Década de
1990.
Local: um apartamento na cidade de São Paulo, Brasil.
Sentados no
sofá da sala de visita, frente à televisão, bem juntinhos, o marido — seu nome
é Ricardo —, com o braço envolvendo a cintura da mulher, parecem a imagem perfeita
do casal feliz. De momento a momento, porém, disfarçadamente, ele consulta o
relógio. Está angustiado, mas não pode revelar sinais de seu tormento. É
preciso — urgente! — que a esposa saia da sala e vá para o quarto para dormir,
ler, o que for. No quarto não existe extensão do telefone. Faltam vinte minutos
para as dez da noite. E às dez ele receberá um telefonema da França, ou do
aeroporto internacional de Guarulhos, Brasil. Uma moça o chamará, travando com
ele, em francês, um diálogo que não poderá ser ouvido pela esposa, que tem
alguma noção desse idioma. Com essa chamada, ele definirá seu futuro.
O homem aparenta ter pouco mais de
cinquenta anos mas, na realidade, está com sessenta e dois. Sua mulher, Míriam, é dois anos mais nova,
mas parece mais velha. Alta, quase da altura dele, rosto ainda com madura
beleza, tipo de espanhola ou portuguesa de pele clara, olhos negros,
sobrancelhas altas, expressão distinta, mas cansada. O cabelo é preto — preto
demais, diga-se — e notam-se muitos fios parcialmente brancos junto ao couro
cabeludo, brancura que vai crescendo à medida que se aproxima o dia de retorno
ao cabeleireiro para a pintura mensal. O conjunto de sua aparência é
prejudicado pela ligeira papada, que nunca conseguiu controlar com muito êxito,
mesmo fazendo regimes e massagens com cremes de algas marinhas e outras
substâncias, tão misteriosas quanto ineficazes.
Ela tem a tendência de engordar
justamente ali. E também nos quadris, os tais “culotes” que tanto atormentam as
mulheres “cadeirudas”; mas não ela, porque o marido sempre gostou dessas curvas
acentuadas. Antes dos trinta anos ela já sentia, embora em menor proporção, o
problema da gordura incômoda sob o maxilar, o que a levava, em reuniões
sociais, a policiar seus movimentos de cabeça, evitando encolher o queixo.
Nessas ocasiões, andava com a cabeça um tanto erguida demais, como que olhando
o mundo por cima. Dava, assim, a impressão de ser uma mulher orgulhosa, o que
não era.
Não obstante sua corpulência nos
quadris, tem a cintura relativamente fina, mesmo com a idade atual, o que lhe
dá uma aparência de “violão”, ou melhor, violoncelo. Instrumento musical, de
carne e osso, do qual, bem dedilhado, o marido, no passado, extraía acordes de
inspirada volúpia. Tais sinfonias, executadas a dois, sábado à tarde, telefone
desligado, consumiam tanto oxigênio que eles, finda a batalha, meio grogues,
pernas bambas, só pensavam em dormir. O marido, nesses entreveros, fazia
questão absoluta de, inicialmente, vê-la nua, imóvel, de pé, qual uma estátua
de mármore. — “Sou um visual!” —, ele se justificou, sério, certo dia,
respirando forte, com aquele olhar indisfarçável de lobo mau que toda mulher —
mesmo aquela que nunca viu lobo —, reconhece. Naquele dia, com a respiração
entrecortada, ela respondera, rouca: — “Gosto desse seu ar faminto... Quero ser
submissa...”
Mas tudo isso é passado. Três anos
antes, ela pensara em submeter-se a uma operação plástica para remoção desse
duplo queixo, mas quando consultou o cirurgião este, em um exame de rotina, descobriu
que ela tinha um caroço no seio direito. Aconselhou uma biópsia, e o exame
revelou que o pequeno tumor era maligno. Assim, uma simples consulta para fins
estéticos acabou se transformando em pesadelo, sendo esquecida a preocupação
com a aparência.
Extirpado o seio, com uma quase
garantia médica de que o problema estava superado, ela passou a se apalpar com
apreensão, diariamente, antes do banho. E pouco mais de um ano depois, um novo
caroço, também canceroso, a obrigou a remover o seio restante.
Essa dupla amputação, como é
natural, afetou a vida do casal. O cerimonial do sexo, uma forma superior do
“ritual do acasalamento” — superior por se tratar de seres humanos, em
princípio espirituais, mas guardando um forte instinto animal — foi bastante perturbado.
Como se sabe, todo casal, não sendo excessivamente inovador — tiro que sai pela
culatra porque gera progressiva perda do respeito pela mulher — tem o seu
ritual, seu procedimento, físico e verbal, de excitação. Uma rotina, uma
cadência, mais terna ou mais libidinosa, variando a proporção desses dois
ingredientes conforme a idade do casal, fogosidade da imaginação e outros
fatores obscuros que o próprio leitor se encarregará de completar, pensando na
própria experiência. Ritual que o casal, no geral, prefere não modificar porque
“não se mexe em time que está ganhando”. Uma espécie de condicionamento da
libido, muitas vezes iniciado ainda no período do namoro, ou noivado, quando os
olhos vigilantes de parentes, na sala de visita, possibilitavam somente os
sorrateiros “amassos”, únicas manifestações possíveis porque a regra era as
mulheres casarem virgens. Manobras que acabavam se incorporando definitivamente
às técnicas de mútua excitação. Algo assim como o sininho, o bife e a salivação
do cão na experiência de Pavlov.
A partir da amputação do primeiro
seio, ela vetou intimidades com a luz do quarto acesa, como ocorria antes. Ele
costumava pedir, como disse, que ela inicialmente ficasse de pé, completamente
nua, como uma estimulante estátua grega ou romana — onde for mais tentadora,
será com ela a comparação — enquanto a contemplava com seriedade, nunca com
risos ou brincadeiras porque ambos consideravam que risada com sexo só existe
no cinema americano. Mesmo nos dias em que ele estava meio indiferente, era só
olhar para o corpo dela para automaticamente se eletrizar. Depois da primeira
cirurgia, ela exigia escuridão absoluta no quarto. Posteriormente, a pedido
dele — que precisava do estímulo visual —, passou a usar um sutiã recheado de
espuma de plástico. Um outro cirurgião sugeriu prótese de silicone em ambos os
seios, mas essa área de seu corpo estava tão associada à doença mortal, que o
sexo tornou-se a última de suas preocupações. Ela queria passar um bom tempo
sem novas cirurgias. E assim fluíram os anos.
A vida sexual do casal, portanto,
sofreu um marcante esfriamento. Muito superior ao simples desgaste inerente ao
processo de envelhecimento, não obstante o marido fizesse um máximo de esforço
para se mostrar tão ardente quanto antes. Esforço que, ultimamente — e cada vez
com maior frequência, — não se mostrava eficaz. Como a frustração — justificada
com inconvincentes explicações de cansaço, idade, preocupações, etc. — era mais
humilhante que a mera abstinência, a solução natural foi espaçar ao máximo os
momentos íntimos. E ela estava quase sempre cansada. “Será que está com algum
tumor em outra parte do corpo”?
Esta é a situação do casal que,
neste momento, assiste à televisão. O espírito dele está tão ausente da tela,
que a única coisa que poderia responder — se indagado de chofre sobre o que
assistia —, é que não é um filme de guerra, ou jogo de futebol. Ela, por sua
vez, pensa em comprar um coquetel de vitaminas que, dizem, combate os radicais
livres, protegendo o corpo contra o câncer.
Cumpre agora descrever o marido. É
moreno, nariz levemente aquilino, cabelos grisalhos, estatura mediana, mais
magro que a mulher e também com feições distintas, que inspiram respeito.
Sempre se considerou “velho”, isto é, com modos e juízo de velho. Isso desde
menino. Assim como Nelson Rodrigues dizia que Ruy Barbosa, o grande jurista
brasileiro, já saíra do ventre materno com setenta anos, usando fraque,
bengala, pince-nez e polainas — ou comparações semelhantes do genial
escritor e dramaturgo — a alma do senhor que agora descrevemos já nascera
ajuizada e cautelosa.
Sempre foi um menino sério,
responsável, essencialmente interiorizado. A tal ponto que, quando garotinho,
convidado pelos colegas a participar das brincadeiras mais movimentadas,
preferia brincar sozinho com seus soldadinhos de chumbo, inventando estórias
recheadas de tiros e diálogos de faroeste americanos, teatrinho solitário que
se prolongava por quase uma hora.
Quando algum colega o convidava a
brincar de guerra entre dois “exércitos” , um defronte do outro, distantes dois
ou três metros, e cada “menino-general” procuraria derrubar, com uma bola de
gude, “soldados inimigos” — ganhava a guerra quem derrubava mais — ele já
perdia o gosto pela brincadeira. “Objetiva demais”, aritmética, sem qualquer
enredo, astúcia, atos de coragem ou covardia. Se pelo menos a bola explodisse,
como nos filmes! Como aceitar a derrota de seus “soldados” de maneira tão
primária, bastando contar os “mortos” de cada exército? — “Isto aqui é uma
batalha ou um jogo de boliche?” — ele pensava. Gostava é dos “enredos”, das
traições e armadilhas em que os soldadinhos se escondiam atrás de livros
empilhados — representavam rochas —, saltando de repente, aos berros, sobre o
inimigo.
Esses
violentos combates solitários eram travados com gritinhos de estridente
ferocidade, ocasião em que o vencido soltava um angustiado “Não me mate! Não me
mate!”. Súplica inútil antes de ser trespassado por sabre de chumbo. E, para
maior aparência de vida real, os soldadinhos utilizados nos combates
corpo-a-corpo ficavam sem os pedestais —, igualmente de chumbo — que lhes
permitiam ficar de pé. Realisticamente, pensava o infantil general, como
admitir que no seco Arizona os valentes soldados tivessem seus pés
permanentemente grudados naquela prancha plana que lembrava um esqui aquático?
Se, depois de removidas as bases nunca mais podiam ficar de pé, a não ser
encostados em algo, paciência, porque o dever militar impõe sacrifícios.
Eram também toscamente bilíngues
essas batalhas imaginárias. A maioria das cenas reproduziam curtos diálogos
ouvidos com frequência nos filmes de cowboys. Drop your gun!
(largue sua arma!) e Hands up! (mãos para cima!) recheavam os gritos
desses imaginários combatentes metálicos, enquanto o “diretor” e ventríloquo
alternava o tom de voz: ora normal, ora agudo, ora tetricamente cavernoso.
Algumas horas depois, sua garganta estava rouca.
E tão apaixonado era ele por esse
jogo imaginativo, que, por volta dos dez anos, preocupava-se seriamente com a
lamentável perspectiva de, um dia, como adulto, não poder mais, sem ridículo,
brincar com seus minúsculos companheiros de batalhas memoráveis. A não ser de
forma indigna, escondido atrás de portas trancadas. Nessas horas, ele, com
tristeza antecipada, fitava melancolicamente seus mais leais soldados —
principalmente aqueles “inválidos” que nunca mais ficariam de pé. E sentia
saudades prévias até mesmo dos vingativos peles-vermelhas, escalpelizadores
temíveis que, com seus rostos impassíveis de Comanches, deitados de pernas
abertas — quais índias em posição ginecológica — aguardavam a boa-vontade do
infantil diretor-ventríloquo para montarem novamente seus plúmbeos cavalos.
As manchas de chumbo estiveram tão
presentes nos seus dedos infantis, que, recentemente, vindo a conhecer os efeitos
tóxicos desse metal, quando ingeridos — ou em contato com a mucosa da boca —
indagou-se se não prejudicara o seu sistema nervoso com o prolongado contato
com um elemento só agora reconhecidamente tóxico, lembrando-se que, quando
menino, costumava roer as unhas, frequentemente impregnadas do traiçoeiro
metal. Sabia-se um homem melancólico e sem muita vivacidade mental. Se muito
aprendera é porque muito se esforçara. Quem sabe não estaria aí a origem dessa
sua tristeza, sua “alma de chumbo” como dissera, impaciente, uma moça, sua
aluna — aparentemente apaixonada ou precisando melhorar a nota, e de cujas
investidas ele escapara fingindo não perceber as diretíssimas indiretas. Não
tanto por virtude: a tentação, com ela, era pouca.
Essa preocupação de ordem química, o
chumbo, surgiu quando um historiador sustentou a tese de que Nero, o sádico e
louco imperador romano — aquele que incendiou Roma tocando lira — era um rapaz
promissor, bondoso e equilibrado antes de assumir o poder. Como ele, depois de
imperador, tomava suas sopas quentes em tigelas de chumbo, o pesquisador
arriscava a hipótese de que estaria na ingestão involuntária desse venenoso
metal — que se deposita no sistema nervoso, e dali não se desgruda — a
explicação de toda a sua conduta de tarado-símbolo na história de Roma. E nosso
professor, impressionado, se perguntava: — Sou triste por hereditariedade ou
por envenenamento parcial, via pele dos dedos e mucosa da boca, na infância? —
Isso porque seus falecidos pais eram ambos alegres e extrovertidos.
Nosso homem é um intelectual típico,
magistrado e professor de Direito Constitucional numa Universidade de
prestígio. É homem seríssimo, de conduta inatacável, principalmente em razão de
sua condição de magistrado. Nunca pôde admitir que um juiz tivesse certas
“fraquezas”, talvez até perdoáveis em outros homens. Não obstante sentisse
atração por mulheres bonitas — e bem-feitas de corpo — algumas alunas mui
liberadas, na primeira fila, cruzando e descruzando as pernas, com suspeita e
excitante energia, perturbavam às vezes o fio de seu raciocínio — não admitia
sequer a hipótese de, sob qualquer pretexto, “pular a cerca”, como se dizia no
tempo em que as cercas eram aparentemente respeitadas. — “Como eu poderia fazer
isso?! Seria trair a minha mulher! E na condição de juiz, como conseguiria,
depois, condenar, numa sentença de divórcio, um marido infiel, usando termos
moralistas, se eu mesmo estaria cometendo a mesma falta? Minha alma racharia ao
meio! Não, não dá para separar as coisas... Quem quer ser juiz, com suas
vantagens, tem que aceitar também suas limitações, mesmo aquelas que não são
encaradas tão duramente pela consciência do homem comum. Não interessa saber
qual o percentual de maridos que trai a mulher. Um juiz não é um homem comum...
Pelo menos não deveria ser”.
A tal ponto o impressionava essa
“cisão” entre o homem-juiz, ser humano, e o profissional aplicador da lei, que
chegou ao ponto de solicitar, algumas vezes, xerox das sentenças proferidas por
aqueles colegas de profissão que eram vítimas de fofocas ou de verdades de
infidelidade. Só para ler, nas entrelinhas, como é que eles lidavam com o
problema íntimo de conciliar, numa sentença judicial, a obrigação de condenar o
marido infiel com a sua própria situação pessoal. Notou, com certo alívio, que
tais colegas — eram poucos —, pelo menos não eram hipócritas. Não utilizavam
frases de indignação moral nas suas decisões, reprovando o marido culpado.
Utilizavam apenas frias expressões jurídicas. E nunca, em conversas de
corredores, ele abria a boca para censurar tais colegas. Que cada um cuidasse
de sua alma, era a sua filosofia.
Tornara-se juiz porque, como
advogado, seria uma lástima. Pelo menos na hora da combinar honorários com o
cliente. Pechinchar, em qualquer situação, era-lhe uma tortura. Sentia-se,
então, vulgar, mesquinho, um rato discutindo com outro rato. Não! Muito pior:
ratos sorridentes, mostrando os dentes, falsos, palavrosos, disfarçando a mútua
cobiça. E seria também incapaz de interpor um recurso só para “esticar” a
demanda, exigência muito comum do cliente em aperto financeiro ou processado
por roubar dinheiro público.
O professor Ricardo está agora se
preparando para a aposentadoria. Assinará, é quase certo, seu requerimento nos
próximos meses. Dedicar-se-á futuramente ao magistério e à elaboração de obras
jurídicas. Tem dois projetos culturais na vida: o primeiro é proferir, em
francês, algumas palestras na Sorbonne. Por isso vem lendo e tomando aulas de
francês há mais de um ano. Quer, porém, proferir tais palestras como convidado,
formalmente contratado, mesmo que a remuneração seja pouca. O que importa é ser
convidado pela prestigiosa universidade. Não como simples locador de sala — um
turista —, quando a universidade está de férias e cede o recinto para a vaidade
deslumbrada de alguns professores do terceiro mundo que querem voltar aos seus
países dizendo que “deram aulas na Sorbonne”. O segundo sonho é escrever um
respeitadíssimo e grosso volume de Filosofia do Direito Constitucional,
examinando e comparando o tutano básico do Direito que rege a organização
política dos povos. Conseguido isso, considerar-se-ia realizado. E
eventualmente, mais ainda, se convidado para ser ministro do Supremo Tribunal
Federal.
Sua aparência atual é ótima para sua
idade. Nem gordo, nem magro, poucas rugas e grisalho. Poderia esconder uns
cinco, sete anos, quando mencionasse sua idade. Seu único defeito é uma leve
dilatação do estômago, algo que vem combatendo arduamente com urgentes
exercícios abdominais. Só nos últimos dias sentiu motivação para caprichar na
aparência. É algo que tem a ver com a sua angústia, já referida no início deste
texto, relacionada com o telefonema que receberá às dez da noite, conforme foi
combinado.
Qual a razão da angústia? Mulher?
Sim? Mas o nosso homem não é um puro?
Bem, puro ele é, até agora, mas o
destino, parece deliciar-se em pregar peças especiais nos “puros”. Quando
encontra essas cândidas vítimas, espécie em extinção, quase indefesas — por
falta de treino específico na malandragem —, o destino parece interessado em
humilhar esses orgulhosos pretensiosos que se consideram moralmente superiores.
Vingança do demônio, para quem acredita no mal personificado.
Nosso homem está, há pouco menos de
dois meses, apaixonado por uma jovem advogada, recém-formada na terra dela, Uma
francesinha de vinte e quatro anos que conheceu em Paris, quando frequentava um
curso de Direito Constitucional, ministrado em francês, curso que demorou um
mês. Mas dizer que está apaixonado é pouco. Esta palavra anda sem dignidade,
desgastada pelo uso. No seu caso, é preciso acrescentar termo realmente de
“peso” para melhor retratar o grau da sua paixão. E já que falamos muito em
certo metal cinzento, aproveitemos o embalo para dizer que nosso professor está
com o coração “chumbado” à imagem da bela francesinha desde o dia em que a viu.
Se ele, antes dessa paixão, já era um homem naturalmente meio triste, tornou-se
— depois que se considerou rejeitado —, um desanimado arrastador da própria
carcaça. Houve momentos, logo após retornar da França, em que só encontrou
motivação para continuar vivendo porque temia que o câncer revisitasse sua
esposa. Não tendo filhos, se ele morresse, quem cuidaria dela?
Quer dizer, então, que nosso homem —
“Sua Excelência, o puríssimo” —, quando na França, andou “pondo as manguinhas
de fora”?
Não diga assim, cínico redator!
Seria vulgar expressar desse modo o que aconteceu. Nesses trinta dias europeus,
ele literalmente não pegara na mão e muito menos no carnal “resto” daquela
beleza, entre ruiva e loira, que o enfeitiçara. E também não tocara em corpo de
mulher alguma. Para dizer a verdade, quando ele foi à França, uma boa parte
daquele sótão atravancado de desejos dissimulados — chamado cérebro humano —,
estava contaminado com alternativas bem diferentes daquelas que nosso professor
normalmente mantinha “com rédeas curtas” — é bem o termo —, no seu próprio
país. Estava com sessenta e dois anos, e nunca havia traído a mulher, mas
sentia uma irracional angústia quando pensava na perspectiva de continuar
assim, invicto, até morrer. Mesmo existindo uma vida eterna — e ele tinha
sérias dúvidas a respeito — a vida terrena era algo insubstituível, talvez a
última chance para satisfazer certo tipo de anseio que só morre inteiramente
depois de saciado.
Essa viagem à Europa, desacompanhado, seria
talvez sua última oportunidade de satisfazer esse lado instintivo de sua
natureza, um anseio que ele reprovava e sufocava, mas que pressionava
dolorosamente sua alma e até mesmo, — evitemos descrições anatômicas — parte de
seu corpo. Não que tivesse viajado expressamente para isso. Cruzara o Atlântico
com finalidade “estritamente” cultural, dizia a si mesmo. Mas, já no avião,
observando pensativamente uma curvilínea aeromoça, perguntava-lhe um jeitoso
diabinho interior se, por acaso — só por acaso — encontrasse na França uma bela
moça que fosse livre, sadia, discreta e provisoriamente sincera, não seria
“humano”, desculpável, cometer esse curto pecadilho temporário antes de
mergulhar na feiosa velhice, com seu cortejo de mãos trementes, confusão mental
e fraqueza? Afinal, de certo modo, tinha algum direito, pois não? Era um homem
de passado irretocável. E quantos homens, no Brasil, poderiam se orgulhar disso
depois de um casamento de trinta anos? Além do mais, vivia insatisfeito desde
as mutilações sofridas pela esposa. Se fizesse alguma bobagem, sem risco de
AIDS, não haveria dano para ninguém... Estaria numa terra estrangeira, de
férias, muito longe de suas obrigações como juiz. Na França, ele não era juiz.
Era um turista com todos os “direitos” do turista saudável.
Se é possível paixão instantânea por
u’a mulher não foi outra a natureza da sua reação ao entrar na classe e notar,
na primeira fila, a presença — mais especificamente o rosto — daquela mocinha
ruiva, sardenta, de franjinhas, cujo nome é Monique. Ela, que no momento estava
lendo, com o simples erguer dos olhos claros na sua direção, apenas curiosa,
fez disparar o coração do brasileiro. Por sorte — ou por azar, só o futuro dirá
— a carteira ao lado dela estava ocupada apenas com seus livros, logo removidos
para que ele pudesse se sentar. Fez isso sorrindo, simpática, bela e graciosa,
o que o deixou sumamente contente. De circunspecto professor universitário e
juiz austero passara, em minutos, a aluno entusiasmado com a coleguinha de
classe. Paris começava bem...
Como faltavam uns quinze minutos
para o início das aulas, ele, subitamente loquaz, inspirado, livre de todo o
chumbo espiritual anterior, perguntou algumas coisas sobre a rotina da escola.
Usou um francês que imaginava impecável, mas ela, sem nenhum acanhamento,
começou a rir, deliciada, jogando a cabeça para trás, achando a pronúncia “inestimable”,
que ele interpretou certo como “engraçada”.
Ela desculpou-se, em seguida, pondo a mão no braço dele — toque que ele
nunca esqueceu — dizendo que o francês dele, mesmo sendo “esquisito”, ou por
isso mesmo, era mais interessante que o falado normalmente pelos franceses.
Explicou que tivera um namorado brasileiro um ano antes, que também dava uns
“escorregões” parecidos, além de fazer um bico exagerado ao pronunciar o “u”. E
ao dizer isso — sem vaidade, porque a enfeava — projetou, com exagero, os
lábios pra frente, imitando a chimpanzé dos filmes de Tarzan. Disse que o
ex-namorado brasileiro era, paradoxalmente, um rapaz loiro, de olhos azuis,
mais parecendo um sueco, e que morava no Rio de Janeiro.
A simples menção de que ela tivera
um namorado — brasileiro ou que diabo fosse — provocou nele uma reação
instantânea e desagradável. Algo como encontrar uma barata morta num pote de
cocada preta. Pior que isso só se a barata ainda estivesse viva. Um ciúme sem
lógica, porque mal conhecia a jovem. Sensação equivalente à decepção do noivo
que, em noite de núpcias, presumindo virgem a noivinha, depara-se com mestra escoladíssima
na arte de inventar posições, dizendo ainda, a malandra, que aprendeu tudo
aquilo em livro de educação sexual.
— Você namorou esse brasileiro muito
tempo? — perguntou, disfarçando o despeito, sempre em francês, porque ela só
conhecia algumas frases em português. Passou-lhe pela mente, qual um relâmpago,
a hipótese de que ela poderia ter tido relações íntimas com o tal moço. Afinal,
pensou, a mocidade hoje tem pressa. Pressa pela pressa, porque já não há mais a
desculpa de que o mundo vai explodir amanhã numa guerra nuclear.
— Nada... Ele ficou aqui apenas
quinze dias... Um fêtard, (farrista), Nem chegou a ser um namoro... Ele
era muito vazio... Para mim, o homem tem que ter uma certa segurança, não pode
ser imaturo, oco... Não chegamos sequer a trocar cartas quando ele voltou para
o Brasil. Mútua desistência antes de começar...
O coração dele inflou novamente. Ela
estava livre! Pelo menos de brasileiro, raça sabidamente perigosa. E ele,
modéstia à parte, vazio não era, nem inseguro. As perspectivas, pois, eram
excelentes. Sentia-se subitamente rejuvenescido trinta anos, muito loquaz.
Conversaram, em seguida, durante quase uma hora porque o professor que daria a
primeira aula, por maravilhosa dádiva do destino, sofrera, naquela manhã, a
caminho da escola, um acidente de trânsito, não estando em condições de dar a
primeira aula. Para nosso professor brasileiro, todo o corpo docente francês
poderia, naquela manhã, com seu aplauso, afogar-se no Sena.
Na hora do almoço, disfarçando o
receio — temia que ela o achasse muito velho — ele perguntou onde havia um
restaurante ou fast food, onde pudesse almoçar. E indagou se aceitaria
almoçar com ele.
Para sua surpresa e alegria, ela
aceitou imediatamente. E a conversa prosseguiu, animada, tanto na lanchonete
quanto na escola, nos intervalos de aulas, quando retornaram para as preleções
da tarde. Bendita França, paraíso da cultura! — cantava seu rejuvenescido
coração.
À noite, sozinho no hotel, ele não
se reconhecia, de tão eufórico. Olhando-se no espelho do banheiro, viu um homem
eletrizado, sem metáfora. Seu cabelo estava quase em pé, igualzinho ao do Don
King, empresário do Mike Tyson, não obstante nosso professor ser da raça
branca. Nem lembrava que na rua do hotel ventava muito. Como cabeça de vento
não sente vento, e seu coco estava totalmente impregnado da moça, ele nada
notara antes de se ver no espelho.
Flutuava
bestificado dentro do quarto. Chegou quase a rodopiar uma imaginária valsa
vienense. Um adolescente enamorado pela primeira vez. Nunca se sentira assim,
nem mesmo quando do namoro com sua mulher. E não tropeçava em nenhum drama de
consciência porque, afinal, não sentia propriamente uma comum excitação sexual
na presença de u’a mulher. Ali não havia “adultério”, palavra azeda, sombria,
cacho de conflitos interiores.
O curso começara numa segunda-feira.
Nas conversas, ele se conteve para não dizer, logo — sem que lhe fosse
perguntado — o que fazia na vida. Não queria bancar o faroleiro, dizendo, de
cara, que era juiz de um tribunal de apelação. Sabia que as mulheres, no
geral — não sendo rés, nem tendo sofrido, por acaso, a mão pesada da justiça —
reagem favoravelmente à presença do homem-juiz, símbolo de poder. O juiz, no
primeiro mundo, é geralmente uma pessoa educada, equilibrada, inteligente e —
charme principal —, supõem as mulheres que ele ganhe bem e consiga as coisas
sem afobação, só por força do prestígio do cargo. Monique ficou admirada,
portanto, de ter, como simples colega de classe, uma pessoa “importante”. Além
disso, era professor universitário, presunção de capacidade intelectual. Ponto
a mais, porque ela, não obstante muito viva mentalmente, não era muito
estudiosa. Cansava-a ficar uma hora
sentada lendo um livro técnico. Por isso valorizava quem “tinha saco” —
palavras dela, mas em francês — para digerir todas aquelas teorias complicadas
que infernizavam sua paciência quando estudava para os exames na Faculdade de
Direito. Seu pai era advogado em Marselha, com boa clientela e ela esperava
viver muito bem como mais uma advogada no escritório. Predileção, gosto mesmo,
ela tinha por coisas mais amenas, tais como música, cinema e viagens. Mas
respeitava os intelectuais, desde que famosos. O resto, não muito, porque lhe
parecia que o mundo se afogava em livros.
Quando ele,
explicando sua presença naquele curso, revelou sua ambição de futuramente dar
aulas na Sorbonne, os belos olhos dela se arregalaram. Nunca conversara
coloquialmente com um “juge” de alta posição. E ali estava, a seu lado,
paparicando-a, aquele senhor simpático, não feio, seguro de si e nem um pouco
vazio. A única “feiura” da sua pessoa estava no dedo anular. É que portava uma
aliança, sendo, portanto, homem proibido. Não que estivesse interessada num
senhor com pouco mais de cinquenta anos — é o que ela imaginava — mas de alguma
forma aquele aro de ouro a incomodava.
Considerava-se,
e era, uma moça às direitas e católica. E moças direitas e católicas não devem
conversar longamente com homens casados que, quando desandam, são até mais
atrevidos que os solteiros. Já passara por duas experiências desagradáveis com
casados. Fora preciso empurrar um deles com violência, pois tentara agarrá-la
quando a sós num escritório. Um outro, respeitado jurista, cara de avô, sentado
a seu lado no sofá, lendo em voz alta o Código Civil Francês, subitamente se
transformara em sátiro gordo apertando a coxa dela enquanto extraía “a melhor
interpretação deste artigo...”. O “canalha” então “ordenhava” o Código Civil
apertando coxas? Minha coxa tem cara de úbere”?! Com raiva, sem mesmo pensar,
ela lhe aplicara, com o punho fechado, uma enérgica “hermenêutica” na orelha
erudita e cabeluda. A única reação dele foi um “Ai”! Tudo isso ela pensava, mas não disse ao
professor brasileiro. Quem sabe o velho jurista estava com um início de
demência.
Querendo saber
melhor com quem lidava naquele momento e pedindo desculpa “por ser tão
intrometida”, Monique fez algumas perguntas mais íntimas, indagando, como quem
não quer nada, se ele era feliz no casamento. E se tinham filhos.
Cauteloso,
respondeu logo à pergunta mais fácil: não, não tinham filhos. Mas não foi nada
fácil, respondendo à primeira pergunta, conciliar a verdade, o respeito que
tinha pela esposa e o medo de que a francesinha arrepiasse carreira. Explicou,
escolhendo bem as palavras, que “viviam bem, sim, respeitava sua mulher”, e que
tinha sido “até agora” um marido fiel. Mas, desobedecendo a uma nítida censura
interior — que lhe fazia cara feia, para que calasse a boca — explicou que a
mulher tinha tido câncer em ambos os seios, removidos, o que “lhe dava muita
pena”.
Desse jeito
não mentia e de certa forma justificava o, em tese, censurável entusiasmo pela
ouvinte. Deixara implícito que só poderia ser um homem direito, mas frustrado,
pois casado com uma mulher sexualmente incompleta. Mas, antes de dormir,
naquela noite, sentiu-se mal por causa dessa fraqueza. A severa voz interior
censurou-o por não ter tido a coragem de dizer à moça que “amava” a esposa. Mas
se dissesse isso — ele se defendia, sob protesto da consciência — a francesinha
não daria logo no pé? O que ela poderia esperar de um homem “velhusco”, casado
e que amava a esposa? — “Só um herói diria gostar da mulher naquela situação! —
ele se justificava. E, sendo torpemente corajoso, pela primeira vez se
perguntava: — Na verdade, posso dizer hoje que amo minha mulher? Que eu seja
maldito por admitir isso, mas não estou com ela por piedade?
Quanto aos
sentimentos pela francesa, era amor mesmo! Estava convencido. Uma “paixonite”
aguda, que ultrapassava o sexo. Afinal, ela não era o seu tipo sexual. Sempre
tivera propensão para mulheres altas, vistosas, “aviões” — assim também tinha
sido a sua mulher — e a francesinha corporalmente era um “teco-teco”, se bem
que de linda fuselagem. Tinha no máximo um metro e sessenta centímetros de altura,
quadris estreitos e dois limões à guisa de seios.
“Mas como era
graciosa! - pensava. Olhos grandes, claros, por baixo da franjinha entre
aloirada e ruiva. Uma vivacidade de expressão facial que ele não conseguia
explicar porque o magnetizava. Até as sardas — das quais ela tinha raiva — lhe
agradavam. Ela pretendia se especializar em contratos internacionais e acabara
de se formar em Direito. E ele conhecia alguma coisa do assunto, fazendo
questão de impressioná-la.
A coisa ia
muito bem até que, na quinta-feira, surgiu um problema. Esse “problema” era
espirituoso, ousado e italiano. Seu nome era Luigi. Tinha sorriso bonito, belos
dentes, porte atlético, cabelos negros e uma forte semelhança fisionômica com o
ator Mel Gibson quando moço. Resumindo, um horrendo canalha — aos olhos de
nosso enciumado professor. Isso porque o moço, tão logo se instalou na classe,
não desgrudava os olhos da francesinha, não disfarçando seu lúbrico — portanto
repulsivo —, interesse.
O problema com
o italiano é que o monstro não respeitava nem um pouco a presença do ilustre
professor brasileiro. Parecia-lhe matéria pacífica que a francesa não poderia,
em hipótese alguma, nem mesmo embriagada, ter algum interesse sentimental por
aquele quase “ancião”, uns trinta e tantos anos mais velho que ela. E o
pilantra, na cafeteria da escola em um dos intervalos das aulas, ao se deparar
casualmente com nosso professor, perguntou, apontando para a moça, que estava a
poucos metros distante: — É sua filha?
Se o “maldito
comedor de “spaghetti” — assim já estava classificado o moço no arquivo do
brasileiro — quis fazer uma gozação, ou perguntava inocentemente, não deu para
saber de imediato porque a cara peninsular era neutra, isto é, de pau. Mas tudo
indicava que era alfinetada, porque não havia a mais remota semelhança
fisionômica entre ele, professor, e a francesinha. Educadamente respondeu que a
moça não era sua filha.
Sem se dar ao trabalho de
agradecer à informação, o “aborto bonito e fétido de Mussolini” acrescentou
nova injúria: — O senhor é professor aqui?
A pergunta era
para aborrecer, pensou o brasileiro, em acesso de paranoia. Significava que,
pela sua idade, deveria estar é do outro lado da sala, dando, não recebendo
aula. Ou em casa, rezando o terço. Não sentado entre os jovens, destoando do
conjunto, faiscando sorrisos com dentadura nova — hipotética mentira, porque
ele não usava dentadura.
É, o rapaz era mesmo atrevido, pois como
poderia ele, brasileiro, ser professor da escola se estava sentado entre os
alunos? O patife, por acaso, não o tinha visto conversando a todo momento com a
moça? Estaria cego, a ponto de só notar a presença dela, sem lembrar do rosto
do vizinho tão assíduo? É, bem que merecia uns tapas... Coisa, porém, que ele
nunca faria, pois odiava escândalos. Além disso, pensou: sejamos realistas,
levaria uma surra, porque o moço era musculoso e decidido. Aos sessenta e dois
anos, ninguém está, nesses entreveros, livre de um enfarte. E quem se
encarregaria de enfiar seu cadáver enfartado dentro de um caixão lacrado, via
Brasil, onde chegaria coberto de ridículo? Os jornais diriam, em manchetes:
“Magistrado brasileiro idoso apaixonado apanha e morre de enfarte disputando
assento ao lado de beldade!”
A investida do
“cafajeste” prosseguiu, sistemática. No primeiro intervalo das aulas, na
cafeteria, o moço já tinha arranjado um pretexto para puxar conversa com a
francesinha, insistindo em lhe pagar um cappuccino. E a “prostitutazinha”
aceitara, sem nem olhar para o lado do “velho professor brasileiro”, que, por
coincidência, naquele exato momento, qual um garçom bajulador, tinha em cada
mão um copo de plástico com café, creme e canela, adoçado a capricho, uma
bebida para ele e outra para a moça. Vendo que ela, toda alegre, já tomava o
café oferecido pelo italiano, disfarçadamente deixou um dos copos em cima do
balcão, virando-se para o outro lado, bebendo o seu, profundamente despeitado.
Como o café estava muito quente, não dá para saber se o brilho aquoso dos seus
olhos era queimadura nos lábios ou no coração. Como seu cappuccino estava
delicioso, compensou, em parte, a frustração amorosa bebendo o conteúdo do
segundo copo. Pobre compensação.
Não ficou por
aí o ataque fulminante do Calígula redivivo. Acompanhou a moça de volta à sala
de aula, sempre eloquente, autoconfiante, gesticulando muito, contando
anedotas. E sentou-se na carteira que, até agora, vinha sendo ocupada pelo
professor. Como as carteiras não tinham dono certo — ainda que, no geral, os
estudantes respeitassem a posse anterior do colega — nosso professor nada podia
reclamar. Dizer o quê? Que fazia questão de ficar ao lado da moça bonita?
Tentar arrancar à força o invasor? Resignado, ficou parado ao lado,
desconcertado.
Nesse momento,
a francesa, notando a perplexidade do brasileiro, disse alguma coisa em voz
baixa ao italiano, aparentemente defendendo os interesses topográficos do
professor. Mas o moço mostrou-se insensível. Com visível má vontade perguntou
ao “tio” se ele fazia “questão absoluta” de sentar-se ali. E antes de ouvir
qualquer resposta, sugeriu: — Que tal ficar no meu lugar, ali na terceira fila?
É entre duas moças bonitas — esclareceu, dando uma piscadinha maliciosa, como
que reconhecendo que o velhão estava é querendo paquerar. E acrescentou,
olhando a lousa, fingindo-se de míope, apertando os olhos, sem convencer: — Não
estou vendo muito bem lá de trás. O
professor, simulando indiferença à escolha — embora fervesse por dentro —, não
teve outra alternativa, a não ser mudar para o lugar do moço. Mas estava tão
atarantado que, a caminho de seu novo assento, pisou em cheio no calo de uma
aluna, que chegou a gritar, empurrando-o com rudeza.
Nos dias
seguintes, isto é, quinta e sexta-feira, jamais um assento de madeira foi tão
disputado por quatro nádegas masculinas. Mas a mocidade, ou melhor, a cara de
pau do italiano acabou vencendo, pois o “miserável” não tinha acanhamento de,
nos intervalos das aulas, dar corridinhas para se instalar primeiro ao lado da
moça, quase atropelando o circunspecto professor que, embora também se
apressasse, tinha que manter a classe. E, ao que deduziu, espiando de longe, o
peninsular fazia consideráveis progressos dentro da alma da “vagabundazinha”.
Ela não só ria frequentemente das observações dele, como também pegava no seu
braço quando queria interrompê-lo para dizer algo. Cada pegada era um naco de
carne viva que se despregava do braço do professor. — Nunca vi mulherzinha mais
galinha... — ele comentava interiormente. Assim, decidiu que, faria tudo para
tirar da sua cabeça a jovem Messalina, certamente a mais rica coleção de
moléstias venéreas de toda a Comunidade Europeia.
Mas isso não
foi fácil, pois a linda cabeça aloirada estava constantemente presente na sua
mente. Era um visgo, uma camada de pus envolvendo suas meninges inflamadas de
paixão.
Decidiu,
então, aplicar uma tática mais agressiva. Fechou a cara, ignorando-a, e começou
a puxar conversas com outras moças — havia umas doze mulheres na classe,
algumas já maduras, vindas de países do Leste Europeu. Como duas delas eram
razoavelmente atraentes, concentrou nelas a sua solicitude de senhor classudo,
mas só para provocar ciúme na francesinha. Fingia ignorar completamente a
presença dela, até mesmo “esquecendo” de cumprimentá-la. Apenas respondia de má
vontade aos seus cumprimentos, sem nada acrescentar, afastando-se como que
desinteressado. E passou a ocupar, em caráter definitivo, a carteira mais
distante, enquanto o miserável continuava poluindo ouvido e alma da “piranha’.
Passou um fim
de semana horrível, principalmente porque viu o italiano, numa sexta-feira, acompanhando a moça na saída da
escola no começo da noite. Até onde chegara essa insistência, não sabia. Na
certa, a linda fragata comboiada terminaria no fundo do mar, arrombada por um
torpedo italiano. Deitado na cama do hotel, pensando, casualmente com a mão por
cima do baixo ventre, sentia ódio das próprias glândulas. Qual um cientista
louco, conjeturava: — “Se eu fosse castrado, agora não estaria sofrendo ... O
que é a paixão, senão a testosterona lançada no meu sangue e erotizando o meu cérebro?
Tomara que eu fique velho de vez porque, assim pelo menos, me livro dessa
obsessão, desse jugo imposto pela carne da mulher. Por outro lado, estarei
pronto para esse tipo de morte? Não, não estou! Aí é que está o problema! Ah,
como sou infeliz! — E sofria verdadeiramente, com o coração apertado, não se
reconhecendo mais, porque nunca se apaixonara com tal veemência e rapidez por
qualquer mulher. Paris, melhor considerando, o enlouquecia...
Decidiu — algo que nunca se permitiria, se estivesse no Brasil
— sair pelas ruas caçando mulher, paquerando a esmo. Poderia ser francesa,
russa, alemã, inglesa, checa, brasileira, espanhola, italiana — não! essa não!
tal era a raiva contra tudo “Made in Italy” a não ser que fosse jovem, com
franjinha e sardas, entre loira e ruiva — enfim, a própria francesinha — com
quem se trancaria num quarto de hotel, em volúpia selvagem, devorando-a com
beijos, arrancando da alma dele aquele suco mórbido implantado nele pela
feiticeira de Paris. Esquecia-se que, no fundo, estaria sorvendo o próprio
veneno.
No sábado à
noite percorreu alguns bares mas, talvez por infeliz coincidência, não teve
sorte. Ou a mulher era uma óbvia prostituta — e ele temia esse tipo de gente,
mormente em país estranho, face aos riscos de doença venéreas ou navalhadas do
gigolô, caso não entregasse a carteira — ou era uma moça de certo nível, que
não iria se entregar a um sexagenário estrangeiro já na primeira noite. Do
jeito como se sentia, receava nem mesmo conseguir desempenhar o seu papel
viril. Na verdade, naquela noite, o que ele precisava urgente é de uma nova
paixão, algo muito raro, que não se encontra nas ruas e muito menos se
improvisa. E a imagem da francesinha martelava continuamente sua mente. Todas
as outras mulheres ficaram subitamente feias ou sem graça. Não adiantava, ele
simplesmente não estava em condições de ter intimidade com qualquer mulher, a
não ser com aquela única, específica, e que poderia estar, naquele momento, nos
braços do italiano. Dizem os entendidos que, quando o homem está agudamente
apaixonado, torna-se monógamo. E nosso professor era, naquele momento, contra a
sua vontade, um monumento à monogamia.
No domingo,
também não conseguiu resolver aquele duplo bloqueio, sexual e sentimental.
Finalmente, tentou esquecê-la, estudando furiosamente, estranho derivativo, mas
que com ele funcionava, embora com constantes interrupções, porque o rosto da
francesinha a todo momento surgia na página do livro, como um comercial de TV.
Esse
sofrimento perdurou mais uma semana, Monique sempre assediada pelo Mel Gibson
italiano que, aos olhos do professor, era inimigo imbatível. Tinha mocidade,
aparência, desinibição e simpatia. O canalha só não era simpático com ele,
professor. Isto é, quando eventualmente os olhos de ambos se encontravam, o
moço fazia um leve aceno de cabeça, muito seguro de si; aceno que tanto poderia
ser tanto um cumprimento quanto um sorriso de Júlio César, significando: —
“Cheguei, vi, venci. Te manca, velhão! Ela já tem dono.”
O professor reconhecia que, mesmo
quando tinha a idade do italiano, não era tão atraente fisicamente. Não que
fosse feio, mas obviamente páreo não era para aquele jovem de aparência
cinematográfica. O mulherio, passando na rua, em Paris, lançava ao Luigi
olhares que variavam entre miradas de carneiro doente, vaca com “síndrome da
vaca louca” ou gata no cio. Elas rebolavam a mais não poder, quase trincando as
vértebras. Ele, professor, só levava vantagem em termos de cultura geral e
especializada. Mas qual o apelo erótico do Direito Constitucional ou
Internacional? Nenhum! — ele pensava. — Se pelo menos a Monique tivesse algum
complexo de Electra, uma tarazinha recôndita pelo pai...” — chegou a desejar,
num desespero que já apelava para o lado mórbido de algumas infelizes.
No banheiro do hotel, o professor,
nu, frente a um espelho grande, se examinava demoradamente de perfil,
desgostoso com o leve volume do estômago. Se Monique o visse assim, cairia na
risada, perguntando se era menina ou menino. Interessante é que, de roupa, o
ventre quase não aparecia. E o italiano — ele já tinha investigado com olhos de
lince — não tinha barriga nenhuma. O jovem era um atleta, obviamente. Corado,
pescoço grosso, ombros largos. Em suma, repelente.
Na quinta-feira da última semana do curso,
porém, saindo da escola, ele encontrou Monique na porta principal. Estava
sozinha, com a jeito de quem espera alguém. Tinha a intenção de fingir que não
a percebera. Mas foi ela quem, ao avistá-lo, tomou a iniciativa de se
aproximar, amistosa, sorrindo meio acanhada e dizendo: — Que tal jantarmos
juntos?
O coração do professor derreteu na
hora. Nem acreditava no que lhe dizia o mais puro lírio de Paris. Olhando em
volta, perguntou:
— Onde está o Calígula?
— Que Calígula?
— O italiano, ora...
Ela deu uma parada, sorrindo da comparação.
Em seguida, franzindo o cenho, comentou: — Então é isso... Está com ciuminho...
— Ele até me expulsou da carteira...
Um rapaz grosseiro... Se estivéssemos nos velhos tempos romanos, teria me
arremessado aos leões, no Coliseu
Ela explicou que estava pensando em
escolher um restaurante mais afastado, mas muito bom. Perguntou se não se
incomodaria de caminhar um pouco. Ele, galante, respondeu que, na companhia
dela, escalaria o Everest de joelhos. Mas, no percurso até o restaurante, na
conversa havia uma nuvem de preocupação, quase um mal-estar, envolvendo os
dois, não obstante ela soltasse comentários avulsos, explicando algumas
atrações turísticas daquela parte da cidade. Ele fingiu estar interessado, mas
era evidente seu alheamento a qualquer coisa que não fosse a bela cicerone, que
ele espiava com frequência porque simplesmente vê-la lhe dava enorme prazer.
Parecia-lhe que Monique preparava alguma coisa para dizer, em prosseguimento à
observação sobre o ciúme. Ou será que havia outro gênero de preocupação?
No
restaurante, após fazerem os pedidos ao garçom, Monique perguntou: — Então, se
eu hoje não tivesse tido a iniciativa de falar com o senhor, nem mesmo teria
sido cumprimentada! Por que isso?
Ele hesitou
antes de se explicar. Mas, ridículo ou não, o fato é que não podia mais
silenciar sobre o enorme peso que afligia seu coração. Por que se sufocar?
Afinal, estava sozinho, e na França, terra — dizem, mas não creiam — das
grandes paixões sem lei. Se o atrevido italiano era a imagem da desinibição, da
ignorância autoconfiante, por que apenas ele, bem mais velho e sofrido, vinte
vezes mais culto, deveria ficar se remoendo, engolindo seus sentimentos?
Nem
acreditando nos próprios ouvidos, ele se abriu. Juntando as mãos com as pontas
dos dedos, cotovelos apoiados na mesa, como que iniciando uma dissertação
acadêmica pediu inicialmente desculpa por ser tão direto. Reconheceu que havia
algo de ridículo no que iria dizer, mas era melhor dizer tudo. E, com calma,
declarou que estava profundamente apaixonado. Descreveu com detalhes seu
sofrimento nos últimos dias, ora com mais fluência, ora lutando penosamente com
a língua francesa. Nessa canção de amor em prosa demorou mais de um quarto de
hora. Se o tema era um cântico de paixão, a cadência da fala era a de um
contido professor universitário que friamente procura expor um problema de
difícil solução. Assim agia porque, não sabendo como seriam acolhidas suas palavras,
não queria fazer um papel de evidente sedutor, velho e ridículo. Seria, na pior
das hipóteses, um sábio velho, infeliz, mas sincero. Na verdade, foi mais uma
confissão de moribundo no leito de morte do que uma declaração de amor.
Livrava-se do peso de conquistar a ouvinte, que ia ficando cada vez mais
vermelha, à medida que escutava, com os olhos azuis arregalados, aquela
cachoeira pesada de paixão.
Dissertação
desse tipo era, para ela, uma absoluta novidade. Já recebera muitas cantadas de
jovens e maduros admiradores, expressas, porém, em frases curtas e com esperta
ajuda das mãos, gesticulando ou apelando para a carícia. A sinfonia, porém, que naquele momento
entrava pelos seus ouvidos, não era uma simples cantada. Era uma mescla de
explosão e tese de cátedra, erudita e apaixonada, sobre a arte platônica de
amar, exposta com uma cadência e sinceridade que a abalavam. Nunca ouvira algo
parecido. Nem mesmo em filme romântico indicado para Oscar. Era quase uma
indigestão de amor que saía pela boca séria daquele senhor imóvel que nem mesmo
procurava pegar na sua mão.
Cumpre
esclarecer — dúvida que não deveria mencionar aqui para não quebrar o encanto
romântico do relato — que nosso professor, durante alguns meses, dera aulas de
Literatura. Especializara-se nos autores românticos, que lera com frequência,
mesmo depois que deixara de lecionar essa matéria. Assim, a excepcional
eloquência que — qual um martelo de ouro, amaciava mais o próprio coração do
que o da moça —, era não só fruto de uma grande paixão — por si só eloquente —
como também consequência do preparo literário do erudito professor. O fato é
que Monique, não obstante ser uma jovem invulgarmente prática, sentia-se algo
esmagada. Qual uma marinheira de fim de semana que, longe da costa, pilotando
minúsculo barquinho, vê aproximar-se a onda gigantesca, azul, escura, bela mas
perigosa.
A certo
momento, a moça, algo confusa, pareceu querer se levantar e se retirar, mas ele
fez um gesto tranquilizador, segurando sua mão, sem apertar, pedindo que não se
assustasse pois logo terminaria. Note-se que, em momento algum, ele contaminou
sua declaração com qualquer conotação sexual. Transmitiu apenas uma intensa
paixão cerebral, que parecia muito acima da carne.
Parecia,
esclareçamos, mas que talvez não o fosse, inteiramente, pois tudo estava
confuso na alma do sofrido professor. Reconheceu verbalmente — para sugerir que
era um bom caráter — que não tinha o direito de lhe confessar o seu amor, por
vários motivos. Principalmente porque era casado, não podendo se separar da
mulher nessa fase difícil da vida. Terminou reconhecendo que ela, Monique,
teria todo o direito de se afastar dele — o que, intuía, seria menos provável,
agora, com esse desabafo — a menos que, por “superior compreensão” — ah! a
esperteza das palavras! — ela o perdoasse por essa violenta e involuntária
paixão.
Quando
terminou sua fala, tirou do bolso três folhas de caderno, escritas à mão,
dizendo, mais ou menos, em francês, o que acima já dissera verbalmente, mas com
o conteúdo ainda mais elaborado. Cauteloso, não escreveu seu nome, consciente
do perigo de tal confissão cair em mãos estranhas. Gostaria apenas que essas
páginas fossem guardadas por Monique e lidas muitas vezes. Quem sabe, lendo-as,
a moça, em algum tempo futuro poderia ser dele. Sabia que cartas tinham mais
poder, sentimento e “presença” que as palavras apenas ouvidas. Para ele, o
conhecido adágio “Verba volant, scripta manent” não era verdadeiro apenas no
mundo jurídico. Valia ainda mais nas coisas do coração.
Mônica hesitou
um pouco antes de pegar as folhas. Olhando-as viu que aparecia seu nome,
incompleto, no topo, mas não o nome de quem o escrevera. Compreendendo o
significado da omissão, nada perguntou. Dobrou o escrito, guardou-o na sua
pequena bolsa e ficou em silêncio.
Parecia
chocada, até que, séria, escudando-se na sua natureza prática, decidiu reagir,
transformando o furacão em simples aguaceiro. Encarando-o, perguntou:
— Tudo isso
por quê? O que é que fiz para deixá-lo assim?
— Se eu
pudesse explicar, teria a chave de um segredo que atormenta o homem desde que
desceu das árvores. Não se esqueça de que há quem morra por amor. Você não lê
jornais? Quanta gente se mata por amor!
— Não me
lembro de tê-lo encorajado... Bom, confesso, senti uma certa atração pelo
senhor, sim, coisa normal em toda mulher, mas procurei tratá-lo como um amigo,
um colega mais velho, muito distinto, simpático, mas nada mais que isso...E,
para ser franca, desculpe, não posso, moralmente, ter rolo com homem casado.
Sinto atração, sim, mas... Sou católica, sabe? E de boa formação... Quero
casar, ter filhos, uma vida normal... Tenho a cabeça no lugar... Não quero ser
amante de um homem proibido. Nem sentir remorso por ter prejudicado tua mulher,
uma sofredora. Quando vim a Paris — a família dela morava em Marselha — prometi
à minha mãe agir com total correção. E não quero quebrar minha promessa.
— Respeito
isso... — ele engoliu em seco, desconcertado pelo puxão de orelha. — É que,
talvez inconscientemente, estivesse esperando por você... Acredito numa espécie
de união anterior de almas, algo assim como a metade de uma fruta que ficou
girando pelo mundo à espera daquela outra metade que a completa. Se não me
engano foi Platão quem disse isso.
Ela manteve
novamente um bom silêncio, tentando digerir essa inesperada abordagem que, não
sabia por que, lhe evocava conversas que tivera com um tio citricultor.
Excessivamente prática, o que passou pela sua cabeça foi a imagem de uma meia
laranja, ainda com casca, esperando o acoplamento da outra metade. Seu preparo literário
era escasso se bem que atualizada em termos de conhecimentos da vida real, pois
lia revistas e livros sentimentais. Não encontrando muita pertinência naquela
relação entre a paixão daquele senhor e a meia fruta que apareceu na tela da
sua cabeça, mas um tanto assustada com aquela nuvem densa e misteriosa que se
erguia à sua frente, procurou levar a conversa para um nível mais fácil de
lidar. Meio séria, meio brincalhona, perguntou:
— Quer dizer
que lá no céu fomos destinados um para o outro?
— De minha
parte, pelo menos... Mal a vi, fiquei literalmente apaixonado. Não sou o único.
Há precedentes. Dante Alighieri teve uma paixão desse tipo quando, com oito
anos, viu pela primeira vez sua inesquecível Beatriz... Descrevo apenas um
fenômeno que eu mesmo não compreendo bem... Deveria estar acostumado porque,
como professor, já tive alunas muito bonitas. Até mais do que você... E não
fiquei apaixonado por nenhuma delas. Mas depois do que ouvi agora, essa
promessa que fez à sua mãe, não quero influenciá-la. Não me sentiria bem se lhe
fizesse algum tipo de mal. Mal apenas moral, eu digo...
— Acho
estranho, o senhor, um juiz e professor, acreditar em destino, essas coisas que
o senhor disse sobre a laranja...
— Que laranja? — ele a interrompeu, estranhando.
— Desculpe...
Essa estória da metade esperar a outra metade... Achei o senhor um homem
simpático, inteligente... até mesmo atraente e tudo o mais... Para ser sincera,
não teria cabimento essa paixão, assim de repente. Afinal, o senhor mal me
conhece. E, desculpe insistir, é um homem casado... Além do mais, não pode se
separar da mulher. Isso, sem falar na diferença de idades... É grosseiro, sei,
perguntar, mas que idade o senhor tem?
Ele sentiu-se
chocado com tanta objetividade e falta de poesia. Sua anterior eloquência,
sincera e caprichadíssima na forma, fora pérola atirada à linda porquinha de
franjas. A francesinha, ele pensou, tinha mesmo o espírito prático e burguês
que, dizem — generalização discutível —, é uma característica da sua raça.
Pensou em mentir, mas como estava disposto a tudo naquela noite, confessou a
verdade: — Sessenta e dois anos... — disse, resignado. — Lamento, não tenho
culpa por não ter morrido antes, ou de ter nascido bem mais tarde. Fui
destinado a você, mas houve uma falha no céu na seção de expedição das almas.
Alguma troca de carimbos. Você foi despachada com um atraso de vinte, trinta
anos... — sorriu, achando besta a comparação.
Ela ficou
impressionada. Não com a conversa sobre datas de remessas, mas com a idade
dele. Esperava que ele tivesse bem menos. Sessenta e dois! Fez logo as contas
mentalmente: trinta e oito anos de diferença!
— Sua conta
está correta... — ele observou, sorrindo, como que lendo o pensamento daquela
garota tão terra-a-terra. — Poderia ser seu pai...
— Ele é mais
novo... Está com sessenta.
— Que bom!
Nesta nossa faixa, dois anos já faz diferença... Espero que nunca, por amor,
venha a sofrer como eu, passando o ridículo que estou sofrendo agora...
Reconheço que sou uma espécie de aleijão. Está bem, dito assim? A palavra
“aleijão” agrada a tua moral? Sei, deveria ter mais juízo, sofrer em
silêncio... É que nunca tive antes um sentimento dessa intensidade... — e nisso
falava a verdade.
Nesse momento,
voltou o garçom, trazendo os pratos, desculpando-se pela demora.
Conversaram, algo constrangidos, sobre outros assuntos, enquanto
jantavam. Não seria educado apenas comer em silêncio ou ir embora sem tocar na
comida. Mais aliviado pela confissão inicial, ele repetiu que, após conhecê-la,
ficara doidamente apaixonado, algo inesperado para ele. Assim, passara a ansiar
por um caso de amor com uma moça bonita como ela, mas livre, sem dramas morais.
Insistiu que seu amor não era um corriqueiro “caso” de amor”. Era algo muito
mais profundo, talvez para sempre, até a morte. Longe de seu país, sua
consciência de homem casado protestaria menos. Egoísmo, por certo, mas com
atenuantes. Uma despedida, canto de cisne da vida romântica, antes de mergulhar
na velhice irremediável. Algo que guardaria no coração como uma joia dentro de
um baú velho e encardido por tantas restrições morais. Ressaltou que não lhe
passara pela cabeça — era também verdade — a hipótese de estar corrompendo
alguém. Todavia, conhecendo agora o interior dela e seus rígidos princípios
morais, agradecia sua paciência e prometia nunca mais retornar com essa
conversa de “Romeu rejeitado”. Desculpou-se, ainda, dizendo que, na França,
como em qualquer outro país, inúmeros casos de amor já tinham acontecido com
pessoas de níveis diferentes de idade, sem prejuízo para ninguém. Afinal, as
moças eram, em geral, no Primeiro Mundo, muito liberadas. E a admirava por ser
uma exceção.
Era sincero,
dizendo isso? Era, na maior parte. Realmente não queria, em tese,
conscientemente prejudicar ninguém. Afinal, era um professor de Direito que,
por sinal, já publicara um longo artigo relacionando Ética e Direito. Mas, ao
mesmo tempo, não poderia deixar de reconhecer — com um mínimo de honestidade
intelectual — que tentava com lábia literária arrastá-la para a areia movediça,
afastando-a de uma linha de conduta que se impusera e prometera à mãe,
obviamente uma senhora de moral às antigas.
Parte do
jantar foi acompanhado de conversas variadas. Isso porque quando ele voltava ao
assunto principal ela, muito séria — sem grosseria, mas com determinação —,
repetia que não gostaria de voltar a esse assunto e que leria a carta com toda
a atenção. Se ela tivesse que dizer algo a respeito, diria depois de refletir,
mas que ele respeitasse sua liberdade. Disse que, por conselhos de seu pai,
homem muito ponderado, ela nunca tomava decisões importantes antes de pensar
uns dias, vendo as coisas sob todos os ângulos.
Quando se
separaram, naquela noite, por volta das dez horas — ela estava hospedada numa
casa de família — a paixão dele era a mesma, senão maior. Mas, ao mesmo tempo,
sentia um certo alívio por haver colocado para fora do peito o coração ferido,
naquele momento refrigerado pela brisa de Paris.
Quando se
despediam — porque ambos voltariam para seus
lares no dia seguinte — ele para o Brasil e ela para a cidade de Marselha —
Monique perguntou se ele poderia lhe dar seu telefone, visto que havia a
possibilidade de ir ao Brasil, proximamente, a trabalho. Seu pai tinha alguns
clientes brasileiros com litígios na França. Se o pai precisasse dela para um
contato presencial no Brasil, ele, professor e magistrado, poderia auxiliá-la a
encontrar um bom hotel, indicar restaurantes e ajudá-la na comunicação porque Monique
não falava português.
De imediato,
esperançoso, ele deu a ela seu telefone residencial e frisou que a melhor hora
para ela falar com ele seria às dez horas da noite, quando estaria em casa, com
certeza, menos às quartas-feiras. Disse que sua mulher, sempre deprimida,
dormia muito cedo e ele costumava preparar suas aulas à noite.
Quando, por
sua vez, ele quiz o telefone dela em Marselha, ela pediu que a desculpasse mas
preferia não dar, porque o aparelho tinha extensão e sua mãe tinha a mania boba
de bisbilhotar, ouvindo as conversas dela, interessada demais em “protegê-la”.
Vários admiradores de Monique, rejeitados, já haviam atormentado mãe e filha,
telefonando continuamente. Frisou que entraria em contato, com ele, sem falta,
dentro de alguns dias, porque queria trocar algumas ideias, que explicaria
melhor pelo telefone, depois de pensar melhor sobre o que tinha ouvido no
jantar.
Antes de se
despedirem, com um “respeitoso” abraço — ele dominando-se para não apertá-la e
cobri-la de beijos —, insistiu que estava por demais curioso sobre o que ela
queria lhe falar. Explicou que sem uma data certa para esse contato telefônico
passaria dias angustiado, insone, como um zumbi. Devido à sua insistência ela
tirou de sua pequena bolsa uma agenda, consulto-a e escolheu o dia e hora do
mês em que faria contato. A espera dele seria de dez dias.
Dois dias
depois dessa conversa, o Professor Ricardo estava no Brasil, em seu
apartamento.
No dia
combinado para a chamada telefônica, às 10:15 da noite, o telefone tocou e foi
imediatamente atendido. Ele disse apenas “alô” e ficou escutando. Era Monique,
chamando de Marselha. Felizmente ele estava sozinho na sala. O diálogo foi,
obviamente, em francês.
— Alô,
Ricardo. Sou eu, Monique. Cumpro minha palavra, telefonei. Posso falar sendo
ouvida só por você?
— Pode. Este
telefone não tem extensão. Você não imagina como passei angustiado estes poucos
dias, esperando sua chamada. Espero ouvir boas notícias.
— Vou ser
muito objetiva e breve. Quando combinamos este horário nos esquecemos da
diferença de quatro horas de fuso horário. Aqui são duas e quinze da madrugada
e estou falando de casa. Apenas me ouça, por favor, sem interrupções, porque de
repente minha mãe ou meu pai acorda e pode escutar. Você promete apenas me
escutar?
— Prometo.
Continue.
—... Olha, as
notícias não são boas. A tua declaração, de três folhas, que você me deu antes
de viajar, eu a guardei provisoriamente no fundo de uma gaveta do meu armário,
até que encontrasse um esconderijo melhor. Infelizmente, minha mãe, com a mania
dela de “arrumar” as coisas, encontrou a tua carta. Estranhando o fato de ser
manuscrita, sem assinatura e com letra de homem, leu tudo, direitinho e mostrou
a carta ao meu pai, que ficou muito bravo e exigiu uma explicação. Tentei
explicar a ele que era apenas um exercício literário de um jovem estudante
brasileiro, testando sua capacidade de escrever em outra língua, mas ele não
engoliu, claro. Disse que aquilo só poderia ter sido escrito por um homem muito
maduro, ou velho, muito experiente, tentando seduzir uma jovem bonita e sem
malícia, criada à moda antiga, com pais católicos. Exigiu, ameaçador, a
“verdade” e disse que já desconfiara de algo muito sério ocorrido em Paris,
quando eu, após meu retorno a Marselha, disse a ele, duas vezes, que estava
interessada em conhecer o Brasil em viagem de trabalho. Chegou até a perguntar
se eu estava grávida! Veja só! Eu, grávida de você, sem nunca ter dado ou
recebido um beijo! Para que ele não ficasse imaginando coisas muito
desagradáveis achei melhor explicar tudo. Fiz bem, não?
— ... Fez. E
qual foi a reação dele? Pode abreviar, mas não esconda nada.
— Bom, vou ser
totalmente fiel às palavras dele. Explicou que paixões de idosos podem ocorrer,
mas velho que tem juízo procura se dominar, evitando prejudicar moças de boa
formação e que permanecem no bom caminho. Ressaltou que eu, sendo filha única,
daqui a poucos anos assumiria a direção de seu escritório de advocacia, com boa
clientela, sendo vista por todos com respeito pessoal, profissional e social. Disse
que não teria sentido ele jogar fora todo o esforço dele, durante tantos anos
de estudo e trabalho, só porque “um velho meio gagá, ingênuo, ou sensual e
irresponsável — palavras dele —, ficou apaixonado tardiamente na vida. Disse
ainda, que se você não parasse com essa “bobagem sentimental”, você iria se
arrepender amargamente, tanto como magistrado quanto como professor. E dois
dias depois ele já sabia muitas coisas a seu respeito: onde morava, onde
lecionava, onde trabalhava como magistrado. Isto porque foi pessoalmente à
escola onde nos conhecemos e leu sua ficha de inscrição. Disse que se você não
rompesse totalmente com seu “sonho tolo e impossível”, você seria brevemente
mencionado, em artigos de jornais — escritos por jornalistas influentes —, como
um desse velhos sul-americanos, especialmente brasileiros, que vão à França
visando seduzir jovens francesas bonitas. Com tal “biografia” você seria
malvisto como professor e magistrado. Dar palestras na Sorbonne? Impossível,
porque meu pai conhece muita gente lá dentro. E ainda discorreu sobre meu
futuro, descrito como moça leviana, egoísta, amante de velho casado e até
perversa com tua mulher sem seios. Quando eu contei tudo para ele, dei essa
informação sobre os seios apenas para comprovar que você é um homem de
consciência e tem pena da tua mulher e...
— Pode parar!
Chega, é suficiente. Vou pensara respeito do que ele disse, mas quanto a você
mesma, qual sua decisão?
— Bem...
Fiquei arrasada com as palavras dele, mas reconheci que preciso pensar melhor.
Acho prudente a gente reavaliar nosso relacionamento durante alguns meses. Há
muita coisa em jogo, profissional e moralmente. Daqui a um tempo poderemos
decidir com a cabeça fria. Tanta coisa pode mudar até lá, em nossas vidas!
Jamais vou jogar fora a tua declaração de amor. E você? O que acha dessa pausa?
— É também
minha opinião. Um provisório adeus, minha querida. Vamos desligar?
Colocou o
telefone no gancho e ficou parado, pensando. Autoexaminando-se constatou,
desapontado, que sua paixão amorosa havia praticamente se evaporado.
Sentia, agora,
muito medo e quase nenhum amor. — “Dar aulas na Sorbonne ou ser convidado para
o Supremo Tribunal? Esqueça, meu velho. Preciso é melhorar meu inglês para
proferir palestras no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Essa guria, o que tem
de beleza tem de gelo no coração. No item frieza puxou ao pai, um chantagista
perigoso. Afinal, eu amava a filha dele.
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
oripec@terra.com.br
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