para evitar problemas com possíveis herdeiros, zelosos em manter a reputação de um ancestral incapaz de se defender, porque já não mais entre os vivos.
Contaram-me, décadas atrás, que um grande político brasileiro, quando candidato a governador, foi muito bajulado por um cidadão que dispunha de uma frota de peruas para sua atividade comercial. Perto da eleição, esse indivíduo teria oferecido os préstimos de seus veículos para fazer a propaganda desse candidato, percorrendo cidades com aparelhos de som. O político venceu as eleições, elegeu-se governador e o indivíduo em questão — conhecido por seu amor ao dinheiro e falta de escrúpulos — passou a assediá-lo, na sede do governo estadual. Queria, a todo custo, ser nomeado para determinado cargo de grande significado financeiro. O então governador instruía seu secretário a dizer sempre que ele, governador, estava em reunião, ou dando outra desculpa. Imaginava que, com o tempo o pretendente acabaria desistindo, o que não ocorreu. O secretário, cansado de tourear, convenceu o governador a receber o ganancioso. Cara a cara, o dono das peruas alegou que o governador, quando candidato, lhe prometera esse tal cargo, se eleito. Argumentou que com a propaganda das peruas, teria, influído na sua eleição. Exigia, portanto, o cumprimento da palavra. Aí o governador lhe teria dito: — “Se cheguei, eventualmente, a prometer, quem lhe prometeu foi o candidato Fulano de Tal” — disse seu nome —, “mas o governador Fulano de Tal” — repetiu o nome — “nega o pedido!” E negou, de fato.
Se houve, realmente, uma promessa formal, ou uma vaga promessa, não sei — por isso não mencionei nomes envolvendo pessoas já falecidas — mas o fato é que a provável ingratidão do político foi muito mais virtuosa que a gratidão.
Outro potencial perigo relacionado com a gratidão está no critério para a escolha de Ministros de Tribunais Superiores, principalmente do STF. Como todos sabem, os Ministros do STF são nomeados após indicação do Presidente da República. Incidentemente, até hoje não compreendi a justificação lógica para tal critério, copiado dos Estados Unidos da América do Norte. Lá com a agravante de que o jurista é nomeado não para ser um dos  membro da Suprema Corte. É nomeado para ser dela presidente, e por toda a vida. Algo que evoca a monarquia, incompreensível em uma nação que pretende espalhar a democracia em todo o planeta, com periódico revezamento do poder.
Uma total independência de Poderes proibiria qualquer Presidente da República, de qualquer país, “escolher”, à vontade, quem vai votar em julgamentos importantíssimos, inclusive das suas próprias decisões presidenciais. Será que o Ministro nomeado, por mais idôneo que seja — e uma grande idoneidade tende, até mesmo inconscientemente, a valorizar a gratidão — não teria dificuldade em livrar-se da obrigação moral de retribuir quem tanto o ajudou? Principalmente quando a matéria sob julgamento for especialmente delicada, comportando decisões opostas e defensáveis em matéria constitucional. Dizer que nesses casos o Ministro “grato” deve dar-se por impedido não é uma saída prática porque pode ocorrer que largo percentual dos Ministros tenha sido nomeado pelo mesmo Presidente da República.
A faceta perigosa, porém, da gratidão em assuntos públicos não está apenas na nomeação dos Ministros pelo Chefe do Executivo. Maior perigo está na gratidão do nomeado para com algum figurão, não magistrado, que se empenhou para a transformação do  jurista em um juiz do mais alto tribunal do país. Assim como forma-se espontaneamente um lobby de admiradores em favor de candidatos a cadeiras nas Academias de Letras e nas vagas dos Tribunais Internacionais, presume-se — agora com razões bem mais concretas —, que o próprio Presidente da República seja pressionado para escolher tal ou qual jurista para preencher  as vagas no STF, onde são disputados interesses econômicos e pessoais bem mais concretos que pendências em tribunais internacionais. Nestes últimos será remotíssimo, ou nenhum, o interesse pessoal dos admiradores de tal ou qual especialista de Direito Internacional. “Torcem” por um ou outro candidato ao cargo porque simpatizam e admiram sua competência e personalidade.
 Na batalha de bastidores dos tribunais locais alguns pressionam o chefe do Executivo apenas por admiração pessoal pela capacidade do amigo. Outros, porém, pressionam por motivos estratégicos, prevendo que um dia poderão precisar da boa-vontade desse amigo. Grandes financistas e empresários, principalmente aqueles em constante perigo de serem acusados de infringir a lei — cada vez mais sutilizada e amplificada com preocupações de “crime organizado”, “tráfico de influência”, “enriquecimento ilícito”, “evasão de divisas”, “fraudes em licitações”, “fraude fiscal”, etc. — certamente veem em cada vaga no STF uma conveniência de preencher essa vaga com um “amigo do peito”. Lutarão seriamente para “emplacar” esse amigo e este, se escolhido para o cargo, terá que — quando surgir uma demanda envolvendo interesse, mesmo indireto, desse amigo — lutar para resistir ao próprio impulso de retribuir, por gratidão, o favor recebido quando for possível fazer isso com um voto bem fundamentado. E todos sabem como o Direito não é uma ciência exata.
Acredito e espero, porém, que o paradoxal dever moral da “ingratidão cívica” esteja sempre presente na formação da futura jurisprudência brasileira.
As considerações acima não contêm indiretas à situação brasileira. Têm apenas a intenção de analisar, genericamente, uma virtude que, como todas as demais, não pode ser vista de forma rígida, carimbada como calculada “obrigação de retribuir”.  Uma espécie de compra e venda moral. Traficantes, em favelas, costumam “ajudar”, com dinheiro, alguns moradores, já contando com sua futura colaboração, avisando a proximidade da polícia. Ser grato, nessas circunstâncias, é apenas colaboração com o crime. Mesmo as virtudes podem ser desvirtuadas, na sua manipulação. Se o benfeitor agiu apenas por malícia, não é malicioso ser ingrato quando cobrado o benefício.
Estou hoje com a veia moralista, mas espero que isso passe logo, porque assuntos dessa natureza em geral apenas enfadam os leitores.

                                                                                       Francisco Pinheiro Rodrigues        (20-5-2012)