sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

“Qual a confiança que os grandes jornais brasileiros merecem quando o assunto envolve política?

Foto divulgação

 “Qual a confiança que os grandes jornais brasileiros merecem quando o assunto envolve política? Nenhuma. A desinformação, ou distorção, está diariamente presente nas manchetes. Veja-se, por exemplo, a notícia “seca” de que o Presidente Bolsonaro “recusou a ajuda humanitária” do presidente argentino às vítimas das enchentes na Bahia. Essa “recusa” foi só para indispor a população contra Bolsonaro. Leia-se o que disse hoje o embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, no “Estadão”: “O governo simplesmente agradeceu e disse que, caso fosse necessário, aceitaria a oferta. Sinto, como um homem com experiência política, que estão distorcendo e interpretando mal a resposta dada pelo governo brasileiro à nossa ajuda”. E qual seria essa ajuda, segundo informação de Bolsonaro? A de enviar “dez homens” — “capacetes brancos” — que atuam em operações desse tipo. O Estadão publicou a mensagem do embaixador argentino porque se não o fizesse, o embaixador protestaria, na mídia, e essa recusa do jornal comprovaria sua tendência de distorcer notícias. Não sei se os “dez homens”, mencionados por Bolsonaro, foi apenas uma forma de dizer. Mesmo se fosse mais de dez, mas poucos, Bolsonaro tinha direito de somente agradecer a oferta mas dispensá-la no momento, como fez. Se aceitasse, a mídia diria: “O incompetente governo federal pede socorro à Argentina porque não sabe como ajudar a Bahía”. Bolsonaro tem seus defeitos mas a grande imprensa também tem os seus.  Os dois se equivalem”.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

CRIMES E SOBERANIA



"Prezado leitor, todos os artigos constantes desta edição on-line foram publicados, anteriormente, na edição impressa de 2012, deste livro acima — apenas visando presentear amigos, sem promoção — mas, agora relidos, verifiquei que todas as minhas observações, considerações, e opiniões continuam atualíssimas. Assim como certos livros, escritos séculos atrás, continuam sendo republicados, presumo que o mesmo aconteça com o primeiro volume da série "Verdades que melindram". São no total três volumes. 

CRIMES E SOBERANIA

            Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo. 

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder. 

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”. 

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.  A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...),  e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão. 

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas e jurídicas. 

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta. 

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, por vezes nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real. 

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá. 

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política. 

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

 O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades. 

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica. 

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?” 

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania. 

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

 Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
                   oripec@terra.com.br

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Publicado em 04.12.2006

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

VERDADES QUE MELINDRAM

 


Este livro é uma coletânea de cerca de 80 ensaios e artigos que publiquei, até 2012, no blog www.francepiro.blogspot.com —, além de no meu site www.500toques.com.br . Relendo-os agora, em dezembro de 2021, percebi que sua fundamentação continua de pé, mostrando que o ser humano evolui muito lentamente ou até mesmo regride. 

“Por que “verdades”, e não outra coisa? Porque a verdade, com todas as suas “desvantagens” econômicas, é a principal ferramenta de construção de um mundo melhor. Nada de realmente grande pode ser construído sobre mentiras. Imagine-se uma família ou empresa em que todos estejam constantemente mentindo entre si. No entanto é assim a política internacional. 

“Os temas que compõem o livro são, na maior parte, sobre Política Internacional e Justiça. Principalmente a brasileira, vista sob um largo enfoque, evitando, ao máximo, o jargão jurídico. Os argumentos mostram alguns pontos fracos da nossa legislação. Embora magistrado aposentado, meu respeito pela aplicação da ciência do direito é relativo. Primeiro, porque nem sempre as leis são concebidas e redigidas visando apenas o bem comum e a honestidade. Segundo, porque nem sempre os magistrados estão isentos de paixões políticas. E na minha particular opinião todo juiz, ao decidir uma causa deve tentar ao máximo, pessoalmente, evitar cometer uma injustiça, em afronta à verdade e ao mais elementar bom senso. Não deve ficar impassível, com cara de paisagem, quando percebe que a parte que moralmente tem razão mas está muito mal defendida, porque omissa, ou intimidada. Nesses casos, o juiz  deve requisitar provas, reinquirir partes ou testemunhas, quando percebe que o processo se tornou apenas um “teatro”, atuando como um inocente manobrável.  O grande juiz deve sempre optar pela verdade real, não apenas formal. Nesse ponto, vale mais que o mais veloz computador. 

“Quanto à Política Internacional, todos os ensaios envolvem polêmica. Basta resumir, aqui, alguns dos temas versados: a morte de Sadam Hussein; morte de Kadafi; o caso Cesare Battisti; uma certa anarquia jurídica internacional; Wikileaks; Barack Obama; Ban Ki-Moon; Netanyahu; o Conselho de Segurança da ONU funcionando como uma Câmara de Comércio; a “Frota da Liberdade”; a “bomba iraniana”; os hackers; as vantagens e desvantagens do capitalismo; o conflito Israel versus Palestinos + Irã; o governo mundial e dezenas de outros assuntos, escritos quando a política fermentava. 

Um tema recorrente — embora mencionado “en passant” — em meus artigos é a conveniência de um “Governo Mundial”, em que todos os Estados cedam parte da soberania em favor de um ente superior, escolhido livremente por todos os países. Esse ente superior teria o monopólio do uso da força, o que evitaria todas as guerras, atômicas e convencionais, preventivas ou em curso. Assim como a federação brasileira torna desnecessário a seus estados manter forças armadas próprias — o que representa imensa economia para cada unidade da federação —, é irracional o sistema atual de “obrigar” quase duzentos países, inscritos na ONU, e gastar quantidades incríveis de dinheiro só para defesa contra eventuais agressões externas. 

O uso e abuso da soberania já se tornou tão rotineiro que formou uma espécie de calo mental, bloqueador de qualquer reflexão que reexamine os perigos da atual soberania sem limites, cada país “decidindo” conforme o capricho do governante do dia. Cumpre lembrar que há governantes de pouco juízo. Houvesse um governo mundial, algumas décadas atrás, o Oriente Médio estaria há muito pacificado, não teria ocorrido o 11 de  Setembro e não teríamos a indústria armamentista em mãos particulares, fomentadoras de guerras, ou desconfianças. Sem constantes encomendas de armas a indústria bélica vai à falência. O assunto é longo e pretendo, em um livro específico, expor todos os argumentos em favor de um governo mundial. A rejeição imediata dessa ideia me parece muito mais um preconceito, com fundamentos superficiais, do que fruto de madura reflexão. Se a União Europeia — tubo de ensaio do governo mundial — está hoje com problemas, isso é consequência da “soberania financeira”, cada país gastando sem um controle central. Parece que agora eles acordaram. 

"Todos os artigos constantes desta edição on-line foram publicados, anteriormente, na edição impressa de 2012 — apenas visando presentear amigos, sem promoção — mas, agora relidos, verifiquei que todas as minhas observações, considerações, e opiniões continuam atualíssimas. Assim como certos livros, escritos séculos atrás, continuam sendo republicados, presumo que o mesmo aconteça com o primeiro volume da série "Verdades que melindram" — são três volumes.

Se você leitor, ou leitora, quiser ler o livro on-line gratuitamente, basta nos enviar um e.mail para: lz12comunicacao@lz12.com.br - Que enviaremos como presente de Natal um exemplar em PDF do livro VERDADES QUE MELINDRAM

 BOAS FESTAS 

 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A DECISÃO

 


            Década de 1990. 
                        Local: um apartamento na cidade de São Paulo, Brasil.

            Sentados no sofá da sala de visita, frente à televisão, bem juntinhos, o marido — seu nome é Ricardo —, com o braço envolvendo a cintura da mulher, parecem a imagem perfeita do casal feliz. De momento a momento, porém, disfarçadamente, ele consulta o relógio. Está angustiado, mas não pode revelar sinais de seu tormento. É preciso — urgente! — que a esposa saia da sala e vá para o quarto para dormir, ler, o que for. No quarto não existe extensão do telefone. Faltam vinte minutos para as dez da noite. E às dez ele receberá um telefonema da França, ou do aeroporto internacional de Guarulhos, Brasil. Uma moça o chamará, travando com ele, em francês, um diálogo que não poderá ser ouvido pela esposa, que tem alguma noção desse idioma. Com essa chamada, ele definirá seu futuro.

            O homem aparenta ter pouco mais de cinquenta anos mas, na realidade, está com sessenta e dois.  Sua mulher, Míriam, é dois anos mais nova, mas parece mais velha. Alta, quase da altura dele, rosto ainda com madura beleza, tipo de espanhola ou portuguesa de pele clara, olhos negros, sobrancelhas altas, expressão distinta, mas cansada. O cabelo é preto — preto demais, diga-se — e notam-se muitos fios parcialmente brancos junto ao couro cabeludo, brancura que vai crescendo à medida que se aproxima o dia de retorno ao cabeleireiro para a pintura mensal. O conjunto de sua aparência é prejudicado pela ligeira papada, que nunca conseguiu controlar com muito êxito, mesmo fazendo regimes e massagens com cremes de algas marinhas e outras substâncias, tão misteriosas quanto ineficazes.

            Ela tem a tendência de engordar justamente ali. E também nos quadris, os tais “culotes” que tanto atormentam as mulheres “cadeirudas”; mas não ela, porque o marido sempre gostou dessas curvas acentuadas. Antes dos trinta anos ela já sentia, embora em menor proporção, o problema da gordura incômoda sob o maxilar, o que a levava, em reuniões sociais, a policiar seus movimentos de cabeça, evitando encolher o queixo. Nessas ocasiões, andava com a cabeça um tanto erguida demais, como que olhando o mundo por cima. Dava, assim, a impressão de ser uma mulher orgulhosa, o que não era.

            Não obstante sua corpulência nos quadris, tem a cintura relativamente fina, mesmo com a idade atual, o que lhe dá uma aparência de “violão”, ou melhor, violoncelo. Instrumento musical, de carne e osso, do qual, bem dedilhado, o marido, no passado, extraía acordes de inspirada volúpia. Tais sinfonias, executadas a dois, sábado à tarde, telefone desligado, consumiam tanto oxigênio que eles, finda a batalha, meio grogues, pernas bambas, só pensavam em dormir. O marido, nesses entreveros, fazia questão absoluta de, inicialmente, vê-la nua, imóvel, de pé, qual uma estátua de mármore. — “Sou um visual!” —, ele se justificou, sério, certo dia, respirando forte, com aquele olhar indisfarçável de lobo mau que toda mulher — mesmo aquela que nunca viu lobo —, reconhece. Naquele dia, com a respiração entrecortada, ela respondera, rouca: — “Gosto desse seu ar faminto... Quero ser submissa...”

            Mas tudo isso é passado. Três anos antes, ela pensara em submeter-se a uma operação plástica para remoção desse duplo queixo, mas quando consultou o cirurgião este, em um exame de rotina, descobriu que ela tinha um caroço no seio direito. Aconselhou uma biópsia, e o exame revelou que o pequeno tumor era maligno. Assim, uma simples consulta para fins estéticos acabou se transformando em pesadelo, sendo esquecida a preocupação com a aparência.

            Extirpado o seio, com uma quase garantia médica de que o problema estava superado, ela passou a se apalpar com apreensão, diariamente, antes do banho. E pouco mais de um ano depois, um novo caroço, também canceroso, a obrigou a remover o seio restante.

            Essa dupla amputação, como é natural, afetou a vida do casal. O cerimonial do sexo, uma forma superior do “ritual do acasalamento” — superior por se tratar de seres humanos, em princípio espirituais, mas guardando um forte instinto animal — foi bastante perturbado. Como se sabe, todo casal, não sendo excessivamente inovador — tiro que sai pela culatra porque gera progressiva perda do respeito pela mulher — tem o seu ritual, seu procedimento, físico e verbal, de excitação. Uma rotina, uma cadência, mais terna ou mais libidinosa, variando a proporção desses dois ingredientes conforme a idade do casal, fogosidade da imaginação e outros fatores obscuros que o próprio leitor se encarregará de completar, pensando na própria experiência. Ritual que o casal, no geral, prefere não modificar porque “não se mexe em time que está ganhando”. Uma espécie de condicionamento da libido, muitas vezes iniciado ainda no período do namoro, ou noivado, quando os olhos vigilantes de parentes, na sala de visita, possibilitavam somente os sorrateiros “amassos”, únicas manifestações possíveis porque a regra era as mulheres casarem virgens. Manobras que acabavam se incorporando definitivamente às técnicas de mútua excitação. Algo assim como o sininho, o bife e a salivação do cão na experiência de Pavlov.

            A partir da amputação do primeiro seio, ela vetou intimidades com a luz do quarto acesa, como ocorria antes. Ele costumava pedir, como disse, que ela inicialmente ficasse de pé, completamente nua, como uma estimulante estátua grega ou romana — onde for mais tentadora, será com ela a comparação — enquanto a contemplava com seriedade, nunca com risos ou brincadeiras porque ambos consideravam que risada com sexo só existe no cinema americano. Mesmo nos dias em que ele estava meio indiferente, era só olhar para o corpo dela para automaticamente se eletrizar. Depois da primeira cirurgia, ela exigia escuridão absoluta no quarto. Posteriormente, a pedido dele — que precisava do estímulo visual —, passou a usar um sutiã recheado de espuma de plástico. Um outro cirurgião sugeriu prótese de silicone em ambos os seios, mas essa área de seu corpo estava tão associada à doença mortal, que o sexo tornou-se a última de suas preocupações. Ela queria passar um bom tempo sem novas cirurgias. E assim fluíram os anos.

            A vida sexual do casal, portanto, sofreu um marcante esfriamento. Muito superior ao simples desgaste inerente ao processo de envelhecimento, não obstante o marido fizesse um máximo de esforço para se mostrar tão ardente quanto antes. Esforço que, ultimamente — e cada vez com maior frequência, — não se mostrava eficaz. Como a frustração — justificada com inconvincentes explicações de cansaço, idade, preocupações, etc. — era mais humilhante que a mera abstinência, a solução natural foi espaçar ao máximo os momentos íntimos. E ela estava quase sempre cansada. “Será que está com algum tumor em outra parte do corpo”?

            Esta é a situação do casal que, neste momento, assiste à televisão. O espírito dele está tão ausente da tela, que a única coisa que poderia responder — se indagado de chofre sobre o que assistia —, é que não é um filme de guerra, ou jogo de futebol. Ela, por sua vez, pensa em comprar um coquetel de vitaminas que, dizem, combate os radicais livres, protegendo o corpo contra o câncer.

            Cumpre agora descrever o marido. É moreno, nariz levemente aquilino, cabelos grisalhos, estatura mediana, mais magro que a mulher e também com feições distintas, que inspiram respeito. Sempre se considerou “velho”, isto é, com modos e juízo de velho. Isso desde menino. Assim como Nelson Rodrigues dizia que Ruy Barbosa, o grande jurista brasileiro, já saíra do ventre materno com setenta anos, usando fraque, bengala, pince-nez e polainas — ou comparações semelhantes do genial escritor e dramaturgo — a alma do senhor que agora descrevemos já nascera ajuizada e cautelosa.

            Sempre foi um menino sério, responsável, essencialmente interiorizado. A tal ponto que, quando garotinho, convidado pelos colegas a participar das brincadeiras mais movimentadas, preferia brincar sozinho com seus soldadinhos de chumbo, inventando estórias recheadas de tiros e diálogos de faroeste americanos, teatrinho solitário que se prolongava por quase uma hora.

            Quando algum colega o convidava a brincar de guerra entre dois “exércitos” , um defronte do outro, distantes dois ou três metros, e cada “menino-general” procuraria derrubar, com uma bola de gude, “soldados inimigos” — ganhava a guerra quem derrubava mais — ele já perdia o gosto pela brincadeira. “Objetiva demais”, aritmética, sem qualquer enredo, astúcia, atos de coragem ou covardia. Se pelo menos a bola explodisse, como nos filmes! Como aceitar a derrota de seus “soldados” de maneira tão primária, bastando contar os “mortos” de cada exército? — “Isto aqui é uma batalha ou um jogo de boliche?” — ele pensava. Gostava é dos “enredos”, das traições e armadilhas em que os soldadinhos se escondiam atrás de livros empilhados — representavam rochas —, saltando de repente, aos berros, sobre o inimigo.

Esses violentos combates solitários eram travados com gritinhos de estridente ferocidade, ocasião em que o vencido soltava um angustiado “Não me mate! Não me mate!”. Súplica inútil antes de ser trespassado por sabre de chumbo. E, para maior aparência de vida real, os soldadinhos utilizados nos combates corpo-a-corpo ficavam sem os pedestais —, igualmente de chumbo — que lhes permitiam ficar de pé. Realisticamente, pensava o infantil general, como admitir que no seco Arizona os valentes soldados tivessem seus pés permanentemente grudados naquela prancha plana que lembrava um esqui aquático? Se, depois de removidas as bases nunca mais podiam ficar de pé, a não ser encostados em algo, paciência, porque o dever militar impõe sacrifícios.

            Eram também toscamente bilíngues essas batalhas imaginárias. A maioria das cenas reproduziam curtos diálogos ouvidos com frequência nos filmes de cowboys. Drop your gun! (largue sua arma!) e Hands up! (mãos para cima!) recheavam os gritos desses imaginários combatentes metálicos, enquanto o “diretor” e ventríloquo alternava o tom de voz: ora normal, ora agudo, ora tetricamente cavernoso. Algumas horas depois, sua garganta estava rouca.

            E tão apaixonado era ele por esse jogo imaginativo, que, por volta dos dez anos, preocupava-se seriamente com a lamentável perspectiva de, um dia, como adulto, não poder mais, sem ridículo, brincar com seus minúsculos companheiros de batalhas memoráveis. A não ser de forma indigna, escondido atrás de portas trancadas. Nessas horas, ele, com tristeza antecipada, fitava melancolicamente seus mais leais soldados — principalmente aqueles “inválidos” que nunca mais ficariam de pé. E sentia saudades prévias até mesmo dos vingativos peles-vermelhas, escalpelizadores temíveis que, com seus rostos impassíveis de Comanches, deitados de pernas abertas — quais índias em posição ginecológica — aguardavam a boa-vontade do infantil diretor-ventríloquo para montarem novamente seus plúmbeos cavalos.

            As manchas de chumbo estiveram tão presentes nos seus dedos infantis, que, recentemente, vindo a conhecer os efeitos tóxicos desse metal, quando ingeridos — ou em contato com a mucosa da boca — indagou-se se não prejudicara o seu sistema nervoso com o prolongado contato com um elemento só agora reconhecidamente tóxico, lembrando-se que, quando menino, costumava roer as unhas, frequentemente impregnadas do traiçoeiro metal. Sabia-se um homem melancólico e sem muita vivacidade mental. Se muito aprendera é porque muito se esforçara. Quem sabe não estaria aí a origem dessa sua tristeza, sua “alma de chumbo” como dissera, impaciente, uma moça, sua aluna — aparentemente apaixonada ou precisando melhorar a nota, e de cujas investidas ele escapara fingindo não perceber as diretíssimas indiretas. Não tanto por virtude: a tentação, com ela, era pouca.

            Essa preocupação de ordem química, o chumbo, surgiu quando um historiador sustentou a tese de que Nero, o sádico e louco imperador romano — aquele que incendiou Roma tocando lira — era um rapaz promissor, bondoso e equilibrado antes de assumir o poder. Como ele, depois de imperador, tomava suas sopas quentes em tigelas de chumbo, o pesquisador arriscava a hipótese de que estaria na ingestão involuntária desse venenoso metal — que se deposita no sistema nervoso, e dali não se desgruda — a explicação de toda a sua conduta de tarado-símbolo na história de Roma. E nosso professor, impressionado, se perguntava: — Sou triste por hereditariedade ou por envenenamento parcial, via pele dos dedos e mucosa da boca, na infância? — Isso porque seus falecidos pais eram ambos alegres e extrovertidos.

            Nosso homem é um intelectual típico, magistrado e professor de Direito Constitucional numa Universidade de prestígio. É homem seríssimo, de conduta inatacável, principalmente em razão de sua condição de magistrado. Nunca pôde admitir que um juiz tivesse certas “fraquezas”, talvez até perdoáveis em outros homens. Não obstante sentisse atração por mulheres bonitas — e bem-feitas de corpo — algumas alunas mui liberadas, na primeira fila, cruzando e descruzando as pernas, com suspeita e excitante energia, perturbavam às vezes o fio de seu raciocínio — não admitia sequer a hipótese de, sob qualquer pretexto, “pular a cerca”, como se dizia no tempo em que as cercas eram aparentemente respeitadas. — “Como eu poderia fazer isso?! Seria trair a minha mulher! E na condição de juiz, como conseguiria, depois, condenar, numa sentença de divórcio, um marido infiel, usando termos moralistas, se eu mesmo estaria cometendo a mesma falta? Minha alma racharia ao meio! Não, não dá para separar as coisas... Quem quer ser juiz, com suas vantagens, tem que aceitar também suas limitações, mesmo aquelas que não são encaradas tão duramente pela consciência do homem comum. Não interessa saber qual o percentual de maridos que trai a mulher. Um juiz não é um homem comum... Pelo menos não deveria ser”.

            A tal ponto o impressionava essa “cisão” entre o homem-juiz, ser humano, e o profissional aplicador da lei, que chegou ao ponto de solicitar, algumas vezes, xerox das sentenças proferidas por aqueles colegas de profissão que eram vítimas de fofocas ou de verdades de infidelidade. Só para ler, nas entrelinhas, como é que eles lidavam com o problema íntimo de conciliar, numa sentença judicial, a obrigação de condenar o marido infiel com a sua própria situação pessoal. Notou, com certo alívio, que tais colegas — eram poucos —, pelo menos não eram hipócritas. Não utilizavam frases de indignação moral nas suas decisões, reprovando o marido culpado. Utilizavam apenas frias expressões jurídicas. E nunca, em conversas de corredores, ele abria a boca para censurar tais colegas. Que cada um cuidasse de sua alma, era a sua filosofia.

            Tornara-se juiz porque, como advogado, seria uma lástima. Pelo menos na hora da combinar honorários com o cliente. Pechinchar, em qualquer situação, era-lhe uma tortura. Sentia-se, então, vulgar, mesquinho, um rato discutindo com outro rato. Não! Muito pior: ratos sorridentes, mostrando os dentes, falsos, palavrosos, disfarçando a mútua cobiça. E seria também incapaz de interpor um recurso só para “esticar” a demanda, exigência muito comum do cliente em aperto financeiro ou processado por roubar dinheiro público.

            O professor Ricardo está agora se preparando para a aposentadoria. Assinará, é quase certo, seu requerimento nos próximos meses. Dedicar-se-á futuramente ao magistério e à elaboração de obras jurídicas. Tem dois projetos culturais na vida: o primeiro é proferir, em francês, algumas palestras na Sorbonne. Por isso vem lendo e tomando aulas de francês há mais de um ano. Quer, porém, proferir tais palestras como convidado, formalmente contratado, mesmo que a remuneração seja pouca. O que importa é ser convidado pela prestigiosa universidade. Não como simples locador de sala — um turista —, quando a universidade está de férias e cede o recinto para a vaidade deslumbrada de alguns professores do terceiro mundo que querem voltar aos seus países dizendo que “deram aulas na Sorbonne”. O segundo sonho é escrever um respeitadíssimo e grosso volume de Filosofia do Direito Constitucional, examinando e comparando o tutano básico do Direito que rege a organização política dos povos. Conseguido isso, considerar-se-ia realizado. E eventualmente, mais ainda, se convidado para ser ministro do Supremo Tribunal Federal.

            Sua aparência atual é ótima para sua idade. Nem gordo, nem magro, poucas rugas e grisalho. Poderia esconder uns cinco, sete anos, quando mencionasse sua idade. Seu único defeito é uma leve dilatação do estômago, algo que vem combatendo arduamente com urgentes exercícios abdominais. Só nos últimos dias sentiu motivação para caprichar na aparência. É algo que tem a ver com a sua angústia, já referida no início deste texto, relacionada com o telefonema que receberá às dez da noite, conforme foi combinado.

            Qual a razão da angústia? Mulher? Sim? Mas o nosso homem não é um puro?

            Bem, puro ele é, até agora, mas o destino, parece deliciar-se em pregar peças especiais nos “puros”. Quando encontra essas cândidas vítimas, espécie em extinção, quase indefesas — por falta de treino específico na malandragem —, o destino parece interessado em humilhar esses orgulhosos pretensiosos que se consideram moralmente superiores. Vingança do demônio, para quem acredita no mal personificado.

            Nosso homem está, há pouco menos de dois meses, apaixonado por uma jovem advogada, recém-formada na terra dela, Uma francesinha de vinte e quatro anos que conheceu em Paris, quando frequentava um curso de Direito Constitucional, ministrado em francês, curso que demorou um mês. Mas dizer que está apaixonado é pouco. Esta palavra anda sem dignidade, desgastada pelo uso. No seu caso, é preciso acrescentar termo realmente de “peso” para melhor retratar o grau da sua paixão. E já que falamos muito em certo metal cinzento, aproveitemos o embalo para dizer que nosso professor está com o coração “chumbado” à imagem da bela francesinha desde o dia em que a viu. Se ele, antes dessa paixão, já era um homem naturalmente meio triste, tornou-se — depois que se considerou rejeitado —, um desanimado arrastador da própria carcaça. Houve momentos, logo após retornar da França, em que só encontrou motivação para continuar vivendo porque temia que o câncer revisitasse sua esposa. Não tendo filhos, se ele morresse, quem cuidaria dela?

            Quer dizer, então, que nosso homem — “Sua Excelência, o puríssimo” —, quando na França, andou “pondo as manguinhas de fora”?

            Não diga assim, cínico redator! Seria vulgar expressar desse modo o que aconteceu. Nesses trinta dias europeus, ele literalmente não pegara na mão e muito menos no carnal “resto” daquela beleza, entre ruiva e loira, que o enfeitiçara. E também não tocara em corpo de mulher alguma. Para dizer a verdade, quando ele foi à França, uma boa parte daquele sótão atravancado de desejos dissimulados — chamado cérebro humano —, estava contaminado com alternativas bem diferentes daquelas que nosso professor normalmente mantinha “com rédeas curtas” — é bem o termo —, no seu próprio país. Estava com sessenta e dois anos, e nunca havia traído a mulher, mas sentia uma irracional angústia quando pensava na perspectiva de continuar assim, invicto, até morrer. Mesmo existindo uma vida eterna — e ele tinha sérias dúvidas a respeito — a vida terrena era algo insubstituível, talvez a última chance para satisfazer certo tipo de anseio que só morre inteiramente depois de saciado.

 Essa viagem à Europa, desacompanhado, seria talvez sua última oportunidade de satisfazer esse lado instintivo de sua natureza, um anseio que ele reprovava e sufocava, mas que pressionava dolorosamente sua alma e até mesmo, — evitemos descrições anatômicas — parte de seu corpo. Não que tivesse viajado expressamente para isso. Cruzara o Atlântico com finalidade “estritamente” cultural, dizia a si mesmo. Mas, já no avião, observando pensativamente uma curvilínea aeromoça, perguntava-lhe um jeitoso diabinho interior se, por acaso — só por acaso — encontrasse na França uma bela moça que fosse livre, sadia, discreta e provisoriamente sincera, não seria “humano”, desculpável, cometer esse curto pecadilho temporário antes de mergulhar na feiosa velhice, com seu cortejo de mãos trementes, confusão mental e fraqueza? Afinal, de certo modo, tinha algum direito, pois não? Era um homem de passado irretocável. E quantos homens, no Brasil, poderiam se orgulhar disso depois de um casamento de trinta anos? Além do mais, vivia insatisfeito desde as mutilações sofridas pela esposa. Se fizesse alguma bobagem, sem risco de AIDS, não haveria dano para ninguém... Estaria numa terra estrangeira, de férias, muito longe de suas obrigações como juiz. Na França, ele não era juiz. Era um turista com todos os “direitos” do turista saudável.

            Se é possível paixão instantânea por u’a mulher não foi outra a natureza da sua reação ao entrar na classe e notar, na primeira fila, a presença — mais especificamente o rosto — daquela mocinha ruiva, sardenta, de franjinhas, cujo nome é Monique. Ela, que no momento estava lendo, com o simples erguer dos olhos claros na sua direção, apenas curiosa, fez disparar o coração do brasileiro. Por sorte — ou por azar, só o futuro dirá — a carteira ao lado dela estava ocupada apenas com seus livros, logo removidos para que ele pudesse se sentar. Fez isso sorrindo, simpática, bela e graciosa, o que o deixou sumamente contente. De circunspecto professor universitário e juiz austero passara, em minutos, a aluno entusiasmado com a coleguinha de classe. Paris começava bem...

            Como faltavam uns quinze minutos para o início das aulas, ele, subitamente loquaz, inspirado, livre de todo o chumbo espiritual anterior, perguntou algumas coisas sobre a rotina da escola. Usou um francês que imaginava impecável, mas ela, sem nenhum acanhamento, começou a rir, deliciada, jogando a cabeça para trás, achando a pronúncia “inestimable”, que ele interpretou certo como “engraçada”.  Ela desculpou-se, em seguida, pondo a mão no braço dele — toque que ele nunca esqueceu — dizendo que o francês dele, mesmo sendo “esquisito”, ou por isso mesmo, era mais interessante que o falado normalmente pelos franceses. Explicou que tivera um namorado brasileiro um ano antes, que também dava uns “escorregões” parecidos, além de fazer um bico exagerado ao pronunciar o “u”. E ao dizer isso — sem vaidade, porque a enfeava — projetou, com exagero, os lábios pra frente, imitando a chimpanzé dos filmes de Tarzan. Disse que o ex-namorado brasileiro era, paradoxalmente, um rapaz loiro, de olhos azuis, mais parecendo um sueco, e que morava no Rio de Janeiro.

            A simples menção de que ela tivera um namorado — brasileiro ou que diabo fosse — provocou nele uma reação instantânea e desagradável. Algo como encontrar uma barata morta num pote de cocada preta. Pior que isso só se a barata ainda estivesse viva. Um ciúme sem lógica, porque mal conhecia a jovem. Sensação equivalente à decepção do noivo que, em noite de núpcias, presumindo virgem a noivinha, depara-se com mestra escoladíssima na arte de inventar posições, dizendo ainda, a malandra, que aprendeu tudo aquilo em livro de educação sexual.

            — Você namorou esse brasileiro muito tempo? — perguntou, disfarçando o despeito, sempre em francês, porque ela só conhecia algumas frases em português. Passou-lhe pela mente, qual um relâmpago, a hipótese de que ela poderia ter tido relações íntimas com o tal moço. Afinal, pensou, a mocidade hoje tem pressa. Pressa pela pressa, porque já não há mais a desculpa de que o mundo vai explodir amanhã numa guerra nuclear.

            — Nada... Ele ficou aqui apenas quinze dias... Um fêtard, (farrista), Nem chegou a ser um namoro... Ele era muito vazio... Para mim, o homem tem que ter uma certa segurança, não pode ser imaturo, oco... Não chegamos sequer a trocar cartas quando ele voltou para o Brasil. Mútua desistência antes de começar...

            O coração dele inflou novamente. Ela estava livre! Pelo menos de brasileiro, raça sabidamente perigosa. E ele, modéstia à parte, vazio não era, nem inseguro. As perspectivas, pois, eram excelentes. Sentia-se subitamente rejuvenescido trinta anos, muito loquaz. Conversaram, em seguida, durante quase uma hora porque o professor que daria a primeira aula, por maravilhosa dádiva do destino, sofrera, naquela manhã, a caminho da escola, um acidente de trânsito, não estando em condições de dar a primeira aula. Para nosso professor brasileiro, todo o corpo docente francês poderia, naquela manhã, com seu aplauso, afogar-se no Sena.

            Na hora do almoço, disfarçando o receio — temia que ela o achasse muito velho — ele perguntou onde havia um restaurante ou fast food, onde pudesse almoçar. E indagou se aceitaria almoçar com ele.

            Para sua surpresa e alegria, ela aceitou imediatamente. E a conversa prosseguiu, animada, tanto na lanchonete quanto na escola, nos intervalos de aulas, quando retornaram para as preleções da tarde. Bendita França, paraíso da cultura! — cantava seu rejuvenescido coração.

            À noite, sozinho no hotel, ele não se reconhecia, de tão eufórico. Olhando-se no espelho do banheiro, viu um homem eletrizado, sem metáfora. Seu cabelo estava quase em pé, igualzinho ao do Don King, empresário do Mike Tyson, não obstante nosso professor ser da raça branca. Nem lembrava que na rua do hotel ventava muito. Como cabeça de vento não sente vento, e seu coco estava totalmente impregnado da moça, ele nada notara antes de se ver no espelho.

Flutuava bestificado dentro do quarto. Chegou quase a rodopiar uma imaginária valsa vienense. Um adolescente enamorado pela primeira vez. Nunca se sentira assim, nem mesmo quando do namoro com sua mulher. E não tropeçava em nenhum drama de consciência porque, afinal, não sentia propriamente uma comum excitação sexual na presença de u’a mulher. Ali não havia “adultério”, palavra azeda, sombria, cacho de conflitos interiores.

        O curso começara numa segunda-feira. Nas conversas, ele se conteve para não dizer, logo — sem que lhe fosse perguntado — o que fazia na vida. Não queria bancar o faroleiro, dizendo, de cara, que era juiz de um tribunal de apelação. Sabia que as mulheres, no geral — não sendo rés, nem tendo sofrido, por acaso, a mão pesada da justiça — reagem favoravelmente à presença do homem-juiz, símbolo de poder. O juiz, no primeiro mundo, é geralmente uma pessoa educada, equilibrada, inteligente e — charme principal —, supõem as mulheres que ele ganhe bem e consiga as coisas sem afobação, só por força do prestígio do cargo. Monique ficou admirada, portanto, de ter, como simples colega de classe, uma pessoa “importante”. Além disso, era professor universitário, presunção de capacidade intelectual. Ponto a mais, porque ela, não obstante muito viva mentalmente, não era muito estudiosa. Cansava-a ficar  uma hora sentada lendo um livro técnico. Por isso valorizava quem “tinha saco” — palavras dela, mas em francês — para digerir todas aquelas teorias complicadas que infernizavam sua paciência quando estudava para os exames na Faculdade de Direito. Seu pai era advogado em Marselha, com boa clientela e ela esperava viver muito bem como mais uma advogada no escritório. Predileção, gosto mesmo, ela tinha por coisas mais amenas, tais como música, cinema e viagens. Mas respeitava os intelectuais, desde que famosos. O resto, não muito, porque lhe parecia que o mundo se afogava em livros.

Quando ele, explicando sua presença naquele curso, revelou sua ambição de futuramente dar aulas na Sorbonne, os belos olhos dela se arregalaram. Nunca conversara coloquialmente com um “juge” de alta posição. E ali estava, a seu lado, paparicando-a, aquele senhor simpático, não feio, seguro de si e nem um pouco vazio. A única “feiura” da sua pessoa estava no dedo anular. É que portava uma aliança, sendo, portanto, homem proibido. Não que estivesse interessada num senhor com pouco mais de cinquenta anos — é o que ela imaginava — mas de alguma forma aquele aro de ouro a incomodava.

Considerava-se, e era, uma moça às direitas e católica. E moças direitas e católicas não devem conversar longamente com homens casados que, quando desandam, são até mais atrevidos que os solteiros. Já passara por duas experiências desagradáveis com casados. Fora preciso empurrar um deles com violência, pois tentara agarrá-la quando a sós num escritório. Um outro, respeitado jurista, cara de avô, sentado a seu lado no sofá, lendo em voz alta o Código Civil Francês, subitamente se transformara em sátiro gordo apertando a coxa dela enquanto extraía “a melhor interpretação deste artigo...”. O “canalha” então “ordenhava” o Código Civil apertando coxas? Minha coxa tem cara de úbere”?! Com raiva, sem mesmo pensar, ela lhe aplicara, com o punho fechado, uma enérgica “hermenêutica” na orelha erudita e cabeluda. A única reação dele foi um “Ai”!  Tudo isso ela pensava, mas não disse ao professor brasileiro. Quem sabe o velho jurista estava com um início de demência. 

Querendo saber melhor com quem lidava naquele momento e pedindo desculpa “por ser tão intrometida”, Monique fez algumas perguntas mais íntimas, indagando, como quem não quer nada, se ele era feliz no casamento. E se tinham filhos.

Cauteloso, respondeu logo à pergunta mais fácil: não, não tinham filhos. Mas não foi nada fácil, respondendo à primeira pergunta, conciliar a verdade, o respeito que tinha pela esposa e o medo de que a francesinha arrepiasse carreira. Explicou, escolhendo bem as palavras, que “viviam bem, sim, respeitava sua mulher”, e que tinha sido “até agora” um marido fiel. Mas, desobedecendo a uma nítida censura interior — que lhe fazia cara feia, para que calasse a boca — explicou que a mulher tinha tido câncer em ambos os seios, removidos, o que “lhe dava muita pena”.

Desse jeito não mentia e de certa forma justificava o, em tese, censurável entusiasmo pela ouvinte. Deixara implícito que só poderia ser um homem direito, mas frustrado, pois casado com uma mulher sexualmente incompleta. Mas, antes de dormir, naquela noite, sentiu-se mal por causa dessa fraqueza. A severa voz interior censurou-o por não ter tido a coragem de dizer à moça que “amava” a esposa. Mas se dissesse isso — ele se defendia, sob protesto da consciência — a francesinha não daria logo no pé? O que ela poderia esperar de um homem “velhusco”, casado e que amava a esposa? — “Só um herói diria gostar da mulher naquela situação! — ele se justificava. E, sendo torpemente corajoso, pela primeira vez se perguntava: — Na verdade, posso dizer hoje que amo minha mulher? Que eu seja maldito por admitir isso, mas não estou com ela por piedade?

Quanto aos sentimentos pela francesa, era amor mesmo! Estava convencido. Uma “paixonite” aguda, que ultrapassava o sexo. Afinal, ela não era o seu tipo sexual. Sempre tivera propensão para mulheres altas, vistosas, “aviões” — assim também tinha sido a sua mulher — e a francesinha corporalmente era um “teco-teco”, se bem que de linda fuselagem. Tinha no máximo um metro e sessenta centímetros de altura, quadris estreitos e dois limões à guisa de seios.

           

“Mas como era graciosa! - pensava. Olhos grandes, claros, por baixo da franjinha entre aloirada e ruiva. Uma vivacidade de expressão facial que ele não conseguia explicar porque o magnetizava. Até as sardas — das quais ela tinha raiva — lhe agradavam. Ela pretendia se especializar em contratos internacionais e acabara de se formar em Direito. E ele conhecia alguma coisa do assunto, fazendo questão de impressioná-la.

A coisa ia muito bem até que, na quinta-feira, surgiu um problema. Esse “problema” era espirituoso, ousado e italiano. Seu nome era Luigi. Tinha sorriso bonito, belos dentes, porte atlético, cabelos negros e uma forte semelhança fisionômica com o ator Mel Gibson quando moço. Resumindo, um horrendo canalha — aos olhos de nosso enciumado professor. Isso porque o moço, tão logo se instalou na classe, não desgrudava os olhos da francesinha, não disfarçando seu lúbrico — portanto repulsivo —, interesse.

O problema com o italiano é que o monstro não respeitava nem um pouco a presença do ilustre professor brasileiro. Parecia-lhe matéria pacífica que a francesa não poderia, em hipótese alguma, nem mesmo embriagada, ter algum interesse sentimental por aquele quase “ancião”, uns trinta e tantos anos mais velho que ela. E o pilantra, na cafeteria da escola em um dos intervalos das aulas, ao se deparar casualmente com nosso professor, perguntou, apontando para a moça, que estava a poucos metros distante: — É sua filha?

Se o “maldito comedor de “spaghetti” — assim já estava classificado o moço no arquivo do brasileiro — quis fazer uma gozação, ou perguntava inocentemente, não deu para saber de imediato porque a cara peninsular era neutra, isto é, de pau. Mas tudo indicava que era alfinetada, porque não havia a mais remota semelhança fisionômica entre ele, professor, e a francesinha. Educadamente respondeu que a moça não era sua filha.
        Sem se dar ao trabalho de agradecer à informação, o “aborto bonito e fétido de Mussolini” acrescentou nova injúria: — O senhor é professor aqui?

A pergunta era para aborrecer, pensou o brasileiro, em acesso de paranoia. Significava que, pela sua idade, deveria estar é do outro lado da sala, dando, não recebendo aula. Ou em casa, rezando o terço. Não sentado entre os jovens, destoando do conjunto, faiscando sorrisos com dentadura nova — hipotética mentira, porque ele não usava dentadura.

 É, o rapaz era mesmo atrevido, pois como poderia ele, brasileiro, ser professor da escola se estava sentado entre os alunos? O patife, por acaso, não o tinha visto conversando a todo momento com a moça? Estaria cego, a ponto de só notar a presença dela, sem lembrar do rosto do vizinho tão assíduo? É, bem que merecia uns tapas... Coisa, porém, que ele nunca faria, pois odiava escândalos. Além disso, pensou: sejamos realistas, levaria uma surra, porque o moço era musculoso e decidido. Aos sessenta e dois anos, ninguém está, nesses entreveros, livre de um enfarte. E quem se encarregaria de enfiar seu cadáver enfartado dentro de um caixão lacrado, via Brasil, onde chegaria coberto de ridículo? Os jornais diriam, em manchetes: “Magistrado brasileiro idoso apaixonado apanha e morre de enfarte disputando assento ao lado de beldade!”

A investida do “cafajeste” prosseguiu, sistemática. No primeiro intervalo das aulas, na cafeteria, o moço já tinha arranjado um pretexto para puxar conversa com a francesinha, insistindo em lhe pagar um cappuccino. E a “prostitutazinha” aceitara, sem nem olhar para o lado do “velho professor brasileiro”, que, por coincidência, naquele exato momento, qual um garçom bajulador, tinha em cada mão um copo de plástico com café, creme e canela, adoçado a capricho, uma bebida para ele e outra para a moça. Vendo que ela, toda alegre, já tomava o café oferecido pelo italiano, disfarçadamente deixou um dos copos em cima do balcão, virando-se para o outro lado, bebendo o seu, profundamente despeitado. Como o café estava muito quente, não dá para saber se o brilho aquoso dos seus olhos era queimadura nos lábios ou no coração. Como seu cappuccino estava delicioso, compensou, em parte, a frustração amorosa bebendo o conteúdo do segundo copo. Pobre compensação.

Não ficou por aí o ataque fulminante do Calígula redivivo. Acompanhou a moça de volta à sala de aula, sempre eloquente, autoconfiante, gesticulando muito, contando anedotas. E sentou-se na carteira que, até agora, vinha sendo ocupada pelo professor. Como as carteiras não tinham dono certo — ainda que, no geral, os estudantes respeitassem a posse anterior do colega — nosso professor nada podia reclamar. Dizer o quê? Que fazia questão de ficar ao lado da moça bonita? Tentar arrancar à força o invasor? Resignado, ficou parado ao lado, desconcertado.

Nesse momento, a francesa, notando a perplexidade do brasileiro, disse alguma coisa em voz baixa ao italiano, aparentemente defendendo os interesses topográficos do professor. Mas o moço mostrou-se insensível. Com visível má vontade perguntou ao “tio” se ele fazia “questão absoluta” de sentar-se ali. E antes de ouvir qualquer resposta, sugeriu: — Que tal ficar no meu lugar, ali na terceira fila? É entre duas moças bonitas — esclareceu, dando uma piscadinha maliciosa, como que reconhecendo que o velhão estava é querendo paquerar. E acrescentou, olhando a lousa, fingindo-se de míope, apertando os olhos, sem convencer: — Não estou vendo muito bem lá de trás.  O professor, simulando indiferença à escolha — embora fervesse por dentro —, não teve outra alternativa, a não ser mudar para o lugar do moço. Mas estava tão atarantado que, a caminho de seu novo assento, pisou em cheio no calo de uma aluna, que chegou a gritar, empurrando-o com rudeza.

Nos dias seguintes, isto é, quinta e sexta-feira, jamais um assento de madeira foi tão disputado por quatro nádegas masculinas. Mas a mocidade, ou melhor, a cara de pau do italiano acabou vencendo, pois o “miserável” não tinha acanhamento de, nos intervalos das aulas, dar corridinhas para se instalar primeiro ao lado da moça, quase atropelando o circunspecto professor que, embora também se apressasse, tinha que manter a classe. E, ao que deduziu, espiando de longe, o peninsular fazia consideráveis progressos dentro da alma da “vagabundazinha”. Ela não só ria frequentemente das observações dele, como também pegava no seu braço quando queria interrompê-lo para dizer algo. Cada pegada era um naco de carne viva que se despregava do braço do professor. — Nunca vi mulherzinha mais galinha... — ele comentava interiormente. Assim, decidiu que, faria tudo para tirar da sua cabeça a jovem Messalina, certamente a mais rica coleção de moléstias venéreas de toda a Comunidade Europeia.

Mas isso não foi fácil, pois a linda cabeça aloirada estava constantemente presente na sua mente. Era um visgo, uma camada de pus envolvendo suas meninges inflamadas de paixão.

Decidiu, então, aplicar uma tática mais agressiva. Fechou a cara, ignorando-a, e começou a puxar conversas com outras moças — havia umas doze mulheres na classe, algumas já maduras, vindas de países do Leste Europeu. Como duas delas eram razoavelmente atraentes, concentrou nelas a sua solicitude de senhor classudo, mas só para provocar ciúme na francesinha. Fingia ignorar completamente a presença dela, até mesmo “esquecendo” de cumprimentá-la. Apenas respondia de má vontade aos seus cumprimentos, sem nada acrescentar, afastando-se como que desinteressado. E passou a ocupar, em caráter definitivo, a carteira mais distante, enquanto o miserável continuava poluindo ouvido e alma da “piranha’.

Passou um fim de semana horrível, principalmente porque viu o italiano, numa  sexta-feira, acompanhando a moça na saída da escola no começo da noite. Até onde chegara essa insistência, não sabia. Na certa, a linda fragata comboiada terminaria no fundo do mar, arrombada por um torpedo italiano. Deitado na cama do hotel, pensando, casualmente com a mão por cima do baixo ventre, sentia ódio das próprias glândulas. Qual um cientista louco, conjeturava: — “Se eu fosse castrado, agora não estaria sofrendo ... O que é a paixão, senão a testosterona lançada no meu sangue e erotizando o meu cérebro? Tomara que eu fique velho de vez porque, assim pelo menos, me livro dessa obsessão, desse jugo imposto pela carne da mulher. Por outro lado, estarei pronto para esse tipo de morte? Não, não estou! Aí é que está o problema! Ah, como sou infeliz! — E sofria verdadeiramente, com o coração apertado, não se reconhecendo mais, porque nunca se apaixonara com tal veemência e rapidez por qualquer mulher. Paris, melhor considerando, o enlouquecia...

Decidiu — algo que nunca se permitiria, se estivesse no Brasil — sair pelas ruas caçando mulher, paquerando a esmo. Poderia ser francesa, russa, alemã, inglesa, checa, brasileira, espanhola, italiana — não! essa não! tal era a raiva contra tudo “Made in Italy” a não ser que fosse jovem, com franjinha e sardas, entre loira e ruiva — enfim, a própria francesinha — com quem se trancaria num quarto de hotel, em volúpia selvagem, devorando-a com beijos, arrancando da alma dele aquele suco mórbido implantado nele pela feiticeira de Paris. Esquecia-se que, no fundo, estaria sorvendo o próprio veneno.

No sábado à noite percorreu alguns bares mas, talvez por infeliz coincidência, não teve sorte. Ou a mulher era uma óbvia prostituta — e ele temia esse tipo de gente, mormente em país estranho, face aos riscos de doença venéreas ou navalhadas do gigolô, caso não entregasse a carteira — ou era uma moça de certo nível, que não iria se entregar a um sexagenário estrangeiro já na primeira noite. Do jeito como se sentia, receava nem mesmo conseguir desempenhar o seu papel viril. Na verdade, naquela noite, o que ele precisava urgente é de uma nova paixão, algo muito raro, que não se encontra nas ruas e muito menos se improvisa. E a imagem da francesinha martelava continuamente sua mente. Todas as outras mulheres ficaram subitamente feias ou sem graça. Não adiantava, ele simplesmente não estava em condições de ter intimidade com qualquer mulher, a não ser com aquela única, específica, e que poderia estar, naquele momento, nos braços do italiano. Dizem os entendidos que, quando o homem está agudamente apaixonado, torna-se monógamo. E nosso professor era, naquele momento, contra a sua vontade, um monumento à monogamia.

No domingo, também não conseguiu resolver aquele duplo bloqueio, sexual e sentimental. Finalmente, tentou esquecê-la, estudando furiosamente, estranho derivativo, mas que com ele funcionava, embora com constantes interrupções, porque o rosto da francesinha a todo momento surgia na página do livro, como um comercial de TV.

Esse sofrimento perdurou mais uma semana, Monique sempre assediada pelo Mel Gibson italiano que, aos olhos do professor, era inimigo imbatível. Tinha mocidade, aparência, desinibição e simpatia. O canalha só não era simpático com ele, professor. Isto é, quando eventualmente os olhos de ambos se encontravam, o moço fazia um leve aceno de cabeça, muito seguro de si; aceno que tanto poderia ser tanto um cumprimento quanto um sorriso de Júlio César, significando: — “Cheguei, vi, venci. Te manca, velhão! Ela já tem dono.”

            O professor reconhecia que, mesmo quando tinha a idade do italiano, não era tão atraente fisicamente. Não que fosse feio, mas obviamente páreo não era para aquele jovem de aparência cinematográfica. O mulherio, passando na rua, em Paris, lançava ao Luigi olhares que variavam entre miradas de carneiro doente, vaca com “síndrome da vaca louca” ou gata no cio. Elas rebolavam a mais não poder, quase trincando as vértebras. Ele, professor, só levava vantagem em termos de cultura geral e especializada. Mas qual o apelo erótico do Direito Constitucional ou Internacional? Nenhum! — ele pensava. — Se pelo menos a Monique tivesse algum complexo de Electra, uma tarazinha recôndita pelo pai...” — chegou a desejar, num desespero que já apelava para o lado mórbido de algumas infelizes.

            No banheiro do hotel, o professor, nu, frente a um espelho grande, se examinava demoradamente de perfil, desgostoso com o leve volume do estômago. Se Monique o visse assim, cairia na risada, perguntando se era menina ou menino. Interessante é que, de roupa, o ventre quase não aparecia. E o italiano — ele já tinha investigado com olhos de lince — não tinha barriga nenhuma. O jovem era um atleta, obviamente. Corado, pescoço grosso, ombros largos. Em suma, repelente.

             Na quinta-feira da última semana do curso, porém, saindo da escola, ele encontrou Monique na porta principal. Estava sozinha, com a jeito de quem espera alguém. Tinha a intenção de fingir que não a percebera. Mas foi ela quem, ao avistá-lo, tomou a iniciativa de se aproximar, amistosa, sorrindo meio acanhada e dizendo: — Que tal jantarmos juntos?

            O coração do professor derreteu na hora. Nem acreditava no que lhe dizia o mais puro lírio de Paris. Olhando em volta, perguntou:

            — Onde está o Calígula?

            — Que Calígula?

            — O italiano, ora...

            Ela deu uma parada, sorrindo da comparação. Em seguida, franzindo o cenho, comentou: — Então é isso... Está com ciuminho...

            — Ele até me expulsou da carteira... Um rapaz grosseiro... Se estivéssemos nos velhos tempos romanos, teria me arremessado aos leões, no Coliseu

            Ela explicou que estava pensando em escolher um restaurante mais afastado, mas muito bom. Perguntou se não se incomodaria de caminhar um pouco. Ele, galante, respondeu que, na companhia dela, escalaria o Everest de joelhos. Mas, no percurso até o restaurante, na conversa havia uma nuvem de preocupação, quase um mal-estar, envolvendo os dois, não obstante ela soltasse comentários avulsos, explicando algumas atrações turísticas daquela parte da cidade. Ele fingiu estar interessado, mas era evidente seu alheamento a qualquer coisa que não fosse a bela cicerone, que ele espiava com frequência porque simplesmente vê-la lhe dava enorme prazer. Parecia-lhe que Monique preparava alguma coisa para dizer, em prosseguimento à observação sobre o ciúme. Ou será que havia outro gênero de preocupação?

No restaurante, após fazerem os pedidos ao garçom, Monique perguntou: — Então, se eu hoje não tivesse tido a iniciativa de falar com o senhor, nem mesmo teria sido cumprimentada! Por que isso?

Ele hesitou antes de se explicar. Mas, ridículo ou não, o fato é que não podia mais silenciar sobre o enorme peso que afligia seu coração. Por que se sufocar? Afinal, estava sozinho, e na França, terra — dizem, mas não creiam — das grandes paixões sem lei. Se o atrevido italiano era a imagem da desinibição, da ignorância autoconfiante, por que apenas ele, bem mais velho e sofrido, vinte vezes mais culto, deveria ficar se remoendo, engolindo seus sentimentos?

Nem acreditando nos próprios ouvidos, ele se abriu. Juntando as mãos com as pontas dos dedos, cotovelos apoiados na mesa, como que iniciando uma dissertação acadêmica pediu inicialmente desculpa por ser tão direto. Reconheceu que havia algo de ridículo no que iria dizer, mas era melhor dizer tudo. E, com calma, declarou que estava profundamente apaixonado. Descreveu com detalhes seu sofrimento nos últimos dias, ora com mais fluência, ora lutando penosamente com a língua francesa. Nessa canção de amor em prosa demorou mais de um quarto de hora. Se o tema era um cântico de paixão, a cadência da fala era a de um contido professor universitário que friamente procura expor um problema de difícil solução. Assim agia porque, não sabendo como seriam acolhidas suas palavras, não queria fazer um papel de evidente sedutor, velho e ridículo. Seria, na pior das hipóteses, um sábio velho, infeliz, mas sincero. Na verdade, foi mais uma confissão de moribundo no leito de morte do que uma declaração de amor. Livrava-se do peso de conquistar a ouvinte, que ia ficando cada vez mais vermelha, à medida que escutava, com os olhos azuis arregalados, aquela cachoeira pesada de paixão.

Dissertação desse tipo era, para ela, uma absoluta novidade. Já recebera muitas cantadas de jovens e maduros admiradores, expressas, porém, em frases curtas e com esperta ajuda das mãos, gesticulando ou apelando para a carícia.  A sinfonia, porém, que naquele momento entrava pelos seus ouvidos, não era uma simples cantada. Era uma mescla de explosão e tese de cátedra, erudita e apaixonada, sobre a arte platônica de amar, exposta com uma cadência e sinceridade que a abalavam. Nunca ouvira algo parecido. Nem mesmo em filme romântico indicado para Oscar. Era quase uma indigestão de amor que saía pela boca séria daquele senhor imóvel que nem mesmo procurava pegar na sua mão.

Cumpre esclarecer — dúvida que não deveria mencionar aqui para não quebrar o encanto romântico do relato — que nosso professor, durante alguns meses, dera aulas de Literatura. Especializara-se nos autores românticos, que lera com frequência, mesmo depois que deixara de lecionar essa matéria. Assim, a excepcional eloquência que — qual um martelo de ouro, amaciava mais o próprio coração do que o da moça —, era não só fruto de uma grande paixão — por si só eloquente — como também consequência do preparo literário do erudito professor. O fato é que Monique, não obstante ser uma jovem invulgarmente prática, sentia-se algo esmagada. Qual uma marinheira de fim de semana que, longe da costa, pilotando minúsculo barquinho, vê aproximar-se a onda gigantesca, azul, escura, bela mas perigosa.

A certo momento, a moça, algo confusa, pareceu querer se levantar e se retirar, mas ele fez um gesto tranquilizador, segurando sua mão, sem apertar, pedindo que não se assustasse pois logo terminaria. Note-se que, em momento algum, ele contaminou sua declaração com qualquer conotação sexual. Transmitiu apenas uma intensa paixão cerebral, que parecia muito acima da carne.

Parecia, esclareçamos, mas que talvez não o fosse, inteiramente, pois tudo estava confuso na alma do sofrido professor. Reconheceu verbalmente — para sugerir que era um bom caráter — que não tinha o direito de lhe confessar o seu amor, por vários motivos. Principalmente porque era casado, não podendo se separar da mulher nessa fase difícil da vida. Terminou reconhecendo que ela, Monique, teria todo o direito de se afastar dele — o que, intuía, seria menos provável, agora, com esse desabafo — a menos que, por “superior compreensão” — ah! a esperteza das palavras! — ela o perdoasse por essa violenta e involuntária paixão.

Quando terminou sua fala, tirou do bolso três folhas de caderno, escritas à mão, dizendo, mais ou menos, em francês, o que acima já dissera verbalmente, mas com o conteúdo ainda mais elaborado. Cauteloso, não escreveu seu nome, consciente do perigo de tal confissão cair em mãos estranhas. Gostaria apenas que essas páginas fossem guardadas por Monique e lidas muitas vezes. Quem sabe, lendo-as, a moça, em algum tempo futuro poderia ser dele. Sabia que cartas tinham mais poder, sentimento e “presença” que as palavras apenas ouvidas. Para ele, o conhecido adágio “Verba volant, scripta manent” não era verdadeiro apenas no mundo jurídico. Valia ainda mais nas coisas do coração.

Mônica hesitou um pouco antes de pegar as folhas. Olhando-as viu que aparecia seu nome, incompleto, no topo, mas não o nome de quem o escrevera. Compreendendo o significado da omissão, nada perguntou. Dobrou o escrito, guardou-o na sua pequena bolsa e ficou em silêncio.

Parecia chocada, até que, séria, escudando-se na sua natureza prática, decidiu reagir, transformando o furacão em simples aguaceiro. Encarando-o, perguntou:

— Tudo isso por quê? O que é que fiz para deixá-lo assim?

— Se eu pudesse explicar, teria a chave de um segredo que atormenta o homem desde que desceu das árvores. Não se esqueça de que há quem morra por amor. Você não lê jornais? Quanta gente se mata por amor!

— Não me lembro de tê-lo encorajado... Bom, confesso, senti uma certa atração pelo senhor, sim, coisa normal em toda mulher, mas procurei tratá-lo como um amigo, um colega mais velho, muito distinto, simpático, mas nada mais que isso...E, para ser franca, desculpe, não posso, moralmente, ter rolo com homem casado. Sinto atração, sim, mas... Sou católica, sabe? E de boa formação... Quero casar, ter filhos, uma vida normal... Tenho a cabeça no lugar... Não quero ser amante de um homem proibido. Nem sentir remorso por ter prejudicado tua mulher, uma sofredora. Quando vim a Paris — a família dela morava em Marselha — prometi à minha mãe agir com total correção. E não quero quebrar minha promessa.

— Respeito isso... — ele engoliu em seco, desconcertado pelo puxão de orelha. — É que, talvez inconscientemente, estivesse esperando por você... Acredito numa espécie de união anterior de almas, algo assim como a metade de uma fruta que ficou girando pelo mundo à espera daquela outra metade que a completa. Se não me engano foi Platão quem disse isso.

Ela manteve novamente um bom silêncio, tentando digerir essa inesperada abordagem que, não sabia por que, lhe evocava conversas que tivera com um tio citricultor. Excessivamente prática, o que passou pela sua cabeça foi a imagem de uma meia laranja, ainda com casca, esperando o acoplamento da outra metade. Seu preparo literário era escasso se bem que atualizada em termos de conhecimentos da vida real, pois lia revistas e livros sentimentais. Não encontrando muita pertinência naquela relação entre a paixão daquele senhor e a meia fruta que apareceu na tela da sua cabeça, mas um tanto assustada com aquela nuvem densa e misteriosa que se erguia à sua frente, procurou levar a conversa para um nível mais fácil de lidar. Meio séria, meio brincalhona, perguntou:

— Quer dizer que lá no céu fomos destinados um para o outro?

— De minha parte, pelo menos... Mal a vi, fiquei literalmente apaixonado. Não sou o único. Há precedentes. Dante Alighieri teve uma paixão desse tipo quando, com oito anos, viu pela primeira vez sua inesquecível Beatriz... Descrevo apenas um fenômeno que eu mesmo não compreendo bem... Deveria estar acostumado porque, como professor, já tive alunas muito bonitas. Até mais do que você... E não fiquei apaixonado por nenhuma delas. Mas depois do que ouvi agora, essa promessa que fez à sua mãe, não quero influenciá-la. Não me sentiria bem se lhe fizesse algum tipo de mal. Mal apenas moral, eu digo...

— Acho estranho, o senhor, um juiz e professor, acreditar em destino, essas coisas que o senhor disse sobre a laranja...

       — Que laranja? — ele a interrompeu, estranhando.

— Desculpe... Essa estória da metade esperar a outra metade... Achei o senhor um homem simpático, inteligente... até mesmo atraente e tudo o mais... Para ser sincera, não teria cabimento essa paixão, assim de repente. Afinal, o senhor mal me conhece. E, desculpe insistir, é um homem casado... Além do mais, não pode se separar da mulher. Isso, sem falar na diferença de idades... É grosseiro, sei, perguntar, mas que idade o senhor tem?

Ele sentiu-se chocado com tanta objetividade e falta de poesia. Sua anterior eloquência, sincera e caprichadíssima na forma, fora pérola atirada à linda porquinha de franjas. A francesinha, ele pensou, tinha mesmo o espírito prático e burguês que, dizem — generalização discutível —, é uma característica da sua raça. Pensou em mentir, mas como estava disposto a tudo naquela noite, confessou a verdade: — Sessenta e dois anos... — disse, resignado. — Lamento, não tenho culpa por não ter morrido antes, ou de ter nascido bem mais tarde. Fui destinado a você, mas houve uma falha no céu na seção de expedição das almas. Alguma troca de carimbos. Você foi despachada com um atraso de vinte, trinta anos... — sorriu, achando besta a comparação.

Ela ficou impressionada. Não com a conversa sobre datas de remessas, mas com a idade dele. Esperava que ele tivesse bem menos. Sessenta e dois! Fez logo as contas mentalmente: trinta e oito anos de diferença!

— Sua conta está correta... — ele observou, sorrindo, como que lendo o pensamento daquela garota tão terra-a-terra. — Poderia ser seu pai...

— Ele é mais novo... Está com sessenta.

— Que bom! Nesta nossa faixa, dois anos já faz diferença... Espero que nunca, por amor, venha a sofrer como eu, passando o ridículo que estou sofrendo agora... Reconheço que sou uma espécie de aleijão. Está bem, dito assim? A palavra “aleijão” agrada a tua moral? Sei, deveria ter mais juízo, sofrer em silêncio... É que nunca tive antes um sentimento dessa intensidade... — e nisso falava a verdade.

Nesse momento, voltou o garçom, trazendo os pratos, desculpando-se pela demora.           Conversaram, algo constrangidos, sobre outros assuntos, enquanto jantavam. Não seria educado apenas comer em silêncio ou ir embora sem tocar na comida. Mais aliviado pela confissão inicial, ele repetiu que, após conhecê-la, ficara doidamente apaixonado, algo inesperado para ele. Assim, passara a ansiar por um caso de amor com uma moça bonita como ela, mas livre, sem dramas morais. Insistiu que seu amor não era um corriqueiro “caso” de amor”. Era algo muito mais profundo, talvez para sempre, até a morte. Longe de seu país, sua consciência de homem casado protestaria menos. Egoísmo, por certo, mas com atenuantes. Uma despedida, canto de cisne da vida romântica, antes de mergulhar na velhice irremediável. Algo que guardaria no coração como uma joia dentro de um baú velho e encardido por tantas restrições morais. Ressaltou que não lhe passara pela cabeça — era também verdade — a hipótese de estar corrompendo alguém. Todavia, conhecendo agora o interior dela e seus rígidos princípios morais, agradecia sua paciência e prometia nunca mais retornar com essa conversa de “Romeu rejeitado”. Desculpou-se, ainda, dizendo que, na França, como em qualquer outro país, inúmeros casos de amor já tinham acontecido com pessoas de níveis diferentes de idade, sem prejuízo para ninguém. Afinal, as moças eram, em geral, no Primeiro Mundo, muito liberadas. E a admirava por ser uma exceção.

Era sincero, dizendo isso? Era, na maior parte. Realmente não queria, em tese, conscientemente prejudicar ninguém. Afinal, era um professor de Direito que, por sinal, já publicara um longo artigo relacionando Ética e Direito. Mas, ao mesmo tempo, não poderia deixar de reconhecer — com um mínimo de honestidade intelectual — que tentava com lábia literária arrastá-la para a areia movediça, afastando-a de uma linha de conduta que se impusera e prometera à mãe, obviamente uma senhora de moral às antigas.

Parte do jantar foi acompanhado de conversas variadas. Isso porque quando ele voltava ao assunto principal ela, muito séria — sem grosseria, mas com determinação —, repetia que não gostaria de voltar a esse assunto e que leria a carta com toda a atenção. Se ela tivesse que dizer algo a respeito, diria depois de refletir, mas que ele respeitasse sua liberdade. Disse que, por conselhos de seu pai, homem muito ponderado, ela nunca tomava decisões importantes antes de pensar uns dias, vendo as coisas sob todos os ângulos.

Quando se separaram, naquela noite, por volta das dez horas — ela estava hospedada numa casa de família — a paixão dele era a mesma, senão maior. Mas, ao mesmo tempo, sentia um certo alívio por haver colocado para fora do peito o coração ferido, naquele momento refrigerado pela brisa de Paris.

Quando se despediam — porque ambos voltariam para seus lares no dia seguinte — ele para o Brasil e ela para a cidade de Marselha — Monique perguntou se ele poderia lhe dar seu telefone, visto que havia a possibilidade de ir ao Brasil, proximamente, a trabalho. Seu pai tinha alguns clientes brasileiros com litígios na França. Se o pai precisasse dela para um contato presencial no Brasil, ele, professor e magistrado, poderia auxiliá-la a encontrar um bom hotel, indicar restaurantes e ajudá-la na comunicação porque Monique não falava português.

De imediato, esperançoso, ele deu a ela seu telefone residencial e frisou que a melhor hora para ela falar com ele seria às dez horas da noite, quando estaria em casa, com certeza, menos às quartas-feiras. Disse que sua mulher, sempre deprimida, dormia muito cedo e ele costumava preparar suas aulas à noite.

Quando, por sua vez, ele quiz o telefone dela em Marselha, ela pediu que a desculpasse mas preferia não dar, porque o aparelho tinha extensão e sua mãe tinha a mania boba de bisbilhotar, ouvindo as conversas dela, interessada demais em “protegê-la”. Vários admiradores de Monique, rejeitados, já haviam atormentado mãe e filha, telefonando continuamente. Frisou que entraria em contato, com ele, sem falta, dentro de alguns dias, porque queria trocar algumas ideias, que explicaria melhor pelo telefone, depois de pensar melhor sobre o que tinha ouvido no jantar.

Antes de se despedirem, com um “respeitoso” abraço — ele dominando-se para não apertá-la e cobri-la de beijos —, insistiu que estava por demais curioso sobre o que ela queria lhe falar. Explicou que sem uma data certa para esse contato telefônico passaria dias angustiado, insone, como um zumbi. Devido à sua insistência ela tirou de sua pequena bolsa uma agenda, consulto-a e escolheu o dia e hora do mês em que faria contato. A espera dele seria de dez dias.

Dois dias depois dessa conversa, o Professor Ricardo estava no Brasil, em seu apartamento.

No dia combinado para a chamada telefônica, às 10:15 da noite, o telefone tocou e foi imediatamente atendido. Ele disse apenas “alô” e ficou escutando. Era Monique, chamando de Marselha. Felizmente ele estava sozinho na sala. O diálogo foi, obviamente, em francês.

— Alô, Ricardo. Sou eu, Monique. Cumpro minha palavra, telefonei. Posso falar sendo ouvida só por você?

— Pode. Este telefone não tem extensão. Você não imagina como passei angustiado estes poucos dias, esperando sua chamada. Espero ouvir boas notícias.

— Vou ser muito objetiva e breve. Quando combinamos este horário nos esquecemos da diferença de quatro horas de fuso horário. Aqui são duas e quinze da madrugada e estou falando de casa. Apenas me ouça, por favor, sem interrupções, porque de repente minha mãe ou meu pai acorda e pode escutar. Você promete apenas me escutar?

— Prometo. Continue.

—... Olha, as notícias não são boas. A tua declaração, de três folhas, que você me deu antes de viajar, eu a guardei provisoriamente no fundo de uma gaveta do meu armário, até que encontrasse um esconderijo melhor. Infelizmente, minha mãe, com a mania dela de “arrumar” as coisas, encontrou a tua carta. Estranhando o fato de ser manuscrita, sem assinatura e com letra de homem, leu tudo, direitinho e mostrou a carta ao meu pai, que ficou muito bravo e exigiu uma explicação. Tentei explicar a ele que era apenas um exercício literário de um jovem estudante brasileiro, testando sua capacidade de escrever em outra língua, mas ele não engoliu, claro. Disse que aquilo só poderia ter sido escrito por um homem muito maduro, ou velho, muito experiente, tentando seduzir uma jovem bonita e sem malícia, criada à moda antiga, com pais católicos. Exigiu, ameaçador, a “verdade” e disse que já desconfiara de algo muito sério ocorrido em Paris, quando eu, após meu retorno a Marselha, disse a ele, duas vezes, que estava interessada em conhecer o Brasil em viagem de trabalho. Chegou até a perguntar se eu estava grávida! Veja só! Eu, grávida de você, sem nunca ter dado ou recebido um beijo! Para que ele não ficasse imaginando coisas muito desagradáveis achei melhor explicar tudo. Fiz bem, não?

— ... Fez. E qual foi a reação dele? Pode abreviar, mas não esconda nada.

— Bom, vou ser totalmente fiel às palavras dele. Explicou que paixões de idosos podem ocorrer, mas velho que tem juízo procura se dominar, evitando prejudicar moças de boa formação e que permanecem no bom caminho. Ressaltou que eu, sendo filha única, daqui a poucos anos assumiria a direção de seu escritório de advocacia, com boa clientela, sendo vista por todos com respeito pessoal, profissional e social. Disse que não teria sentido ele jogar fora todo o esforço dele, durante tantos anos de estudo e trabalho, só porque “um velho meio gagá, ingênuo, ou sensual e irresponsável — palavras dele —, ficou apaixonado tardiamente na vida. Disse ainda, que se você não parasse com essa “bobagem sentimental”, você iria se arrepender amargamente, tanto como magistrado quanto como professor. E dois dias depois ele já sabia muitas coisas a seu respeito: onde morava, onde lecionava, onde trabalhava como magistrado. Isto porque foi pessoalmente à escola onde nos conhecemos e leu sua ficha de inscrição. Disse que se você não rompesse totalmente com seu “sonho tolo e impossível”, você seria brevemente mencionado, em artigos de jornais — escritos por jornalistas influentes —, como um desse velhos sul-americanos, especialmente brasileiros, que vão à França visando seduzir jovens francesas bonitas. Com tal “biografia” você seria malvisto como professor e magistrado. Dar palestras na Sorbonne? Impossível, porque meu pai conhece muita gente lá dentro. E ainda discorreu sobre meu futuro, descrito como moça leviana, egoísta, amante de velho casado e até perversa com tua mulher sem seios. Quando eu contei tudo para ele, dei essa informação sobre os seios apenas para comprovar que você é um homem de consciência e tem pena da tua mulher e...

— Pode parar! Chega, é suficiente. Vou pensara respeito do que ele disse, mas quanto a você mesma, qual sua decisão?

— Bem... Fiquei arrasada com as palavras dele, mas reconheci que preciso pensar melhor. Acho prudente a gente reavaliar nosso relacionamento durante alguns meses. Há muita coisa em jogo, profissional e moralmente. Daqui a um tempo poderemos decidir com a cabeça fria. Tanta coisa pode mudar até lá, em nossas vidas! Jamais vou jogar fora a tua declaração de amor. E você? O que acha dessa pausa?

— É também minha opinião. Um provisório adeus, minha querida. Vamos desligar?

Colocou o telefone no gancho e ficou parado, pensando. Autoexaminando-se constatou, desapontado, que sua paixão amorosa havia praticamente se evaporado.

Sentia, agora, muito medo e quase nenhum amor. — “Dar aulas na Sorbonne ou ser convidado para o Supremo Tribunal? Esqueça, meu velho. Preciso é melhorar meu inglês para proferir palestras no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Essa guria, o que tem de beleza tem de gelo no coração. No item frieza puxou ao pai, um chantagista perigoso. Afinal, eu amava a filha dele.

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
            oripec@terra.com.br

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