Leitura, problemas e um assunto indigesto que se intrometeu.
Para pessoas de regular instrução, quando curiosas — segundo psicólogos, indício de inteligência —, a vantagem máxima da aposentadoria — quando razoável, dispensando a necessidade de novamente trabalhar —, estaria no maior tempo disponível à leitura instrutiva e reflexiva. Além do prazer, em si, de conhecer o que se ignorava, dessas leituras podem surgir novos enfoques, resultantes da conexão da experiência de vida com as velozes novidades do mundo atual. Uma “liga” sempre útil porque a civilização resume-se a um encadeamento progressivo de idéias com raros “saltos qualitativos”, bruscos, revolucionários, não necessariamente políticos.
Lamentavelmente, não é isso que ocorre — o interesse pela leitura instrutiva —, apesar de existir um impressionante universo de conhecimentos ao alcance de todos, via imprensa e internet.
Conversando com alguns idosos que conseguiram dominar o “pavor do computador” — inacreditavelmente, alguns, até bem inteligentes, temiam “não conseguir aprender”... —, constatei que muitos deles empregam seu vasto tempo livre em joguinhos eletrônicos, leitura de fofocas políticas — se em poucas linhas... — e assuntos de baixo nível de dificuldade. Não querem mais “quebrar a cabeça”.
“Meu tempo já passou...”, dizem, erroneamente, porque até o momento da morte sempre pode-se extrair algo útil desse milagre biológico chamado cérebro humano — desde que utilizada a técnica adequada. Ocupam-se, tais idosos, em buscar netos nas escolas, viajar em grupo, aprender a dançar tango, com vigorosas piruetas e trançados de perna — de preferência com jovens argentinas — e, uns poucos deles, experimentar pílulas capazes de proporcionar algum vigor — mais farmacêutico que natural —, em áreas ligadas a um romantismo tardio. — “Um coicezinho final antes de esticar as canelas”, dizem alguns, com olhos tristes, carregados de dúvidas ou culpas; outros, com uma piscadinha matreira de malandro improvisado.
Nada a estranhar, sob o ângulo apenas biológico, quanto ao desejo de usufruir, na velhice, aquilo que gostariam de ter feito, mas não fizeram quando moços, pressionados pela moral, pela lei, pelo medo do — quem sabe? —, castigo divino. Medo, principalmente, do fuxico da vizinhança, do rancor dos filhos, das novas despesas com mulher bem mais jovem ou das doenças relacionadas com o amor pago por tarefa. Medo ainda, real, poderoso e algo contraditório, de magoar a antiga e honrada companheira que — ele reconhece —, bem que mereceria um marido cem por cento, o que não foi o seu caso.
O temido “comportamento ridículo” — como todos os juízos, sempre fáceis, sobre a conduta alheia —, deve ser encarado com compreensão quando tal comportamento não implica — o que é raro —, em grande sofrimento de terceiros. Geralmente “terceiras”, as esposas, ou companheiras, angustiadas com a conclusão de que “Meu marido endoidou! Que devo fazer? Temo a solidão mas minhas amigas exigem uma atitude!”
Do lado do marido, sua mente ensaia técnicas de defesas, inclusive chicanas, no tribunal da consciência: — “Para mim, não é nada ridículo. Sei o que digo! Há anos! Até agora só vivi para os outros! Afinal, o impulso de preencher uma omissão na área instintiva é fenômeno não só humano, como de todo o reino animal. E tenho também meu lado animal, confesso, infelizmente. Se há tanto empenho em proteger os “animais”, por que nenhuma ONG me protege? A “quota” de instintos, com que todos nascemos, cobra “seus direitos de expressão”, que considera imprescritíveis — essa terminologia mental ocorre apenas nas mentes jurídicas —, não importa a cor dos meus cabelos e a curvatura da minha coluna”.
Quanto à psicologia das mulheres, na mesma faixa etária, convém não arriscar conjeturas sobre o que se passa no cérebro delas. É uma alvoroçada assembléia de opiniões gritadas com voz aguda. Não há dúvida, porém, que elas, de modo geral, são mais resignadas com o que lhes reservou o destino, mesmo pouco recompensador — considerando o trabalho delas dentro e fora do lar. Suportam mais as decepções da convivência. Enterraram, quase totalmente, os românticos “sonhos loucos” da mocidade. Pensam só nos filhos e netos. Tornaram-se zelosas guardiãs da família. Acostumaram-se com o peso da cruz. Se a cruz sofrer um enfarte, podem até sentir alguma falta do lenho. Querem apenas morrer com a consciência em paz. Geralmente acreditam em outra vida, com, talvez — “quem me dera!” — alguma recompensa pelas suas renúncias silenciosas. — “Não é possível que eu não encontre justiça, nem mesmo depois de morta!”
Como conciliar a satisfação de tais “quotas” instintivas masculinas, e talvez femininas, com regras legais e morais é o grande problema que só será resolvido daqui a várias décadas, quando religiões, ciência e lei chegarem a um acordo — realista — de cavalheiros. Isso acontecerá, inevitavelmente, porque a humanidade sempre lutou contra a sensação de dor. Toda dor, física ou moral. A dor física, aguda, só pelo fato de ser insuportável, já foi dominada pela medicina. A dor moral da frustração, mais apaziguável, ainda não. E fujamos do perigoso assunto porque vejo no horizonte a formação de nuvens ameaçadoras que lembram vultos femininos portando formas cilíndricas, parecidas com rolos de macarrão. Esse inocente instrumento de cozinha foi, em passado não distante, poderoso amaciador de massas cerebrais masculinas, propensas às milenárias fraquezas e filosofias que as justificassem.
Incidentemente, ocorre-me a idéia — mera desconfiança, certamente caluniosa — de que o Islamismo, permitindo a poligamia, em variados graus no número de esposas, incentivará adesões masculinas, em todo o planeta, inclusive no mundo ocidental. A mera possibilidade de conciliar, sem o menor drama moral, a religião com a moral e com o instinto natural da poligamia, funcionará como um incentivo, um “bonus” para conversões. Obviamente, nenhum candidato ao islamismo mencionará que esse “estímulo” pesou na decisão, mas se Freud fosse vivo, e consultado a respeito, certamente diria que o subconsciente deve ter feito o seu trabalhinho.
Por outro lado, havendo grande difusão da instrução e informação nos países islâmicos, não só árabes — via internet e imprensa livre — a idéia da monogamia ganhará progressivo espaço. Conseqüência do esforço das mulheres locais, que aspiram à maior dignidade e raramente são livres do instinto do ciúme. Já que falamos em instinto, frise-se que as leoas do grupo, na savana, mordem leoas estranhas que se aproximam do leão ainda em condições de lutar e procriar. Não admitem nem a troca de rugidos cerimoniosos. Se vier a prevalecer apenas a racionalidade, a monogamia legal, mais democrática, triunfará em todo o planeta, com a mera consideração de que há um quase empate estatístico no nascimento de homens e mulheres. Como, entretanto, o homem tão cedo não mudará sua natureza, a poligamia continuará presente, embora residual, sorrateira, como ocorre com crimes e contravenções. Gostaria de estar entre os vivos daqui a cem anos, para saber como a civilização — se ainda não incinerada ou “radioativada” — resolveu o problema.
(As óbvias considerações acima entraram no texto sem serem convidadas mas não foram expulsas porque podem interessar a algumas pessoas com “parentes distantes” às voltas com problemas desse tipo).
Voltando ao tema central. Por que as pessoas não se interessam tanto pela leitura dos assuntos mais complexos e fascinantes? Afinal, a admiração dos ouvintes, em reuniões sociais, ouvindo o sabichão, compensaria o esforço de muitas horas lendo temas áridos. Moças belas, ainda sem dono definitivo, quando não preocupadas com o futuro financeiro imediato, ouvem com interesse o tipo insignificante, de óculos, que desperta admiração pelo que sabe com tanta segurança. Refletem: — “Esse caretinha pode ter um futuro promissor...”
A meu ver, o desinteresse pela leitura origina-se mais de uma deficiente técnica de movimentar os olhos, no ato de ler, do que de uma deficiência de inteligência. Assim como há variados tipos de artes marciais, há, também, variadas técnicas visuais e mentais na “briga” pela compreensão dos textos mais difíceis, extraindo deles o que neles se contem; tanto na superfície como “lá no fundo”, na real intenção do autor. Às vezes, ressalve-se, nessas “profundidades”, não há nada de útil. Apenas pose intelectual ou obscuridade proposital.
O pensamento enigmático, enevoado, mas em roupagem brilhante, seduz mais que o pensamento claro, terra-a-terra. Isso porque o leitor acaba preenchendo as abstrações vagas, ocas, com sentimentos e pensamentos próprios, sempre merecedores de auto-aprovação, é evidente. Só mergulhando e dissecando o material é que é possível concluir, em certa medida, se há, ou não, fraude na obscuridade. O médico e escritor Dráuzio Varella, em uma crônica, “Acontecimentos inesquecíveis”, disse que em um congresso a que compareceu, em Baltimore, USA, em 2001, com cerca de 500 pesquisadores, o coordenador, Dr. Robert Gallo, concedia apenas quinze minutos, prorrogáveis por mais cinco, para o especialista expor sua descoberta. Dizia que “quem não consegue explicar, em quinze minutos, o que faz é porque não sabe direito o que está fazendo”.
Para adquirir o hábito prazeroso da leitura não basta ser alfabetizado. Nem mesmo ter freqüentado escolas por vários anos. Qual a origem dessa rejeição à leitura, principalmente em jovens de inteligência mediana e que lucrariam com a aquisição de novos conhecimentos?
A explicação, mais freqüente, está na existência de algum problema neurológico ou visual.Quando a mídia insiste em nos lembrar que alto percentual de alfabetizados não consegue compreender o que leu, os tais “analfabetos funcionais”, a solução proposta, usualmente — muito superficial — estaria na construção de grande número de bibliotecas públicas. Ora! Se o jovem não consegue, no recesso de seu quarto, longe de intervenções, compreender bem o que lê, por que passaria a compreender os textos dentro de uma biblioteca, próximo a pessoas cuja mera presença provoca distrações?
As bibliotecas públicas atualmente só servem para aquela minoria feliz que não tem “problemas de leitura”; ou que descobriu, geralmente por conta própria, como contorna-los. Antes de se pensar apenas em bibliotecas, ou doações de livros, será preciso investigar melhor porque jovens e adultos, até bem alertas — ou “espertinhos” — detestam ler. Uma prova de que há algo de errado com a técnica de ler está no fato de muitos alunos de baixo rendimento escolar conseguirem se destacar, quando adultos, até mesmo em atividades intelectualizadas. Muitas biografias de pessoas que adquiriram notoriedade no comércio, na política, no jornalismo, nas ciências e mesmo nas letras, comprovam que, não raramente, “os últimos serão os primeiros”. Conheci um cidadão que passou seis anos no primeiro ano primário, acabou desistindo de escolas mas tornou-se um hábil construtor de casas e depois empresário. Para ele, ler era “uma tortura!” De “burro” ele não tinha nada.
A solução para a questão do “analfabetismo funcional” é a seguinte: verificando, a professora, que o aluno, apesar de não ter graves problemas de saúde e familiares, não consegue assimilar o que lê, deve chamá-lo, educadamente, para uma conversa amigável com um profissional especializado.
Para começar, um exame de vista. Para ser bom aluno, ambos os olhos devem funcionar bem, embora com a ajuda de óculos. Como mero exemplo, cito meu caso. Fui um aluno bem medíocre, antes de entrar na universidade. Raramente fazia lição de casa e também não estudava as lições. Apesar de não me considerar intelectualmente abaixo da média, não conseguia, satisfatoriamente, prestar atenção ao material impresso, não obstante sentir curiosidade pelas idéias de grandes pensadores.
Só fui bom aluno na Faculdade de Direito. Isso porque tive que inventar um método próprio de leitura. Concretamente, uma forma de movimentar os olhos no ato de ler. Só muito mais tarde, fazendo um exame de vista, com medição da pressão intra-ocular e do campo visual, fiquei sabendo que meu nervo ótico do olho direito é deficitário, talvez conseqüência de um glaucoma até então desconhecido. Na vista direita, palavras com letras pequenas ficam embaçadas, mesmo usando lentes corretivas. Como as duas vistas trabalham em cooperação —, embora com ligeira preponderância de uma delas —, o fato é que na leitura de uma linha começo entendendo bem — porque lemos da esquerda para a direita. Porém, quando o olho esquerdo “passa o bastão”, na maratona da leitura, para o olho direito, o olho fraco, direito, enxerga meio “borrado”, dificultando a compreensão do período. Aí, o leitor pensa que seu problema é de compreensão, quando é apenas de visão. O resultado é o desinteresse geral pela leitura. Algo assim como ouvir mal, perdendo várias palavras, o que diz um conferencista.
A solução que encontrei foi providenciar uma técnica própria de ler: dou uma boa “espiada”, sem ler, principalmente no lado direito do parágrafo e só depois começo a ler. Se a coisa se complica, repito a operação. O único inconveniente é que essa técnica, embora permita compreender muito bem o texto, ocasiona uma certa demora. Se eu lesse livros em árabe, penso que meu problema de velocidade seria menor, porque textos em árabe são escritos da direita para a esquerda. Eu avançaria mais depressa porque “a estrada textual à frente” estaria bem clara. Não sei se a “técnica” acima, da mera “espiada” antes de ler, serviria também para pessoas com as duas vistas em perfeitas condições, com ou sem óculos.
Trata-se, aqui, de mero exemplo individual a demonstrar que os pais que se revoltam com a falta de dedicação do filho aos estudos precisam, antes de pensar em castigo e recriminações, verificar se o menino não tem algum problema de vista — em ambos os olhos — ou de audição, procurando corrigi-lo. Não basta constatar que o menino não é cego nem surdo. E convém, também, verificar se o jovem tem alguma deficiência endócrina, principalmente o hipotiroidismo. Testes de inteligência podem ser prejudicados, na sua exatidão, por problemas visuais, porque o tempo para as respostas é muito valorizado, nesses exames, e para ler depressa as perguntas é preciso vista boa. Finalmente, não se alegue que pessoas cegas de um olho lêem bem. Isso ocorre porque a cegueira total de um olho força o outro a dobrar sua eficiência. Analogicamente, em uma sociedade comercial, é melhor não ter sócio algum do que ter um sócio incompetente, que não vê claramente os problemas da firma.
Peço desculpas ao leitor por esta anômala excursão de leigo em assunto oftálmico e pedagógico. É que a maior parte do saber entra pelos olhos e ouvidos. Corrigir, ou contornar, problemas dos órgãos do sentido pode melhorar muito o futuro de um filho, ou filha, que no momento o decepciona. Quis apenas ajudar, com o relato acima, pode crer.
Em outro artigo falarei sobre o ato de escrever, assunto muito mais interessante, assim espero. Prometo não falar em olho.
(14-4-2011)
sexta-feira, 15 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
“Castelo de Areia”: indignação e tristeza
A notícia da anulação das provas obtidas na “Operação Castelo de Areia” teve lúgubre repercussão no mundo jurídico e não-jurídico. Foi uma decepção, não só para o desprezado “povão” (que não tem cultura jurídica mas sobra-lhe senso comum) como também para os operadores do direito não vinculados — por amizade, profissão, ou outros interesses —, aos acusados beneficiados com a decisão.
Para início de conversa, é generalização errônea dizer que “o STJ” – Superior Tribunal de Justiça “anulou as provas”, como seria o caso todo o Tribunal, ou sua maioria, adotar a discutível fundamentação da anulação em exame. O STJ tem 28 juízes titulares. Do julgamento do “habeas corpus” participaram apenas dois Ministros efetivos do Tribunal, a Relatora do acórdão, Min. Maria Thereza de Assis Moura (favorável à anulação) e o Min. Og Fernandes, (que votou contra a anulação). Um empate, portanto, entre os dois integrantes efetivos. Os dois votos restantes, favoráveis à anulação, vieram de magistrados de fora, convocados, um do Tribunal de Justiça de São Paulo e outro do Tribunal de Justiça do Ceará.
Em suma, até agora sabe-se, comprovadamente, que apenas 1/28 dos juízes do STJ adota o discutível entendimento que serviu de fundamentação para a rejeição de dois anos de exaustiva investigação da Polícia Federal. Não há, portanto, por enquanto, como censurar o “STJ” pela decisão. Não se sabe qual é a opinião dos restantes 27 Ministros efetivos.
Pela leitura das transcrições de depoimentos de advogados e entrevistas dos juízes que participaram do julgamento, o volumoso conjunto probatório foi anulado porque as investigações teriam duas supostas “máculas’: denúncia anônima e delação premiada. Dois bons pretextos (na verdade maus) para evitar que pessoas de alto gabarito — talvez até mesmo íntegras nos demais aspectos de suas vidas —, cumpram penas nas desumanas cadeias brasileiras, “incompatíveis’ com o status dos denunciados . Se foi o coração, a solidariedade humana, que motivou a concessão do habeas corpus, a saída mais honrosa seria outra, como diremos no final deste artigo.
A denúncia anônima, não obstante sua desfavorável impressão verbal, vem sendo progressivamente aceita em todos os países civilizados. É que, sem ela a sociedade ficaria praticamente indefesa. Somente pessoas com tendências suicidas atrevem-se hoje a acusar — e assinar em cima — a existência de crimes graves cometidos por pessoas poderosas, econômica e/ou politicamente. O risco pessoal — até mesmo de vida — passa a rondar o dia-a-dia do denunciante. Um “misterioso assaltante” pode excluí-lo do rol dos vivos. Mesmo não se chegando a esse extremo, o denunciante terá sua vida sutilmente infernizada. E não me venham argumentar com o serviço de proteção às testemunhas porque ninguém quer viver escondido, trocando de nome e endereço, só porque quis colaborar com a justiça.
O crime organizado tornou-se tão merecedor do nome que frequentemente até mesmo promotores de justiça se vêm ameaçados em suas vidas quando participam de investigações ou denunciam criminosos especialmente perigosos. Nesses casos, a Procuradoria Geral do Ministério Público local forma “grupos de atuação”, desestimulando os investigados a cumprir suas ameaças de morte, transmitidas por telefone. Com a formação desse “grupos” o perigoso suspeito fica sabendo que terá de matar, não apenas um, mas vários Promotores de Justiça. Tarefa muito complicada, só seriamente cogitada por “semi-deuses” do crime, como um Pablo Escobar, quando no auge de seu poder na Colômbia. Como, portanto, exigir, de simples cidadãos desprotegidos, a obrigação de assinar suas delações? O que importa é saber se a denúncia foi verdadeira. Mesmo na denúncia anônima há um perigo latente, porque o denunciado, muitas vezes, tem como saber quem o denunciou, perguntando-se: “Quem poderia saber desses detalhes?” A lista de suspeitos não seria tão extensa.
Recebida uma denúncia anônima, notadamente contra pessoas ou firmas de nome, a polícia não abre, automaticamente, um inquérito policial, manchando, precipitadamente a reputação — a mídia está sempre à procura de escândalos — de pessoas que podem ser apenas a vítima de uma calúnia. Delegados não mais agem dessa maneira, e não é só por considerações morais. É porque sabem que se ela for precipitada, competentes advogados do suspeito infernizarão suas vidas funcionais. O que a polícia, no caso a Federal, faz é iniciar uma investigação sigilosa para ver se a denúncia anônima tem alguma procedência. Não teria cabimento — formulo aqui um exemplo exagerado —, a polícia enviar para a cesta de lixo a denúncia anônima de que Fulano de Tal, dono de um império industrial, matou e enterrou, em seu sítio, perto de uma mangueira, sua bela secretária, dada como desaparecida misteriosamente há um mês. Seria uma falta de dever funcional, além de covardia, a polícia se abster de ir ao local indicado e cavar o solo no trecho com mais aparência de abrigar um corpo. Constatado o cadáver da secretária, ou até mesmo o de outras pessoas, não teria sentido a polícia ignorar o lúgubre achado porque a denúncia foi anônima e porque o suspeito é homem poderoso. Como já disse antes, em outro artigo, não cabe, no caso, a distinção entre “cadáveres de fato e cadáveres de direito”. Cadáver, com marca de violência, é sempre um cadáver, um caso a ser investigado.
Na operação “Castelo de Areia” a polícia, após investigações preliminares, sigilosas, solicitou escuta telefônica a um juiz de direito, que a concedeu. Depois disso, a Polícia Federal ampliou a investigação, inclusive com laudos periciais e acesso a mensagens. Colhida abundante prova, o material foi entregue ao órgão da acusação pública, sendo oferecida a denúncia. Caberia à defesa, no decorrer do processo criminal — e só lá —, anular, com contra-prova ou análises persuasivas do material probatório, a inocência do réu. Não, comodamente, alegar, genericamente, que toda a prova colhida nada vale porque originou-se, inicialmente, de uma denúncia anônima. A denúncia pode ter sido anônima, mas se os fatos apurados são verdadeiros, é isso que importa. O denunciante merece aplausos. Contribuiu para o bem comum.
Acho graça quando alguns defensores da nulidade total das provas (nulidade antes de qualquer julgamento formal) argumentam que o juiz — que concedeu os grampos telefônicos — agiu mal, ao deferir as escutas, porque deveria só deferi-las depois de apresentadas provas, completas e inegáveis, da existência de crimes. Se a Polícia Federal já dispunha de todas as provas não seria necessário pedir mais nada ao juiz.
Quanto à delação premiada, trata-se de outro instrumento legal necessário no combate ao crime, já aceito por todo país realmente interessado em combater infrações praticadas por organizações. Certos segredos, só quem pode bem informar é quem delas participou. A delação premiada não vale apenas para associações exclusivamente criminosas, como a Máfia ou a Yakuza japonesa. Serve também como ajuda na investigações de práticas ilegais de organizações úteis e necessárias aos países, como é o caso das empreiteiras. Se postos de gasolina, tão necessárias e úteis, resolvem inventar um esquema de adulteração de combustível, ou uma técnica de sonegação de tributos, não será a utilidade do serviço que impedirá a vigilância da lei e punição de culpados. E não basta, para a condenação de alguém, o delator dizer, simplesmente, numa investigação séria, que “Fulano de Tal cometeu um crime”. Os fatos criminosos apontados são, presume-se, investigados, para confirmação. A delação é analisada para exame de sua procedência. Isolada, sem prova complementar, certamente será descartada quando do julgamento. Nenhum magistrado, em seu juízo perfeito, vai condenar um réu porque alguém jurou de pés juntos que o acusado cometeu um crime, sem qualquer prova complementar. Assim como ocorre com a denúncia anônima, o que vale é saber, bem apurados os fatos, se o delator disse ou não a verdade. E em dúbio pró réu.
Outro equívoco muito comum, apresentado como sério, é dizer que a polícia e os juizes que deferem escutas têm que ser isentos, privados do senso natural de justiça. A polícia existe para investigar e se, investigando, concluiu que um indivíduo é culpado, nada mais normal que aprimore a investigação. Mesmo porque a polícia não condena ninguém, tarefa específica do Judiciário. Se um juiz conclui, intimamente, que determinado suspeito é realmente culpado dos crimes de que é acusado, não será essa convicção que o obrigará a se dar por suspeito, afastando-se do processo. O que tem a fazer é apurar ainda mais os fatos, sem adulterá-los. Se está sob julgamento um caso de massacre de velhinhos, com abundante prova de culpa, não tem sentido o réu alegar suspeição do juiz porque o crime é tão repelente que qualquer pessoa normal ficaria propenso a condenar. A se pensar dessa forma, em casos escabrosos seria precisa convocar, em manicômios, pessoas completamente apáticas para julgar o caso. O que interessa, repita-se, é saber se há, ou não, nos autos, prova para condenar.
Acredito que uma reflexão dormita na cabeça de alguns empresários, bem realistas e conhecedores dos meandros dos grandes negócios, no Brasil e no mundo: — “Vamos passar uma borracha! Apagar essa mancha contra uma empreiteira competente que já fez grandes obras, e nos prestigia no Exterior. Se houve um erro — e não nos interessa saber se houve ou não —, esse erro era e é uma prática bem usual no setor de construção de obras públicas. Por que punir apenas uma determinada empreiteira? Se é prática, até mundial, as empreiteiras se reunirem em um recinto para escolher quem vai ser o vencedor de determinada licitação, e usar outros truques, por que punir os executivos de apenas uma delas, transformados em “boi de piranha”? Além do mais, há a atenuante de que nossa legislação tributária é injusta, pesada demais, o que incentiva a criação de “Caixas 2”. E o que se recolhe em tais “caixas” só poderia ser guardado no Exterior. Os pobres, que agora exigem punição, por evasão de divisas, fariam a mesma coisa, caso trabalhassem em empreiteiras. É a própria pobreza deles que os salva do ilícito. Em certas atividades, quem não entra no esquema é melhor fechar as portas e sair do ramo”.
Essas eventuais justificativas têm, porém, um problema: não há garantia alguma de que “o susto” de um processo ou condenação vá garantir uma correção de rumos. Pode ser que sim, quanto aos processados no caso em exame. Quanto à prevenção geral, o previsível é que haverá um estímulo à criminalidade, inclusive entre os criminosos “pé de chinelo”. Alguém, em frase célebre, minimizou a virulência de assaltantes: “O que é assaltar um banco, comparado com o fato de se possuir um banco?” Há também os cidadãos mais resignados que lembram a velho ditado de que as leis penais são como teias de aranha: prendem as moscas e insetos menores, mas são impotentes para segurar as grandes vespas e besouros, que arrebentam os fios e vão em frente.
Se algum legislador procura uma saída honrosa, sem injusta desmoralização da Polícia Federal, que proponha uma lei de anistia, nos casos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, desde que os autores de tais crimes tragam de volta o dinheiro desviado para o Exterior, com pagamento dos tributos sonegados e multas. Será o mínimo eticamente suportável pela parcela mais tolerante, bondosa e resignada da população brasileira.
Enquanto isso não ocorrer, que o íntegro Dr. Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, continue cumprindo seu dever, como vem fazendo. Vejamos como reage o STF.
(8-4-2011)
Para início de conversa, é generalização errônea dizer que “o STJ” – Superior Tribunal de Justiça “anulou as provas”, como seria o caso todo o Tribunal, ou sua maioria, adotar a discutível fundamentação da anulação em exame. O STJ tem 28 juízes titulares. Do julgamento do “habeas corpus” participaram apenas dois Ministros efetivos do Tribunal, a Relatora do acórdão, Min. Maria Thereza de Assis Moura (favorável à anulação) e o Min. Og Fernandes, (que votou contra a anulação). Um empate, portanto, entre os dois integrantes efetivos. Os dois votos restantes, favoráveis à anulação, vieram de magistrados de fora, convocados, um do Tribunal de Justiça de São Paulo e outro do Tribunal de Justiça do Ceará.
Em suma, até agora sabe-se, comprovadamente, que apenas 1/28 dos juízes do STJ adota o discutível entendimento que serviu de fundamentação para a rejeição de dois anos de exaustiva investigação da Polícia Federal. Não há, portanto, por enquanto, como censurar o “STJ” pela decisão. Não se sabe qual é a opinião dos restantes 27 Ministros efetivos.
Pela leitura das transcrições de depoimentos de advogados e entrevistas dos juízes que participaram do julgamento, o volumoso conjunto probatório foi anulado porque as investigações teriam duas supostas “máculas’: denúncia anônima e delação premiada. Dois bons pretextos (na verdade maus) para evitar que pessoas de alto gabarito — talvez até mesmo íntegras nos demais aspectos de suas vidas —, cumpram penas nas desumanas cadeias brasileiras, “incompatíveis’ com o status dos denunciados . Se foi o coração, a solidariedade humana, que motivou a concessão do habeas corpus, a saída mais honrosa seria outra, como diremos no final deste artigo.
A denúncia anônima, não obstante sua desfavorável impressão verbal, vem sendo progressivamente aceita em todos os países civilizados. É que, sem ela a sociedade ficaria praticamente indefesa. Somente pessoas com tendências suicidas atrevem-se hoje a acusar — e assinar em cima — a existência de crimes graves cometidos por pessoas poderosas, econômica e/ou politicamente. O risco pessoal — até mesmo de vida — passa a rondar o dia-a-dia do denunciante. Um “misterioso assaltante” pode excluí-lo do rol dos vivos. Mesmo não se chegando a esse extremo, o denunciante terá sua vida sutilmente infernizada. E não me venham argumentar com o serviço de proteção às testemunhas porque ninguém quer viver escondido, trocando de nome e endereço, só porque quis colaborar com a justiça.
O crime organizado tornou-se tão merecedor do nome que frequentemente até mesmo promotores de justiça se vêm ameaçados em suas vidas quando participam de investigações ou denunciam criminosos especialmente perigosos. Nesses casos, a Procuradoria Geral do Ministério Público local forma “grupos de atuação”, desestimulando os investigados a cumprir suas ameaças de morte, transmitidas por telefone. Com a formação desse “grupos” o perigoso suspeito fica sabendo que terá de matar, não apenas um, mas vários Promotores de Justiça. Tarefa muito complicada, só seriamente cogitada por “semi-deuses” do crime, como um Pablo Escobar, quando no auge de seu poder na Colômbia. Como, portanto, exigir, de simples cidadãos desprotegidos, a obrigação de assinar suas delações? O que importa é saber se a denúncia foi verdadeira. Mesmo na denúncia anônima há um perigo latente, porque o denunciado, muitas vezes, tem como saber quem o denunciou, perguntando-se: “Quem poderia saber desses detalhes?” A lista de suspeitos não seria tão extensa.
Recebida uma denúncia anônima, notadamente contra pessoas ou firmas de nome, a polícia não abre, automaticamente, um inquérito policial, manchando, precipitadamente a reputação — a mídia está sempre à procura de escândalos — de pessoas que podem ser apenas a vítima de uma calúnia. Delegados não mais agem dessa maneira, e não é só por considerações morais. É porque sabem que se ela for precipitada, competentes advogados do suspeito infernizarão suas vidas funcionais. O que a polícia, no caso a Federal, faz é iniciar uma investigação sigilosa para ver se a denúncia anônima tem alguma procedência. Não teria cabimento — formulo aqui um exemplo exagerado —, a polícia enviar para a cesta de lixo a denúncia anônima de que Fulano de Tal, dono de um império industrial, matou e enterrou, em seu sítio, perto de uma mangueira, sua bela secretária, dada como desaparecida misteriosamente há um mês. Seria uma falta de dever funcional, além de covardia, a polícia se abster de ir ao local indicado e cavar o solo no trecho com mais aparência de abrigar um corpo. Constatado o cadáver da secretária, ou até mesmo o de outras pessoas, não teria sentido a polícia ignorar o lúgubre achado porque a denúncia foi anônima e porque o suspeito é homem poderoso. Como já disse antes, em outro artigo, não cabe, no caso, a distinção entre “cadáveres de fato e cadáveres de direito”. Cadáver, com marca de violência, é sempre um cadáver, um caso a ser investigado.
Na operação “Castelo de Areia” a polícia, após investigações preliminares, sigilosas, solicitou escuta telefônica a um juiz de direito, que a concedeu. Depois disso, a Polícia Federal ampliou a investigação, inclusive com laudos periciais e acesso a mensagens. Colhida abundante prova, o material foi entregue ao órgão da acusação pública, sendo oferecida a denúncia. Caberia à defesa, no decorrer do processo criminal — e só lá —, anular, com contra-prova ou análises persuasivas do material probatório, a inocência do réu. Não, comodamente, alegar, genericamente, que toda a prova colhida nada vale porque originou-se, inicialmente, de uma denúncia anônima. A denúncia pode ter sido anônima, mas se os fatos apurados são verdadeiros, é isso que importa. O denunciante merece aplausos. Contribuiu para o bem comum.
Acho graça quando alguns defensores da nulidade total das provas (nulidade antes de qualquer julgamento formal) argumentam que o juiz — que concedeu os grampos telefônicos — agiu mal, ao deferir as escutas, porque deveria só deferi-las depois de apresentadas provas, completas e inegáveis, da existência de crimes. Se a Polícia Federal já dispunha de todas as provas não seria necessário pedir mais nada ao juiz.
Quanto à delação premiada, trata-se de outro instrumento legal necessário no combate ao crime, já aceito por todo país realmente interessado em combater infrações praticadas por organizações. Certos segredos, só quem pode bem informar é quem delas participou. A delação premiada não vale apenas para associações exclusivamente criminosas, como a Máfia ou a Yakuza japonesa. Serve também como ajuda na investigações de práticas ilegais de organizações úteis e necessárias aos países, como é o caso das empreiteiras. Se postos de gasolina, tão necessárias e úteis, resolvem inventar um esquema de adulteração de combustível, ou uma técnica de sonegação de tributos, não será a utilidade do serviço que impedirá a vigilância da lei e punição de culpados. E não basta, para a condenação de alguém, o delator dizer, simplesmente, numa investigação séria, que “Fulano de Tal cometeu um crime”. Os fatos criminosos apontados são, presume-se, investigados, para confirmação. A delação é analisada para exame de sua procedência. Isolada, sem prova complementar, certamente será descartada quando do julgamento. Nenhum magistrado, em seu juízo perfeito, vai condenar um réu porque alguém jurou de pés juntos que o acusado cometeu um crime, sem qualquer prova complementar. Assim como ocorre com a denúncia anônima, o que vale é saber, bem apurados os fatos, se o delator disse ou não a verdade. E em dúbio pró réu.
Outro equívoco muito comum, apresentado como sério, é dizer que a polícia e os juizes que deferem escutas têm que ser isentos, privados do senso natural de justiça. A polícia existe para investigar e se, investigando, concluiu que um indivíduo é culpado, nada mais normal que aprimore a investigação. Mesmo porque a polícia não condena ninguém, tarefa específica do Judiciário. Se um juiz conclui, intimamente, que determinado suspeito é realmente culpado dos crimes de que é acusado, não será essa convicção que o obrigará a se dar por suspeito, afastando-se do processo. O que tem a fazer é apurar ainda mais os fatos, sem adulterá-los. Se está sob julgamento um caso de massacre de velhinhos, com abundante prova de culpa, não tem sentido o réu alegar suspeição do juiz porque o crime é tão repelente que qualquer pessoa normal ficaria propenso a condenar. A se pensar dessa forma, em casos escabrosos seria precisa convocar, em manicômios, pessoas completamente apáticas para julgar o caso. O que interessa, repita-se, é saber se há, ou não, nos autos, prova para condenar.
Acredito que uma reflexão dormita na cabeça de alguns empresários, bem realistas e conhecedores dos meandros dos grandes negócios, no Brasil e no mundo: — “Vamos passar uma borracha! Apagar essa mancha contra uma empreiteira competente que já fez grandes obras, e nos prestigia no Exterior. Se houve um erro — e não nos interessa saber se houve ou não —, esse erro era e é uma prática bem usual no setor de construção de obras públicas. Por que punir apenas uma determinada empreiteira? Se é prática, até mundial, as empreiteiras se reunirem em um recinto para escolher quem vai ser o vencedor de determinada licitação, e usar outros truques, por que punir os executivos de apenas uma delas, transformados em “boi de piranha”? Além do mais, há a atenuante de que nossa legislação tributária é injusta, pesada demais, o que incentiva a criação de “Caixas 2”. E o que se recolhe em tais “caixas” só poderia ser guardado no Exterior. Os pobres, que agora exigem punição, por evasão de divisas, fariam a mesma coisa, caso trabalhassem em empreiteiras. É a própria pobreza deles que os salva do ilícito. Em certas atividades, quem não entra no esquema é melhor fechar as portas e sair do ramo”.
Essas eventuais justificativas têm, porém, um problema: não há garantia alguma de que “o susto” de um processo ou condenação vá garantir uma correção de rumos. Pode ser que sim, quanto aos processados no caso em exame. Quanto à prevenção geral, o previsível é que haverá um estímulo à criminalidade, inclusive entre os criminosos “pé de chinelo”. Alguém, em frase célebre, minimizou a virulência de assaltantes: “O que é assaltar um banco, comparado com o fato de se possuir um banco?” Há também os cidadãos mais resignados que lembram a velho ditado de que as leis penais são como teias de aranha: prendem as moscas e insetos menores, mas são impotentes para segurar as grandes vespas e besouros, que arrebentam os fios e vão em frente.
Se algum legislador procura uma saída honrosa, sem injusta desmoralização da Polícia Federal, que proponha uma lei de anistia, nos casos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, desde que os autores de tais crimes tragam de volta o dinheiro desviado para o Exterior, com pagamento dos tributos sonegados e multas. Será o mínimo eticamente suportável pela parcela mais tolerante, bondosa e resignada da população brasileira.
Enquanto isso não ocorrer, que o íntegro Dr. Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, continue cumprindo seu dever, como vem fazendo. Vejamos como reage o STF.
(8-4-2011)
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