terça-feira, 1 de agosto de 2023

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CRIMES E SOBERANIA

            Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo. 

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder. 

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”. 

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.  A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...),  e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão. 

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas e jurídicas. 

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta. 

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, por vezes nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real. 

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá. 

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política. 

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

 O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades. 

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica. 

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?” 

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania. 

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

 Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
                   oripec@terra.com.br

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Publicado em 04.12.2006

terça-feira, 4 de abril de 2023

Em defesa de Sérgio Moro e da Lava Jato

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Em 05/03/2021 publiquei no meu blog um artigo sobre Sérgio Moro com o título de “A Lava Jato, de Moro, será mais valorizada se mundial”.

A tese central do artigo é sobre a prevalência — em casos complexos — da verdade, da justiça concreta, individual, sobre a justiça formal — justiça apenas aparente, manipulável, funcionando o juiz como um robô, sem poder também procurar esclarecimentos, para comprovar que decidiu bem, isto é, com provas nos autos. Essa liberdade judicial pode ser exercida beneficiando acusação ou defesa. É sabido, por exemplo, que um preso, já condenado a muitos anos de cadeia, “confesse” que matou outro preso, em troca de uma remuneração.

Como a legislação não tem a mesma velocidade e astúcia do crime — que nada respeita — é preciso que o juiz criminal, opte por uma justiça verdadeira, com direito de também solicitar provas, não dependendo apenas do promotor e dos advogados.

Transcrevo, abaixo, o referido artigo que continua atual, neste momento em que o crime organizado da inícios confiáveis de que pretende a eliminação física de um grande ex-magistrado, agora senador.

Leiam, abaixo, o referido texto.  

            “A visão do estado social não admite a posição passiva e conformista do juiz, pautada por princípios essencialmente individualistas. O processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito. (…) Nesse quadro, não é possível imaginar um juiz inerte, passivo, refém das partes. Não pode ele ser visto como mero espectador de um duelo judicial de interesse exclusivo dos contendores. Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver
todos os esforços para alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social”
(Ada Pelegrini Grinover, citada por um jurista, em artigo na internet,
cujo nome não anotei no momento, não conseguindo aqui mencionar).

Todos os povos, com um mínimo de civilização, gostariam que seus respectivos governantes fossem incorruptíveis no manejo do dinheiro público. Esse desejo generalizado de honestidade independe da ideologia dominante no país. Nações capitalistas, socialistas, mistas e até nazistas — ou assemelhadas —, toleram tudo, exceto a desonestidade de seus líderes.

Na China comunista, até poucos anos atrás, mesmo altos membros do partido único, ou influentes empresários, quando culpados de corrupção eram condenados à pena de morte e executados com um tiro na nuca, em estádio de futebol. Um ex-presidente da Huarong Asset Management, Lai Xiaomin — empresa estatal especializada na gestão de ativos financeiros —, que se apropriou de 277 milhões de dólares, em dez anos, de 2008 a 2018, foi condenado à morte por corrupção e bigamia. Seus bens também foram confiscados. Confiram na internet. E o “custo” da execução, a bala, ainda era cobrado da família.

Detalhe de humor negro, a cobrança da bala, mas que simboliza uma advertência, curta e grossa, para gênios e analfabetos, de que “se você roubar, você morre!”, dirigida a todos os cidadãos, “os de cima e os de baixo”. Como a imagem — o fuzilamento —, ao vivo, é mais persuasiva que centenas de páginas, escritas ou faladas, isso deve ter contribuído para conter, pelo medo, milhares de cidadãos tentados pela possibilidade de enriquecer ilicitamente trabalhando no governo, onde é mais fácil roubar porque o dinheiro, em impressionante volume, está mais acessível, sem vigilância externa.

Atualmente a pena de morte para casos de corrupção, na China, diminuiu devido a pressão internacional, mas o rigor continua, embora sem tiro na nuca. Isso porque o povo chinês, como os demais povos, na sua imensa maioria, aprova tal severidade, e nenhum governo despreza o apoio popular. O medo, em tese uma emoção negativa, pode, conforme o contexto, ser imensamente virtuoso, daí meu apoio ao esforço de Sérgio Moro, doravante no plano internacional.

Sua expertise no combate à corrupção sofisticada será melhor compreendida e praticada em outras nações. Seu sacrifício pessoal não pode ser desperdiçado. A corrupção perdeu a primeira batalha, no Brasil, mas ainda tem a esperança de ganhar a guerra, com ajuda da bandidagem dos hackers e partidarização de parte da cúpula do poder judiciário. 

Diz a mídia que Xi Jinping, o atual presidente chinês, já puniu mais de um milhão de funcionários públicos. A severidade na proteção ao bem público — seja por inata honestidade do governante, seja por cálculo político — gera confiança e lealdade. O fato objetivo é que sem demonstração de honestidade pessoal todo líder, de qualquer pais, acaba perdendo o poder. Vejamos, sinteticamente, alguns exemplos.

Hitler, foi um ditador brutal e assumido mas não considerado ladrão. Stálin, camarada perverso, tinha hábitos simples, sem luxo, interessado “apenas” em implantar, progressivamente, uma ditadura mundial do proletariado, começando pela Rússia. Mandava matar opositores, mas, pelo que se sabe, não guardava dinheiro no exterior (talvez porque não precisasse; tinha de tudo, e jamais pensou em deixar o poder). Seu antecessor, Lênin, também não ligava para o dinheiro. O mesmo se diga do chinês Mao Tsé Tung, que para implantar o comunismo em seu país não hesitou em matar dezenas de milhares de “desobedientes”, usando a fome ou o fuzilamento. Todos os ditadores acima mencionados tinham seus defeitos, mas não roubavam o próprio país.

Alguém pode imaginar Hitler, Lênin, Stálin, Mao sendo fotografados carregando dólares ou diamantes na cueca? Impossível. Uma desmoralização inaceitável. Eram “grandes”, no estilo deles, brutal, mas não furtavam e por isso foram apoiados pela maioria de seus povos. No Brasil, Getúlio Vargas foi um ditador, em certo período, mas nunca ladrão. O mesmo ocorreu com nossos presidentes militares, todos, na minha opinião, pessoalmente honestos, nos vinte anos de exceção.  

Insistindo: à vasta maioria dos homens e mulheres, do mundo inteiro, interessa vivamente que seus governantes não roubem nem deixem roubar. Daí a necessidade de uma nova estratégia, agora mais extensa, global — “dura”, juridicamente discutível, mas inevitável se realmente queremos sucesso na luta contra o crime do colarinho branco: a “delação premiada”.

Sem essa “delação”, ou “colaboração premiada”, utilizada na Operação Lava Jato, liderada por Sérgio Moro, o Brasil continuaria como um país com dois tipos de justiça: a rotineira, “Genérica”, do povão — de investigação rudimentar —, e a “Privilegiada” — de investigação policial complexa, demorada, exigindo conhecimentos de informática, telefonia, escutas legais e ilegais, hackers, variadas legislações tributárias e bancárias, no próprio país e em diferentes partes do mundo, notadamente nos Paraísos Fiscais. 

Sem a necessária ousadia inovadora dos integrantes da Lava Jato, coordenada pioneiramente por Sérgio Moro, o Brasil continuaria “enxugando gelo”: a polícia tentando obter um flagrante do infrator subalterno mas sem poder chegar ao topo, o “cabeça” do esquema de desvio, geralmente oculto, respeitado e blindado por competentes advogados. Em suma, antes de Sérgio Moro a polícia podia avançar até um certo nível de conhecimento da fraude, digamos 50% — o suficiente apenas para saber que “aqui há crime!” — mas incapaz de chegar aos detalhes, com prova documental, oral, e informática, possibilitando uma denúncia precisa e uma condenação judicial difícil de reformar. A investigação policial, quando sem apoio judicial, era dificultada porque, ao contrário do juiz, o delegado não goza do direito de inamovibilidade. Se estiver incomodando um figurão o policial pode ser removido para outra cidade. 

Claro que a cooperação das polícias, entre os países, já existe na luta contra o tráfico internacional de drogas, prostituição, trabalho escravo e outras formas de combater o crime organizado, mas pouco se podia fazer, antes de Sérgio Moro, em casos de lavagem de dinheiro, caixa dois, evasão de divisas, em que a prova está espalhada no mundo. Se a ONU — ou outra entidade assemelhada, criada com apoio de grande número de países — facilitar o acesso, regrado, às instituições financeiras dos países signatários — nos casos do colarinho branco e crime organizado — é o que propomos aqui —, já não seria tão necessário prender preventivamente o suspeito, por tempo mais longo, a não ser para impedir sua fuga. Haveria enorme diminuição da burocracia legal e judicial para verificar os depósitos e transferências do dinheiro ilegal entre países e paraísos fiscais. 

 Os infratores, antes da Lava Jato, sentiam-se praticamente impunes por saberem o quanto é difícil comprovar, em juízo, tais crimes. O butim pode estar escondido em malas, cuecas, empresas lícitas e de fachada, e instituições financeiras internacionais, com seus depositantes protegidos pelo sigilo bancário. 

Falei em delação premiada, dizendo-a essencial para a repressão ao desvio de grandes somas, mas há um problema com ela: uma suscetibilidade excessiva protegendo pessoas importantes quando acusadas de desvios milionários.  Muitos operadores do direito não gostam ou temem melindrá-los, esquecidos de que — triste realidade —, sem alguma pressão psicológica e desconforto, o infrator não confessa. Nem ao delegado, nem ao promotor, nem ao juiz, nem ao padre e nem a Deus — com Este o infrator apenas evita o assunto. Sem alguma pressão, medo ou constrangimento — que não se confundem com a verdadeira tortura, a física —, o investigado também não indica quem são seus cúmplices. Seria uma deslealdade perigosa, no “código de ética marginal”. Nos E.U.A. o delator é chamado de “rato”, merecendo ser pisado ou temperado com chumbo.

Daí a necessidade real, na Lava Jato, da polícia investigar — sem alarde —, até onde for possível fazer isso sozinha e depois, para completar a investigação, pedir a um juiz a prisão provisória, ou cautelar, sem pré-aviso, dos investigados —  porque só eles mesmos podem informar os detalhes indispensáveis ao êxito de uma ação penal eficaz: nomes completos dos cúmplices, laranjas, doleiros, bancos, agências,  contas correntes, países, valores exatos, datas e outros detalhes indispensáveis a uma denúncia apoiada em inquérito bem feito e confirmável em juízo.

Nessa corrente de participantes nenhum “elo” pode faltar, como recomenda a tática de “siga o dinheiro”. Daí, insista-se, a necessidade de prender provisoriamente o investigado —, de surpresa —, porque se intimado com dias de antecedência, para comparecer à delegacia, ele, sabendo-se culpado, imediatamente procurará um criminalista que — por dever profissional — lhe dirá o que fazer, conforme a situação: fugir, calar, destruir provas, avisar os cúmplices, transferir recursos de um banco para outro, etc. A legislação brasileira permite as prisões cautelares porque sem elas, nos crimes mais complexos, fazer justiça seria uma raridade, perpetuando a já mencionada “dupla justiça”, a dos ricos e a dos pobres.

Há quem diga — emocionado, quase às lágrimas — que prender alguém, provisoriamente, sem aviso prévio, com possibilidade de prorrogação da detenção, é uma “tortura”, principalmente se o preso for idoso.

Quem considera “tortura” a prisão temporária prorrogável vive no mundo da lua ou é amigo fiel do “torturado”. Esquece que o dinheiro, geralmente polpudo, obtido com o furto do dinheiro público, matou ou prejudicou grande número de velhos, moços e crianças das classes menos favorecidas, que vivem em condições precárias. Mal educados, mal alimentados, mal tudo, porque foram privados da riqueza subtraído pelo “torturado” idoso incapaz de controlar a própria ganância. Por que tanto carinho com quem agiu mal, apesar de velho?

Todo crime, ou ilegalidade, pressupõe risco. Quando dá certo é só felicidade, mas quando dá errado, há que aceitar a consequência de um grande desconforto, ou um sofrimento que é apenas moral. O detido não foi torturado. Não passou fome, nem frio, nem privação de sono, nem sofreu agressão física. Na maioria dos casos de prisão cautelar longa houve depois o julgamento e a condenação, com provas e até confissão explícita, havendo recuperação de bilhões de dinheiro governo. Prova de que a sistema funcionou, atingiu seu objetivo: condenar culpados. 

É conhecida a genérica frase “os canalhas também envelhecem”, mas concedo que nem todo investigado merece essa vil classificação. Alguns poucos suspeitos talvez não estivessem completamente informados da realidade, quando convidados a participar de alguns negócio ou operação. Mas, descoberto o esquema desonesto, seus nomes figuravam em longas listas de infratores e por isso precisavam ser detidos, na busca da verdade. Não é possível deixar de investigar com base no rosto de bondade e prestígio social de um cidadão.

Às mentes dolosas interessa convidar algumas pessoas honestas, prestigiadas, para dar um ar de respeitabilidade aos empreendimentos desonestos. Tais vítimas — paradoxalmente vítimas por serem honestas demais — podem entrar em depressão, e até cometerem suicídio, não suportando a humilhação. Esse é um risco, raro e lamentável mas não invalida o que foi mencionado neste artigo: a necessidade de prisão provisória para chegar ao fundo de uma trama que sem a prisão, significaria impunidade. Nenhum sistema judicial, no mundo, está blindado contra a eventualidade de uma acusação equivocada. Lembre-se que há muito mais criminosos não punidos, por falta de prova, do que inocentes condenados. Quando isto ocorre, a mídia não deixa passar em branco, pela sua raridade. Mosca branca.

Não sei como são feitas, na prática, os interrogatórios feitos nas prisões provisórias e preventivas, mas presumo que só serão plenamente úteis se o investigado responder às perguntas desacompanhado. Se seu advogado for de temperamento agressivo, exaltado, interessado em tumultuar — protestando e interrompendo constantemente o diálogo entre quem pergunta e quem responde — esse trabalho torna-se inútil.

Presumo que, no geral, há uma espécie de jogo de pôquer, nessas inquirições, em que o delegado ou o promotor talvez aparente saber mais do que realmente sabe sobre a conduta ilegal do investigado mas não quer “mostrar suas cartas antes do tempo”.  Essa incerteza agonia o infrator, limita sua liberdade de inventar o que não existe. Por sua vez o investigado tenta, ao máximo, aparentar uma inocência inexistente. Nesse joguinho de astúcias o delegado ou promotor leva vantagem porque não trabalha com medo, sob pressão. Não precisa, nem pode, mentir, inventar fatos inexistentes — dizendo, por exemplo, que todos os asseclas já confessaram, quando isso não ocorreu. Só tem que perguntar e duvidar, insistindo nos detalhes, mostrando as contradições do infrator. É um trabalho relativamente tranquilo, cômodo. Busca apenas a verdade.

O investigado, porém — quando culpado —, depõe angustiado, suado, tendo que inventar, de improviso, e depois lembrar-se de como mentiu, para não se contradizer. Sente medo ser condenado, desmoralizado, perdendo tudo — liberdade, posições, riqueza, convívio familiar. E não adianta permanecer mudo, sabendo que, por isso, ficará ainda mais tempo detido. Exausto, torna-se propenso a dizer a verdade, mesmo contra a opinião de seu advogado. Pensa nas vantagens da delação premiada. Não perderá tudo, e talvez fique em casa, com tornozeleira eletrônica.

Lembro-me que poucos anos atrás, quando assistia, na televisão, os julgamento dos crimes do colarinho branco, cheguei a escrever, em artigo, que como havia uma certa corrupção generalizada, tradicional —  “quando em Roma, como os romanos”—  e havia, como ainda há, uma enorme ganância fiscal brasileira, estimulando a ilicitude como uma “defesa” compreensível do contribuinte espoliado — seria mais equânime que, nesses casos, seria  razoável que, descoberta a fraude, o réu apenas devolvesse o que sonegou, evitando a prisão.

 Com o passar do tempo, mudei meu entendimento porque essa brandura estimularia a desonestidade. O cidadão inescrupuloso pensaria assim: — “Vou roubar, ou sonegar o máximo que puder. Se não descoberto, enriqueço ou multiplico minha riqueza. Se descoberto, e condenado — o que será difícil porque a prova é complicada —, devolvo o que desviei, sem prisão. Vale a pena ser esperto, precisando apenas coragem”.

Como este artigo já está longo demais, não há necessidade de detalhamento do trabalho do juiz da Lava Jato porque a mídia, no Brasil e no Exterior, já publicou o suficiente a sobre o juiz Moro, modesto, trabalhador, paciente, honesto, homem de família e imensamente corajoso. Há também livros sobre ele.

 Poucos dias atrás, li, em e-Book, sua biografia, “Os dias mais intensos”, escrito por sua esposa, Rosângela Moro. Alguém dirá que biografia escrita por esposa é sempre suspeita, parcial. Nem sempre. Quando o leitor acompanha, quase diariamente, na mídia, tudo o que é publicado —, pró e contra o biografado —, dá para saber se o biógrafo mais recente diz ou não a verdade. Todos os fatos relatados no referido livro enquadram-se, harmonizam-se, com o que já eu sabia sobre a personalidade do agora ex-juiz. 

Por razão que não interessa aqui detalhar — também de conhecimento geral — a convivência entre o magistrado e o presidente não deu certo. Azar de três: do juiz, do presidente e do país. Não podendo voltar ao cargo de juiz, porque pediu demissão, ficou desempregado. E aí? Como Sérgio Moro ganharia a vida? Advogando na área criminal, sua especialidade?

 Não teria sentido ele montar uma banca de advogado criminalista tendo como missão defender grandes infratores da lei, logo ele, que sempre combateu os infratores. Além disso, terminada a quarentena, ficou sem proteção policial, com dezenas de réus poderosos, ricos, condenados por ele — presos ou soltos —, querendo e podendo se vingar com quase total impunidade porque não é difícil encomendar um falso “latrocínio” em que o matador nem sabe quem foi o mandante.

Daí a necessidade ou extrema conveniência de sair do país, o que certamente fará. O que foi dito acima tenta lembrar que Sérgio Moro é um idealista e por isso a Organização das Nações Unidas, ou entidade de propósitos assemelhados, tem quase uma obrigação moral de aproveitá-lo para a uma missão que é desejada não por tal ou qual nação, mas por todas elas, adeptas da honestidade. 

O presente artigo foi redigido em estilo coloquial, para o leitor comum, sem formação jurídica, embora possa ou deva ser lido também por juízes, promotores e advogados da área não penal. Ficarei honrado se isso ocorrer. Observo que o texto, inicialmente, tinha três vezes a extensão aqui presente, o que provocaria uma debandada de leitores apavorados, não dispostos a prolongar o sacrifício. É o dilema da comunicação eletrônica: não se pode dizer tudo. E se fatiado o “monstro”, nem a primeira fatia será consumida por inteiro.

(22/02/2021)

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br
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sábado, 21 de janeiro de 2023

EXPLOSÃO NO VENTRE DO MACGYVER

 


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            Soube, dias atrás, através de um jornalista de crimes — sempre exagerando nas descrições —, que o MacGyver faleceu, vítima de uma explosão que lhe “dilacerou o ventre, espalhando suas poderosas tripas”. Quem me contou isso não resistiu à imitação da contundência dos roteiristas de filmes policiais americanos. Acrescentou ainda que “os intestinos dele foram recolhidos às colheradas”. Imagem forte, despertando imediato interesse dos leitores, pois vem sendo repetida com alguma frequência na fala dos endurecidos policiais cinematográficos de Los Angeles, Chicago e Nova Iorque. Ou onde quer que rechonchudos mantenedores da lei — bebendo café em canecas e comendo rosquinhas — troquem piadas cínicas sobre os pedaços das vítimas estraçalhadas. A explosão ainda feriu um médico cirurgião, bem como uma enfermeira. É possível que ela venha a ficar cega.

            A junção do nome à referida explosão leva qualquer leitor a pensar imediatamente em terrorismo. Seria esse MacGyver algum irlandês revoltado com o domínio inglês sobre a Irlanda do Norte? O artefato teria detonado no momento errado, quando manipulado no colo? Era para ser disfarçadamente “esquecido” dentro de uma sacola em um aeroporto?

            Mais. Se o leitor ainda for informado de que nosso homem, quando bem jovem, era conhecido, dentro da sua turminha, pela alcunha de “Maçarico”, a conclusão lógica é a de que ele, além de um tremendo terrorista, “detonador” de bombas, era também um ardiloso arrombador de cofres-fortes. Enfim, um homem execrável.

            Sirva este relato como advertência pedagógica contra a fácil tendência humana de formar juízos distorcidos pela imaginação que, como um cavalo doido, desembesta pelo mundo, relinchando estórias sem conexão com a realidade. É um relato — desculpe a falta de modéstia —, que deveria ser imposto como leitura obrigatória a todos os juízes em início de carreira, obrigados que são a julgar seus semelhantes com provas indiciárias e depoimentos de falíveis testemunhas.

     Para começar, esse MacGyver não era irlandês, nem escocês, nem americano. Era brasileiro, cearense. “MacGyver” era apenas seu apelido, recebido logo que surgiu na televisão, na década de 1980, um seriado — “Profissão Perigo” — em que o personagem principal inventava saídas geniais, mecânicas ou elétricas, para qualquer tipo de dificuldade criada pelas forças do mal. O simpático e ruivo herói da televisão está, mero exemplo, amarrado a uma cadeira. Pode movimentar apenas o dedão do pé, aproveitando o buraco de um tiro no sapato, enquanto, ao seu lado, o tique-taque angustiado de uma bomba-relógio cochicha que a coisa vai explodir em cinco minutos. O recinto, por sua vez, está impregnado de gases letais. Mas, de repente, olhando para o chão, o imaginativo agente da lei vê, digamos, um prego, um arame e uma porca — de metal, claro. Mesmo que fosse de carne, a porca na certa teria serventia. Genial, com um Q.I. improvisador inimaginável, o herói do seriado logo arquitetaria uma combinação engenhosa de prego, arame e porca. Esta, sendo eventualmente um animal, é induzida a roer a corda que prende seu tornozelo — o dele, MacGyver —, após o que ela recua até que seu gordo traseiro funcione como uma tampa, interrompendo a saída do gás venenoso. Então, agarrando o arame com o dedão liberado, o herói mexerá no ponto certo do artefato, desarmando a bomba segundos antes de explodir. Tudo sem muita pancadaria porque a marca registrada do simpático herói era a inteligência.

            Nosso “MacGyver” cearense não chegava ao ponto de se igualar ao homônimo do seriado — não promovido, nunca teve o convite de um diretor de cinema —, mas foi sua propensão para as invenções e “saídas” inesperadas que gerou o apelido entre a rapaziada. Além disso, tinha o cabelo avermelhado — resultado da sensualidade holandesa por cima de nossas índias mais bonitas — não sendo de estatura muito mais baixa que seu original americano. Era também muito brincalhão.

            Que o nosso “MacGyver” cearense, tinha uma mente fértil, ninguém pode negar. Bastariam dois ou três exemplos para ilustrar os recursos inesperados de sua imaginação.

            Quando na faixa dos vinte nosso biografado passou vários meses na Alemanha. Foi lá com a cara e a coragem. Era maluco por alemãs doidonas e conhecia um pouco a língua local. Se desembarcou na pátria de Goethe com algum dinheiro, seriam no máximo uns duzentos dólares. Voou aproveitando o preço da “baixíssima temporada” — mais baixa seria impossível —, utilizando diversas rotas, dormindo horas e horas nos aeroportos, enquanto esperava o embarque para o voo seguinte. Dava como certo que, com sua engenhosidade natural, conseguiria trabalhar, mesmo com a polícia da imigração vigiando. No seu caso, não haveria tanto perigo porque seu cabelo ruivo despistava a origem sul-americana. Poderia passar por alemão, antes de falar.

            Ocorre que, como é sabido, uma coisa é viajar como turista; outra, como imigrante. Sabe-se que os empresários locais tiram proveito do medo que acossa o trabalhador irregular. Pagam bem menos. E nosso amigo, se se livrou da fome, não conseguia se defender do desgraçado inverno alemão.

            Como tudo é pago na Europa, o aquecimento de seu quarto dependia da inserção de uma moeda em determinado aparelho de aquecimento, que não posso aqui bem descrever porque não o vi, sabendo do caso pelo próprio MacGyiver. O fato é que, com a moeda introduzida na fenda, o quarto esquentava. Se não, o frio congelante penetrava nos seus ossos, roendo-os, chupando e dando risadinhas sádicas.

            Ocorre que, certa noite de sexta-feira, o MacGyver, acompanhado de uma garota meio taradona, gastou, entre bar e hotel, muito além da conta, voltando para casa praticamente sem tostão. E só receberia seu parco salário dias depois, não havendo a mais remota possibilidade de um adiantamento. Assim, em pleno mês de janeiro, num dos invernos mais rigorosos da década, com registro de várias mortes, mesmo em ambientes fechados, viu-se no terrível dilema de, ou gastar as últimas moedas comendo — mas congelando-se em seguida —, ou se aquecendo — mas depois perecendo de fome. E o frio era duplamente torturante porque, nos últimos dias, nosso cearense não parava de pensar nas cálidas areias da praia de Iracema na saudosa Fortaleza de seu Ceará.

            Passar dois dias no quentinho, mas em jejum, seria exigir demais, mesmo porque seu apetite era excelente, apesar de magro. Mas como vencer o frio? Usar jornais entre dois cobertores era uma boa ajuda, mas insuficiente, porque o frio parecia congelar até as notícias. Se os jornais lhe permitiam escapar da morte, não conseguiam vencer a insônia. O mero ato de dormir exige algum conforto. O sujeito só dorme, no extremo frio, quando já está morrendo.

            Aí o MacGyver resolveu utilizar sua veia inventiva, que alguns anos depois acabou virando profissão. Levantou-se da cama, envolto no cobertor, os dentes batendo como castanholas, e passou a estudar o aquecedor. Como o estudo demorasse, ele, para se aquecer — talvez por sugestão do som das castanholas de seus dentes —, sapateou um pouco, erguendo os braços como um dançarino de flamenco, lembrando-se de uma fogosa espanhola de pernas cabeludas, perita nessa dança, com quem tivera um caso rápido um mês antes. Pensando nela terminou o artístico aquecimento com um grito de “Olé!” — inexplicável como tantas outras coisas em sua vida.

            Após várias espiadas e reflexões em frente do aparelho, descobriu que talvez tivesse encontrado a solução para seu problema. Teria que ser algo que não envolvesse um risco muito alto de processo criminal — como seria o caso se arrombasse o aparelho. Cadeia, mesmo em Primeiro Mundo, faz mal à alma e ao casto traseiro, como era o seu. Pensou ainda que, se introduzisse na fenda um objeto semelhante a uma moeda — um disco de lata, por exemplo —, “enganando” a engenhoca com seu formato e peso — o aquecedor talvez até funcionasse porque, falta-lhe, por enquanto, a malandra inteligência humana. Mas o funcionário da empresa que explora tais aparelhos, quando fosse recolher as moedas, encontraria o objeto do crime. E aí ele, MacGyver, entraria em cana pela falcatrua.

            Teria, portanto, que inventar uma “moeda” que “se evaporasse” depois de acionado o mecanismo. Desaparecendo a “moeda”, o funcionário pensaria que se tratava apenas de um defeito da máquina. Assim, pensando, pensando e repensando, agora deitado de costas — sua posição preferida para solucionar problemas — descobriu a chave do enigma.

            Levantou-se novamente e pôs-se a examinar as diversas tampinhas de garrafas de refrigerantes e outras bebidas que havia em cima da mesa de seu quarto. Escolheu uma delas, pelo formato e tamanho, e a encheu de água. Após, com extremo cuidado, colocou a tampinha do lado de fora do batente da janela, esperando que a água congelasse. E como a temperatura era baixíssima, não demorou muito para que o líquido se transformasse em gelo em formato de moeda. Torcendo para que desse certo, porque o frio estava de rachar, MacGyver introduziu o disquinho de gelo na fenda do aparelho, ato que imediatamente provocou seu funcionamento.

            Foi uma descoberta e tanto, permitindo que nosso amigo passasse um fim de semana bem mais confortável e sem jejum. Mas, como sempre, as pessoas tendem a abusar das soluções fáceis. Aqueceu o quarto durante algumas semanas, sem gastar uma única moeda. Chegou a esquecer que ali, ao contrário do Ceará, o calor era pago.

            Até que a casa caiu. Um dia, ao chegar do trabalho, estava sendo esperado por dois funcionários da empresa que explorava os tais aquecedores. E uma viatura policial, com dois agentes, estava estacionada em frente, junto à calçada, como que aguardando uma decisão.

            — “Estou frito!” — deduziu o MacGyver. Mas a coisa não terminou tão drasticamente como ele imaginara.

            Um dos homens à paisana, muito seguro de si, não perdeu tempo com amabilidades. Sem sequer lhe apertar a mão, foi logo dizendo:

            — Nós sabemos que você está utilizando o aparelho... Não adianta negar... O que nós não sabemos é que técnica você usa. Já imaginamos tudo que é possível imaginar mas não conseguimos descobrir o artifício. Não há sinais de arrombamento ou coisa parecida... Trabalhamos no setor técnico da empresa e nosso papel é corrigir qualquer falha que permita aos usuários o uso de algum truque, como aquele que você está utilizando. Se você nos disser como consegue fazer a máquina funcionar sem usar moedas, não será preso. Somos engenheiros. Modificaremos o aparelho para que ninguém possa repetir a manobra. Se não quiser contar o segredo será detido agora mesmo e levado à Delegacia. O que decide?

            Não havia muito o que escolher. Revelou o truque, o que provocou uma expressão de espanto no técnico, que ficou de boca aberta.
                       O alemão cumpriu a promessa, não levando o assunto formalmente à esfera policial. Mas nosso amigo, por via das dúvidas, no dia seguinte mudou de pensão.

            Um outro fato que explica a origem de seu apelido ocorreu antes de sua ida à Alemanha.

            Um tio dele vinha se queixando de que os frequentadores de bares, perto de sua casa, costumavam à noite “aliviar os rins”, como se diz, num canto do muro, aproveitando a escuridão propiciada por algumas árvores.

            Ocorre que, se a bexiga dos bêbados ficava, com essa prática, aliviada, o mesmo não acontecia com as ventas do tio e muito menos com o da tia, mulherzinha nervosa, azeda, que não parava de infernizar o marido, exigindo que “tomasse logo alguma providência!”.

            Mas que providência tomar? Chamar a polícia? Colocar uma placa dizendo ingenuamente que “É proibido urinar neste local”?

            O MacGyver, ouvindo a queixa, saiu da sala para examinar a área — sempre fedorenta, porque não adiantava lavar semanalmente — e logo encontrou a solução: instalou, no dia seguinte, um fio elétrico, descascado, na junção das duas paredes — no “mictório” de fato, não de direito —, protegendo-o com uma tela, de um modo que não pudesse ser tocado por alguma criança.

            A invenção deu certo. Quando os “aliviadores” devolviam a cerveja metabolizada no cantinho eletrificado, a eletricidade chegava aos mal-educados através do jato, punindo o infrator com um inesquecível choque educativo, pois aplicado em região muito sensível. Como a corrente elétrica era de 110 volts, não havia perigo de morte, mas a “cadeira elétrica genital” fez com que o mau-cheiro local quase desaparecesse. E o tio, prudentemente, jamais disse às vítimas indignadas — ainda ficavam bravos, os porcalhões! — que o choque era proposital.

            Explicada a origem do apelido do MacGyver, cumpre esclarecer as circunstâncias de sua morte. Se não era irlandês, nem terrorista — pergunta-se —, como foi que morreu de uma explosão no ventre?

            Havia realmente — e dizemos isso com toda seriedade científica — um certo mistério biológico relacionado com o aparelho digestivo do nosso amigo, de saudosa memória. Aliás, fatos estranhos podem acontecer em qualquer parte do mundo. No Japão, por exemplo — deu no jornal —, um cidadão ficava literalmente de porre mal acabava de almoçar. E não bebia. Foi preciso uma cirurgia para curar a anomalia. O estômago desse japonês segregava uma química toda peculiar — uma enzima, talvez —, que transformava em álcool, em alguns minutos, os carboidratos ingeridos. Assim, uma simples porção de arroz, por exemplo, transformava-se no equivalente a vários copinhos de saquê. Enfim, o estômago do oriental era uma destilaria viva. Defeito que, felizmente, não pode nem deve ser reproduzido por via cirúrgica porque, caso contrário, não faltaria ansiosa clientela a implorar aos cirurgiões uma conversão estomacal, visando a “ficar igualzinha ao estômago do japonês”. Muita gente dispensaria a compra do saquê no bar da esquina, optando pela produção caseira. Economia até de garrafa e de copos.

            Mas o mistério biológico do MacGyver não estava no estômago propriamente. Estava mais em baixo, nos intestinos.

            Expliquemos sem rodeios: o MacGyver, assim como fermentava de inventividade na cabeça, borbulhava espantosamente na área intestinal — não sei se intestino grosso ou delgado. Algo impressionante, merecedor de monografia em Congresso de Gastroenterologia. Alguma coisa havia na flora — ou fauna, ou que melhor explique o diabo, porque aquilo não podia ser obra de Deus — dos seus tubos intestinais que fazia com que a produção de gases de nosso amigo fosse pelo menos cinco ou dez vezes superior à normal. Cinco ou dez é algo impreciso, reconheço. Mas tais coisas não se medem, apenas se sentem. E talvez houvesse algo genético nessa anomalia porque, não o pai, mas o avô dele era conhecido no sertão alagoano como “Coronel Ventania”. Cognome estranhável numa região conhecida pela suavidade de seu clima e seus ventos. E não se levante a hipótese de que o apelido poderia ter origem em um temperamento turbulento. Todos os que o conheceram afirmavam ser ele um velho sereno, acomodatício, amigo da leitura e que passava o dia sentado em alguma cadeira de balanço com assento de palha trançada, tinha que ser. E era especialmente preocupado com as vias respiratórias das pessoas que viviam sob o seu teto. Por causa disso, mantinha as janelas sempre abertas — dizia que era por causa do calor.

            Mas, dirá o leitor que gosta de exibir sua inteligência: — Tudo bem, mas “Maçarico” implica fogo. E onde está, no caso, o fogo do apelido?

            É um outro ponto em que, para explicar verdadeiramente, necessito ainda mais tolerância, ou até mesmo caridade do refinado leitor. Eu bem gostaria que nosso amigo se notabilizasse por uma outra característica excepcional qualquer, como por exemplo a memória. Ou mesmo algo corporal, como a força muscular. Ou até mesmo algo visceral, vá lá, como, por exemplo, a capacidade de beber muito sem ficar embriagado. Mas os caprichos da natureza são insondáveis e eu me vejo agora hesitante entre a elegância, a compostura, e a necessidade de relatar um fato da vida real que teve consequências na área médica e resultou em morte.

            Fosse ainda vivo o escritor Émile Zola, eu lhe pediria uma mãozinha para redigir o trecho que se segue, pois o velho mestre daria um jeito de conciliar tópicos “baixos” com a alta literatura. Para ele, realismo não era problema. Como não adianta sonhar e não seria justo deixar as coisas pelo meio, vejo-me obrigado a prosseguir sozinho, jurando de pés juntos que não se trata de apelação.

            No caso, a denominação “Maçarico” originou-se de uma infeliz brincadeira feita pelo MacGyver quando ele tinha uns quinze anos. Muito brincalhão, e querendo ganhar uns cobres, fez uma aposta de que “criaria” um jato de fogo igual ao de um maçarico” sem usar nada mais que um palito de fósforo. Seus colegas de escola — uma canalhada esperta que até se deu bem na vida, algo nada estranhável — disseram que aceitariam a aposta mas com a condição de que ele não poderia se limitar a encher a boca com alguma bebida alcoólica, devolvendo-a, em seguida, na chama. Isso seria um truque banal, muito comum em circos do interior.

            MacGyver aceitou a restrição. Acendeu o fósforo, ergueu uma perna e colocou a chama na posição adequada. O jato de fogo — um lança-chamas em miniatura — que emitiu foi de assustar, chamuscando os cabelos de uma mocinha que estava de costas, conversando com uma amiga. Todos esperavam que o dragão largasse fogo pela frente. Assim, ganhou a aposta, mas também um apelido pernicioso que sempre o embaraçava quando era indagado quanto à origem do apelido, “Maçarico”. Seus amigos, ex-colegas perdedores da aposta, gostavam de, em festas e reuniões sociais, induzir as moças a lhe perguntar a origem do apelido. E riam abertamente quando o MacGyver inventava uma mentira inocente para explicar tão estranha ventilação. As moças, vendo as risadas dos amigos, ficavam meio desconcertadas, não entendendo onde estaria a graça na explicação tão banal.

                        Dizem que o inventor nato tem uma mente toda especial. Ele não se interessa muito por saber como são as coisas. Quer saber é como alterar ou substituir essas coisas, de modo a se tornarem mais úteis ou interessantes. Veem sempre mais adiante, certa ou erradamente — alguns são meio amalucados —, e a todo momento nos impressionam pela visão antecipada que têm do mundo. É uma qualidade necessária para a evolução da humanidade, mas oferece também os seus perigos, como aconteceu com o MacGyver.

            Finalmente, o fato principal. Como se explica a explosão que arrebentou os intestinos de nosso pranteado amigo?

            Pode-se dizer que ele foi, paradoxalmente, uma vítima da tecnologia moderna. Se a técnica operatória estivesse mais atrasada, estaria vivo. Explico.

            Durante décadas, os pacientes foram operados com bisturis comuns, de aço, claro. Até que inventaram o tal do bisturi elétrico, que corta melhor e talvez tenha outras utilidades. Mas ele tem uma peculiar desvantagem: pode emitir uma minúscula faísca. MacGyver estava no hospital em razão de uma obstrução intestinal. Se qualquer obstrução normalmente provoca uma retenção de gases, imagine-se esse problema no caso especial do nosso amigo. Esses gases — metano? — são realmente explosivos, desde que surja mínima fagulha.

            Assim ocorreu a tragédia. A faísca do bisturi, no ventre gasificado do paciente explodiu no rosto do cirurgião e da moça que estava bem perto.

            E assim morreu bestamente meu interessante amigo, vítima da invenção de um colega inventor que, eletrificando o bisturi, jamais previu que poderia ferir ou matar um operado e seu cirurgião. E não sei se, afinal, o tumor que causava a obstrução era ou não maligno. A notícia que li no jornal — nem me lembro qual era —, não entrava em detalhes.

            Dirá o leitor mais sisudo que o escritor, eu, não se revelou tão amigo assim do seu amigo MacGyver pois, se o fosse, jamais colocaria no papel passagens tão grotescas.

            Respeito o enfoque, mas fico com a opinião oposta, do próprio morto. Quando em vida, sabendo de minha preferência para buscar na vida real a inspiração para minhas estórias, por duas vezes chegou a dizer que eu tinha plena liberdade para usar as passagens acima em um livro de ficção, desde que mantivesse no anonimato seu verdadeiro nome. Só não me autorizou o relato da explosão porque seria humanamente impossível prever tal coisa. Não sei se houve outros acidentes iguais, mas lembro-me perfeitamente que o jornal também informava que depois dele os hospitais, em casos iguais, de excesso de gases, passaram a aconselhar ou obrigar uso de bisturis não elétricos.

     O MacGyver cearense, quando morreu, não vivia mal, financeiramente, porque inventou e patenteou duas ou três invenções. Perdemos contato durante os últimos vinte anos. Se não tivesse morrido precocemente, teria resolvido vários problemas, porque sua imaginação não era normal. Se quisesse ser um escritor, enriqueceria nossa literatura. Mas nunca demonstrou interesse nesse sentido. Preferia inventar coisas e solucionar dificuldades.

Se existe um céu, o MacGyver deve estar lá, sugerindo alguns truques a São Pedro, ajudando-o a barrar a entrada de alguns pecadores disfarçados em santinhos.

      FIM 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br

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sábado, 14 de janeiro de 2023

GENTILEZA ANTIDROGAS

                      

Foto divulgação 

O narcotraficante, grau médio na hierarquia criminosa, bem-vestido, envolvente, esperto, de regular instrução, procura convencer a velha senhora, uma mulher alta, magra, visivelmente angustiada.

— Vamos logo, dona Genoveva! Decida-se! A senhora nunca mais vai ter uma oportunidade igual a essa!

Ela reluta, torcendo as mãos:

— E se a polícia me pegar? Não aguentarei a vergonha! Eu tenho netos, meu senhor... 

— Que a senhora tem neto, eu sei. Conheço um deles. Por isso estou aqui, para ajudá-lo... Mas quem disse que a senhora pode ser presa? As apreensões da “mercadoria” são raríssimas! Um quilo por tonelada. E não vá em conversa de jornal. Se a senhora soubesse como são as redações! Ninhos de fungadores! Todos eles “cheiram” para ficar mais inteligentes, faiscantes, escrevendo com mais nervo, mas alguns nem assim conseguem... Agora, para efeito externo, posam de grandes moralistas. Fique sossegada. Será apenas um passeio.

— Mas comigo pode dar azar! Nunca tive sorte em coisa alguma. Em toda a minha vida, já devo ter comprado umas quarentas rifas e jamais ganhei nem mesmo o prêmio de consolação. Pedacinhos de loteria, então!... No máximo, o valor do próprio bilhete. Se tivesse economizado meu dinheiro, teria agora uma geladeira nova e um forno de micro-ondas.

— Olha... eu não devia contar isso... mas, vá, lá, em confiança... — Fez uma pausa, como que hesitando em tomar uma decisão difícil. — Até agora, nada aconteceu com aquela senhora da esquina. Aquela, da casa bonita, do lado esquerdo. Há tempos que ela trabalha para nós, discretamente. Quem a senhora pensa que paga as viagens dela?

Ele sacava as mentiras conforme surgiam as resistências. Inventava tudo na hora, porque cada pessoa tinha um medo ou tentação diferente. Basicamente, tudo se resumia em falta de dinheiro e medo da prisão; mas havia muita variação quanto ao envoltório desses dois sentimentos. As hesitantes “mulas” velhas nunca eram iguais. Algumas se convenciam com um argumento. Outras, com outro. E na escolha do veneno específico, ele tinha boas antenas, sendo muito persuasivo. Mentia com facilidade, até mesmo com certa graça. Sabia, por experiência, que a virtude apoia-se em algumas estacas morais que podem ser removidas, uma a uma, com golpes nos pontos certos. Removidos os apoios, bastava um piparote para derrubar todo o edifício.

A velha espantou-se com a referência à mulher da esquina: — O quê?! A dona Heloísa? Aquela orgulhosa, dona da verdade, que me olha de cima? Não acredito!

— Ela mesma... — Sorriu, tranquilo, com a falsa verdade no olhar franco, pois era um artista. — Mas o que estou dizendo agora é estritamente confidencial. Se a senhora abrir o bico, mesmo para contar à melhor amiga, não garanto pela vida da senhora. Não por mim, claro, mas meu chefe não perdoa. 

Ela balançou a cabeça, espantada com a informação sobre a vizinha, mas de certa forma sentindo uma pontinha de satisfação. Afinal, encontrara um “podre” na “ricona”, toda superior. Saberia como lhe devolver o olhar, na próxima vez em que se cruzassem na calçada. 

— Quem diria... A dona Heloísa... Minha filha disse que ela parece um bispo de peruca... Toda cheia de dignidade... 

— E sou capaz de apostar que a senhora conhece mais duas pessoas insuspeitas aqui no bairro que, de vez em quando, fazem alguns servicinhos para nós. Só que não posso revelar nomes. Por isso não vejo razão para tanto medo. A gente tem que reagir contra a própria covardia. Todos nós somos um pouco covardes, mas é nossa obrigação lutar contra sentimentos inferiores.

— Mas não é só medo... É saber que estou fazendo uma coisa errada, criminosa... 

Ele a interrompeu:

— Criminosa... Formalmente, pode ser, porque está na lei. Mas errada, não! A senhora já ouviu falar de Freud, Einstein, Salvador Dali, aquele pintor aloucado de bigodes retorcidos e outros homens famosos? Todos eles eram exímios cheiradores. Sem a coca não teriam brilhado, aparecido. Ao que dizem, o descobridor da penicilina também consumia. Moderadamente, como deve ser. O mal está no excesso, não no uso. Daqui a algumas décadas, os cientistas vão dizer que o uso do pó branco foi um grande avanço da humanidade. Um cientista já escreveu que, sem a coca, não existiriam os computadores.

— O senhor falou no Flemming, aquele que inventou a penicilina? Nunca soube disso!

— Fica sabendo agora. São coisas que os governos mantêm em segredo. Porque, infelizmente, muita gente exagera. E aí faz mal. Controlando, só estimula o cérebro. A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.  É o mesmo que comer, tomar remédio, etc. Coma muita feijoada e a senhora vai passar mal — sorriu. — Mas, como é, vai ou não vai fazer essa viagem pra gente?

— Ainda não sei... 

Ele fez um gesto de impaciência. Erguendo mais a voz, pressionou: — Sejamos práticos: teu neto, como a senhora sabe, vai ser preso, se não devolver o dinheiro do banco onde trabalhava. O banco está até fazendo um favor, não levando o caso à polícia. Se, na hora do desfalque, tinha ou não a intenção de devolver, isso não tem a mínima importância legal. Desfalque é desfalque. Apropriação indébita, um crime muito sério. Se não estou enganado, é crime hediondo. Vai ter que cumprir a pena inteirinha. E vocês não têm de onde tirar essa quantia. A pensão da senhora é uma piada. O governo está pouco ligando, tanto pra senhora quanto pro teu neto. Ele vai ser preso, preso! se não devolver a grana! E a senhora aí, indecisa, rejeitando ganhar uma bolada no mole, sem qualquer risco!

— Como sem qualquer risco? Posso ser presa!

Ele pareceu hesitar, como se novamente em dúvida se deveria revelar mais um segredo da organização. Após pequena pausa, decidiu largar a melhor mentira de seu estoque. Mas fez antes um pouco mais de teatrinho:

— ... Estou me desmoralizando — disse, balançando a cabeça. — Falo coisas que nunca deveria falar...Mas vá lá: no aeroporto onde a senhora vai desembarcar, todos os policiais são gente nossa... Eles não vão nem chegar perto da senhora. Já estão sabendo de tudo. Vão ficar de longe, até mesmo dando uma cobertura disfarçada. 

Ela ainda relutava:

— O senhor talvez não acredite, mas nunca fiz coisas erradas. Meu único defeito foi ser um pouco preguiçosa e, desorganizada. Mas nunca traí meu marido, nem mesmo em pensamento... Como é que, agora, com setenta e três anos, vou virar traficante de cocaína?! Vou ser “mula”! Até o nome é feio!

Ele já estava perdendo a paciência:

— Mulher burra, medrosa! Desculpe a franqueza! Este é um momento de emergência para a senhora, não para nós! Nós a procuramos porque soubemos da situação do seu neto e porque a senhora tem um porte e rosto distintos, respeitáveis. Mas não se esqueça que existem centenas, milhares de mulheres necessitadas e com boa aparência! Afinal, a senhora não liga pro rapaz? Que tipo de avó insensível é a senhora? Aqueles banqueiros pilantras, encharcados de uísque e amantes, ganhando rios de dinheiro sem risco — porque o Governo os garante nas crises —, bem que poderiam perdoar o pequeno desfalque. Mas isso nunca! O dinheiro deles é sagrado! Só o deles! Não passam de agiotas legalizados. Vão levar o caso à polícia, jogar teu neto numa cela cheia de tarados. A senhora já viu, já esteve dentro de uma cela? Aquilo é um viveiro de piranhas. Por acaso, não sabe o que um rapaz bonito como ele pode passar numa cela superlotada? Pretos, brancos, mulatos, todos avançando, excitados. Sairá no mínimo aidético!

A visão do neto sendo violentado na cela a fez decidir-se:

— Para! Cala a boca, por favor! Não me martirize... Está bem, aceito, mas com uma condição.

— Qual?

— Que seja uma única vez. Ouço falar que quem entra no tráfico não consegue sair. Faço uma única vez. Não quero morrer com esse peso na consciência.

— Quanto a isso, não tenha medo... A própria idade da senhora já é sua proteção. E nada vai conhecer sobre nossa organização. Sabe apenas que foi procurada por um homem, cujo verdadeiro nome nunca conhecerá. Assim, não nos oferece perigo. A senhora nem pode dizer que “saiu” da organização, porque sequer nela “entrou”. Entregue a mercadoria, a senhora receberá no ato o seu dinheiro, salva o neto e nunca mais nos veremos. E volta pro Brasil no dia seguinte porque a passagem é de ida e volta. Se, por acaso, um dia, me vir na rua, finja que não me conhece porque vou fazer o mesmo. Agora, preste atenção ao que vou dizer. Saindo do aeroporto, a senhora vai encontrar uma mulher de casaco verde segurando um papelão com o nome da senhora — E deu uma série de instruções. 

Alguns dias depois, munida de passaporte, a velha estava sentada dentro de um avião com destino a Portugal, suando frio em razão da tensão e quente em consequência da temperatura propriamente dita. Sentia-se abafada naquele casaco, que não podia tirar por causa dos inúmeros saquinhos de cocaína presos em volta do tronco. À aeromoça, que lhe sugeriu tirar o casaco, explicou que estava muito gripada. 

Logo após a decolagem, começou a orar em pensamento, alternando rezas e pedidos. Rogava duas coisas: primeiro, que o avião não caísse; segundo, que tudo desse certo. No meio de uma “Ave-Maria”, lembrou-se que o segundo pedido, se atendido, transformaria o Criador em cúmplice do narcotráfico. Aí parou a reza, explicando a seu Deus, mais uma vez, que fazia aquilo, não por egoísmo, mas por amor ao neto. Sua filha, a mãe do rapaz, era uma coitada, largada do marido, que mal conseguia arranjar comida para o dia seguinte. O pai estava sumido há anos. Deus, que tudo sabe, leria dentro de seu coração e a perdoaria por essa viagem horrível. Tinha certeza disso. Por que seria gravemente punida por um único erro, cometido para salvar um neto? Deus não seria jamais injusto. Via mais longe que qualquer juiz de carne e osso. Um pecado, sim, mas para salvar um corpo e uma alma. Na verdade, uma vida. 

Desceu do avião sem incidentes. — “Daqui a uma hora, estarei livre!”, pensava, quase aliviada. — “O homem garantiu que nenhum policial ia me abordar”.

Não gostou quando se deparou com uma grande fila à sua frente. As pessoas teriam que mostrar seus passaportes. Ao que presumia, seu documento, providenciado pelo traficante, deveria estar na mais perfeita ordem. Eles não seriam tão estúpidos de falhar no detalhe. O desagradável era a tensão da espera. Havia muitas pessoas à sua frente.

Nesse momento, dois policiais à paisana, mas com distintivos bem visíveis no paletó, conversavam a uma certa distância. Nada desconfiavam. Um deles acabara de contar uma anedota a respeito de sogras. O outro, mais velho, precocemente calvo, disse que não compreendia essa prevenção dos humoristas porque jamais conhecera mulher mais generosa e distinta que sua sogra, falecida uma semana antes.

Mal ele disse isso, seus olhos avistaram aquela senhora alta, pálida, de feições cansadas que, na fila dos passageiros chegados do Brasil, parecia sofrer mais que os outros pela demora.

— Está vendo aquela velha? Aquela meio barriguda, de casaco cinza, atrás do japonês? É parecidíssima com minha falecida sogra. Tem, como ela, a retidão no semblante... 

— Ela parece doente... 

— Deve estar exausta... Sabe de uma coisa? Vou resgatar, por via indireta, uma dívida moral que tenho com dona Lourdes — era o nome da falecida. — Fui um pouco impaciente com ela nos dias que antecederam o derrame que a matou. Vou fazer essa velha passar na frente de todo mundo. 

— O pessoal pode estrilar... Há outras velhas também esperando... 

— Eu disfarço... Pode vir comigo? — E os dois caminharam na direção da tensa senhora, que, vendo-os aproximar-se, sentiu crescer o medo.

— Somos da Polícia... — disse o agente calvo. — A senhora quer nos acompanhar?... — E, dizendo isso, segurou no braço da velha, uma forma de lhe dar apoio, retirando-a da fila. 

Mal deram uns dez passos, a velha, apavorada, tremendo, gaguejou:

— Olha, quem me mandou foi o senhor Oliveira... O senhor sabe... 

— Sei o quê?

— Ele me disse que... me disse que tinha uma mulher me esperando lá fora... Que nada aconteceria... Que estava tudo combinado... 

— Combinado?! A senhora vai contar essa estória direitinho... 

Aí, o salão todo, com pessoas, malas, poltronas e letreiros, começou a girar vertiginosamente na cabeça da pobre mulher. Ao turbilhão seguiu-se a perda da consciência.

Pouco depois ela acordou numa sala do próprio aeroporto. Estava sem o casaco. Os saquinhos de cocaína haviam sido agrupados em cima de uma mesa para serem fotografados. Agentes policiais tomavam notas e um médico recomendava algum cuidado com a angustiada porque havia o perigo de um infarto.

No fim do dia, a velha foi ouvida no flagrante. Narrou os fatos conforme descritos acima.

Os dois policiais que a retiraram da fila, ao se despedirem, porque findara o turno de trabalho, conversavam a respeito da apreensão da droga. O calvo, não obstante o casual sucesso funcional, parecia aborrecido:

— Eu deveria estar feliz porque peguei uma traficante... Mas não estou!... Acredito piamente no que ela disse... Foi a primeira vez... Uma mulher escolada não se denunciaria tão depressa. Eu só queria ajudar... Agora vão ser duas gerações em cana: a avó e o neto.

— Foi bancar o bom samaritano das velhinhas e se deu mal... — brincou, irônico, seu colega, policial bem mais endurecido.

— Não fosse a sua piada sobre sogras, eu não teria me lembrado da minha. Não teria pensado em ajudar... Para você ver o peso acidental das palavras em determinados momentos... Mas, eu me pergunto: se tudo tivesse dado certo, será que ela não faria isso de novo? Nunca vi ninguém chorando, arrependido, quando o crime foi bem-sucedido. 

Esse pensamento o tranquilizou, parcialmente. Afinal, os policiais são seres humanos. Precisam também de apoio para continuar nas suas funções, mas essa teorização não conseguia sossegar a sua alma. A seu julgamento, a velha era sincera, não voltaria a fazer esses transportes. Que pelo menos cumprisse prisão domiciliar. Se fosse intimado para depor, diria ao delegado e ao juiz que estava convencido da boa índole da idosa que apenas tentava salvar um neto.

          FIM

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

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