quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Sensata, a liminar do Min. Luiz Fux, no “pacote anticorrupção”. Havia o “perigo da demora”

Poucos dias atrás o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro impetrou, no STF, o mandado de segurança nº 34.530 pedindo que fosse anulada, na Câmara dos Deputados, a votação do “pacote anticorrupção”, de iniciativa popular, que nela tramitou.   O impetrante salientou que a alteração legislativa visava ampliar o combate à corrupção mas a Câmara incluiu e aprovou uma emenda que agia em sentido oposto, intimidando juízes e promotores. Principalmente aqueles encarregados das investigações relacionadas com a operação Lava Jato.

Essa deturpação da vontade popular representou um autêntico “tiro pela culatra”, no olho da vontade popular. Deturpação que, se não fosse interrompida pela liminar do Min. Luiz Fux, poderia ter se transformado em lei — direito positivo —, tornando arriscadíssimo, durante anos, o exercício normal das atribuições dos promotores e juízes.

O projeto anticorrupção, votado na Câmara, atendeu, em pequena parte, o solicitado por mais de dois milhões de eleitores — o “endurecimento” na luta contra a criminalidade — mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, introduziu, no “remédio” contra a impunidade, uma espécie de “veneno” que criminalizou, ou impossibilitou, a atividade normal de promotores e juízes.

Na tóxica emenda a Câmara “enxertou”, por exemplo, que juízes e promotores sejam processados por crime de responsabilidade caso atuem “de maneira temerária” ou de forma “político-partidária” numa investigação.

Como as investigações — nos casos de desvio de dinheiro público — envolvem, quase sempre, políticos e empresários ligados a eles, essa vagueza de acusação será uma excelente oportunidade para os suspeitos ou acusados ajuizarem — para tumultuar — infindáveis demandas contra juízes e promotores, obrigando-os a se defenderem o tempo todo contra dúbias acusações. Como o promotor e o juiz poderão trabalhar — em assuntos por si só bastante complexos —, se tudo o que fizerem poderá ser considerado “temerário”?

 A finalidade desses suspeitos “enxertos” legislativos — foram muitos, leiam, no projeto da Câmara, o rol dos “crimes de responsabilidade” inventados — foi deixar a acusação sob constante ameaça de processo, com possibilidade de perda do cargo, multas e outras consequências. Cada “queixa” contra os promotores possibilitaria nova paralisia no andamento das investigações, tendo em vista que lei alguma proíbe, no Brasil, que qualquer pessoa redija “n” petições contra alguém, seja ele quem for, até que ocorra a quase utópica “coisa julgada”. No Brasil é ficcional a frase “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. É justamente o contrário: “Recorre-se”. Se nada ganha-se quanto ao pedido, em si, isso não importa. Ganha-se com algo não menos valioso: a inerente demora, benéfica a quem não tem razão e por isso não quer ser julgado.

A mídia salientou que a “inversão de objetivos”, na Câmara, ocorreu, “por coincidência”, na madrugada de uma terça-feira em que as atenções do país estavam voltadas para a morte trágica, na Colômbia, de um avião que transportava os jogadores de um time de futebol de brilhante futuro. Aprovado, na Câmara, o projeto foi enviado ao Senado. Nesse interregno foi requerido o Mandado de Segurança, com pedido de liminar, deferido pelo Min. Luiz Fux, tendo em vista o “periculum in mora”: a possibilidade de uma rápida aprovação do projeto no Senado. Havia motivo de sobra para o Min. Luiz Fux conceder a liminar, a menos que estivesse cego para o que estava ocorrendo com tanta pressa legislativa.

Se transformada em lei, com a óbvia futura aprovação do Senado, a deformada iniciativa popular só poderia ser anulada muitos anos depois. Seria uma sentença de morte, ou de “congelamento”, para sempre, das investigações. Se há, nos anais legislativos, um “tiro no pé”, igual a esse, em qualquer “iniciativa popular”, será preciso procurar muito.

A corajosa liminar do Min. Luiz Fux não foi uma ofensa à Câmara, considerando-se a pressa da aprovação da emenda — e do insignificante “resto” do desejo popular.

Houve, na concessão da liminar, apenas uma consideração emergencial, mostrando um desvirtuamento óbvio da intenção popular autorizada pela Constituição Federal. Se no projeto popular houve alguns excessos de severidade contra infratores ou supostos infratores, a Câmara poderia — como efetivamente fez —, cortar ou reduzir os exageros punitivos.

Se a Câmara, em outro projeto legislativo — de sua livre iniciativa —, quiser reprimir eventuais excessos repressores, que apresente projeto próprio, separado, às claras, fundamentando em detalhes o seu pedido. O que não pode é, perdoando a repetição, “tomar carona” em um projeto alheio — visando o combate à criminalidade — e, como “caronista”, alterar o destino do veículo, introduzindo uma longa emenda que transforma a iniciativa popular em seu oposto.

A liminar do Min. Fux nada tem de ofensiva à divisão dos poderes. A Constituição Federal, nos art.14, item III, e 61, §2º  — leiam, por favor — permite a iniciativa popular e estabelece as condições de procedimento, normas que não foram observadas. O próprio Regimento Interno da Câmara, nos arts.24, II, c, e 91,II, e 91,II, determinam rito diferente para discussão de projetos de iniciativa popular. A votação desta deveria ter ocorrido em sessão plenária, com oradores escolhidos pelos interessados na aprovação da iniciativa popular. E, segundo se deduz das informações da mídia, isso não ocorreu.

Quanto à liminar do Min. Luiz Fux — alguns jornalistas “acham” que o ministro “errou” porque uma liminar de tão grave significado deveria ser decidida pelo colegiado do STF.

Ocorre que havia a necessidade de pressa para a concessão, ou não, dessa liminar. A aprovação da Câmara, na já famosa madrugada, sugeria que algo parecia suspeito, na pressa para transformar em lei a ameaça contra juízes e promotores que trabalham na investigação da controvertida Lava Jato.

 Se o Min. Fux fosse aguardar uma decisão colegiada do STF, a iniciativa popular, enxertada, já estaria vigorando, agora, como lei. Haveria muita possibilidade de demora e discussão no STF, em tema carregado de subjetivismo político-filosófico, do qual raros magistrados podem se livrar, mesmo querendo. Talvez houvesse pedido de “vista” dos autos, por alguns ministros. Demoras de semanas certamente ocorreriam e nesse interregno a lei alterada em seu propósito entraria em vigor.

O Min. Gilmar Mendes rebelou-se, exaltado, contra a liminar de seu colega de Tribunal, dizendo que os eleitores que assinaram a iniciativa popular não a leram, ou se leram, não a compreenderam, tendo em vista a complexidade jurídica dos valores jurídicos em jogo. Por isso, no entender dele, o projeto popular contra a corrupção não merece crédito. Disse até que a redação da iniciativa popular é um “AI-5 do Judiciário”, uma ditadura pior que o AI-5 do tempo da ditadura.

Não tem razão o ilustre Ministro quando desmerece os mais de dois milhões de signatários. Claro que eles não leram ou não entenderam a íntegra dos fundamentos do projeto popular. Os detalhes técnicos, jurídicos, são sempre “complicados”. Tanto assim que mesmo entre juristas renomados ocorrem divergências interpretativas totalmente opostas. Mas uma coisa é inegável: quem assina “projetos de iniciativa popular” está ciente do propósito do documento. O eleitor pode não entender os detalhes e o alcance de cada proposta, mas sabe o que quer e pede providências. Mas não quer uma coisa e também o seu oposto. E o oposto, inserido pela Câmara, superou, em perigo, o que pretendia a iniciativa popular. Acusadores e juízes tornar-se-iam réus dos acusados e investigados.

Quem assina tais documentos sabe perfeitamente que suas propostas  passarão pelo crivo dos legisladores. Serão discutidas. Não presumem que o projeto popular será assinado ou rejeitado em bloco. E se o argumento da ignorância jurídica dos subscritores da iniciativa popular vale contra essa iniciativa, vale também o argumento de que o enxerto de acusações vagas contra juízes e promotores também não foi nem lido, nem compreendido pelos milhões de eleitores, signatários ou não da iniciativa em discussão.

Em suma, Luiz Fux agiu com coragem e discernimento, concedendo uma liminar que, se não tivesse sido concedida naquele momento, traria enorme dano ao desejo do país de sair do clima de desonestidade que estimula o crime organizado.

Compreendo os deputados que aprovaram, na fatídica madrugada, o “enxerto” que, aprovado, lhes permitiria um futuro sem o medo de prisão, ao ver deles injusta. Sei que seria dificílimo, quase impossível, um cidadão brasileiro, interessado em política — até mesmo idealista — eleger-se deputado federal sem recursos suficientes para gastar com propaganda eleitoral. Daí aceitarem ou pedirem doações do tipo “Caixa 2” para suas campanhas.

Pessoalmente, estou convencido de que a criminalização do “Caixa 2”, com efeito retroativo, não deveria prevalecer porque o poder legislativo não deve ser ocupado apenas por milionários que possam bancar as suas campanhas apenas com recursos próprios. Um legislativo composto apenas de milionários não seria representativo.

O Pe. Antônio Vieira, que além de padre e homem virtuoso era também invulgarmente inteligente, dizia que “Quem entra a introduzir uma lei nova não pode tirar de repente os abusos da velha”. (Dicionário de Pensamentos”, de Folco Masucci).

A se condenar todos os parlamentares que receberam doações do “Caixa 2”, nos últimos anos, só estarão livres da cadeia os candidatos passados que só não receberam tais doações porque eram tão insignificantes, politicamente, que era inútil ajudá-los em suas campanhas. Somente quando comprovada a participação do político donatário em algum esquema desonesto dos ricos doadores é que caberia a punição do candidato, porque ele fazia “parte do esquema”. Note-se que a prova provada das desonestidades das empreiteiras e da Petrobrás só surgiu com as descobertas recentes da Lava Jato.

O que acabei de dizer não contradiz minhas considerações sobre o que ocorreu na iniciativa popular desvirtuada — pelo medo de processo — de vários deputados. O que lhes cabe, data vênia, é insistir no efeito não retroativo da criminalização do “Caixa 2”. Há gente boa, capaz,  séria, entre os recebedores dessas doações, sem as quais não teriam chegado a participar da vida política do Brasil. Não cabe condenar todos os eleitos de cambulhada.

Discorde quem quiser do que escrevi nesta parte final deste despretensioso artigo. Quem discorda, o faz porque nunca foi candidato a coisa alguma. Ou, se o foi, não conseguiu se eleger, a menos que trabalhasse na televisão, aparecendo na tela com frequência. O grande problema é ser conhecido. A democracia pura, sem propaganda eleitoral, só funcionava bem na praça pública, na antiga Grécia de Platão, ou mais recentemente nos Cantões Suíços. No resto, Brasil inclusive, é a propaganda que permite ao candidato chegar ao conhecimento dos eleitores.

(22-12-2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

 “Decisões técnicas” nem sempre são estritamente técnicas. Caso Geddel

Como considero imprescindível — pensando na governabilidade e recuperação econômica do país —, a permanência de Michel Temer na presidência, até a eleição de seu sucessor em 2018 — a menos que ele cometa um “malfeito” digno desse nome — o que ainda não ocorreu —, e levando em conta que a vasta maioria da população tem uma compreensão algo ingênua, confiante demais, da expressão “opinião técnica”, faço abaixo algumas considerações sobre o irrelevante  acontecimento político que tentam transformar em impeachment contra o presidente em exercício.

Refiro-me, claro, ao “grave” — conversa mole da mídia, porque não foi grave — incidente entre um ministro de Temer, Geddel Vieira, e o Ministro da Cultura, Marcelo Calero, a respeito da construção de um prédio de apartamento — “La Vue” — no centro histórico de Salvador. 

 A construção desse prédio tinha sido autorizada pelo Iphan da Bahia, mas como o Iphan nacional, com sede no Rio de Janeiro, depois discordou da autorização — e nesses casos prevalece a decisão do Iphan nacional — a construção foi embargada. Como Geddel tinha interesse pessoal no caso, alegando ter comprado uma unidade, ele teria pressionado Calero para que este, como Ministro da Cultura, autorizasse o prosseguimento da obra segundo a planta original, aprovada localmente. Calero negou a pretensão de Geddel e este procurou ajuda do seu amigo político de longa data, Michel Temer,  que apoiou a pretensão de Geddel. 

Ainda segundo Calero, Temer sugeriu lhe que  enviasse o problema à AGU para uma decisão e minimizou o incidente dizendo que “na política há dessas coisas”. Sentindo-se moralmente decepcionado com seu chefe e pessoalmente desprestigiado, Calero voltou a conversar novamente com Temer, em outra oportunidade, desta vez utilizando, escondido, um gravador. Gravada a conversa com o presidente, Calero pediu demissão do cargo e procurou polícia e imprensa para relatar o ocorrido, acusando Geddel de pressioná-lo fortemente. Com o estardalhaço, Calero colocou o presidente em posição moralmente difícil. Para não prejudicar o presidente, Geddel voluntariamente deixou a Secretaria de Governo e seu sucessor, o Dep. Roberto Freire, decidiu que prevaleceria a decisão do Iphan nacional, considerando que a decisão baseou-se no seu parecer técnico . 

Resumido o essencial de um desnecessário  falso “escândalo” que estimulou a desconfiança de potenciais investidores estrangeiros — justamente no momento em que o governo mais precisa dessa confiança para apressar a “saída do buraco”, cavado pelo modo petista de governar — direi algumas palavras alertando para algo que todo profissional da área jurídica já sabe mas convém difundir: que “decisões técnicas” muitas vezes não são estritamente técnicas. Pode haver muita política por trás das conclusões. Técnicos, seres humanos, também têm preconceitos, aversões e paixões políticas. Assim como os juristas — “técnicos” do Direito — eles também divergem em suas opiniões conforme o interesse que patrocinam. Não sei se foi o caso dos técnicos que opinaram sobre o projeto do “La Vue” de Salvador. Uns aprovando, na Bahia, e outros desaprovando, no Rio de Janeiro. A mídia não sabe, nem procurou saber, qual a coloração política dos técnicos do Iphan-Rio que concluiram pelo embargo da obra. 

Quem já foi juiz ou advogado, por alguns anos, em ações de desapropriações de imóveis, sabe quão relativas e contraditórias são as conclusões apresentadas pelos engenheiros “assistentes técnicos”  apresentadas pelo expropriantes e pelo expropriado. O juiz, no momento processual certo, nomeia um perito de sua confiança. Esse “perito do juiz” apresenta seu laudo afirmando que o imóvel vale “x”. As partes usualmente discordam e indicam, separadamente, seus “assistentes técnicos”, que quase sempre divergem. O assistente técnico do expropriante diz que o imóvel vale “y”, menos, e o assistente do expropriado diz que o mesmo imóvel vale “z”, mais. O juiz lê as três opiniões divergentes e tenta, na medida do possível, fixar o valor eu lhe pareça mais próximo da realidade. Digo assim porque é humanamente impossível garantir qual o valo exato de qualquer bem, tal a quantidade de fatores que pesam na avaliação. Mesmo em perícias médicas há, por vezes, divergências totais, embora sempre argumentando tecnicamente.

Antes de George W. Bush invadir o Iraque, após o 11 de setembro, havia dúvida — de boa-fé — se Saddam Hussein possuía, ou não, “armas de destruição em massa”. Apesar dos mais confiáveis peritos, contratados pela ONU, afirmarem que não havia. George W. Bush disse que havia e por isso invadiu o Iraque e enforcou Saddam. Após a invasão ficou provado que no Iraque não existiam tais armas. 

Digo tudo isso para sugerir que a divergência entre o Iphan-Bahia e o Iphan-Rio possivelmente não estava isenta de motivação tanto política quanto moral. De qualquer forma, Temer não aparecia, no conflito, como pessoalmente envolvido na construção do prédio. E o Ministério da Cultura poucos meses atrás reagiu fortemente contra Temer quando ele quis separar a Cultura do Ministério da Educação. 

Cabe ponderar, em favor de Temer, nesse episódio, que ele agiu como agiria qualquer presidente de longa experiência política, interessado essencialmente em um assunto urgente e da máxima importância: a PEC do teto das despesas públicas.  

Essa PEC é tema espinhoso, exigindo um contato pessoal do ministro-chefe da Secretaria de Governo com muitos parlamentares ainda em dúvida sobre como votar. Convém que esse ministro-chefe seja o mais simpático possível, porque — certo ou errado —, antipatias e simpatias influem bastante nas votações, em todas as áreas. Quando Kennedy derrotou Nixon na sua eleição, parte da mídia americana explicou que Kennedy “venceu” o debate porque era jovem, limpo, mais bonito que Nixon, que aparecia, na televisão, suado, feio, e sem ter feito a barba (ele tinha que se barbear duas vezes ao dia). Geddel, informa a mídia, tem muitos aliados na Câmara dos Deputados. Conviria, por isso, a Temer, manter Geddel como elemento de persuasão para obtenção dos votos necessários para a aprovação da PEC.  

A luta política guarda muita semelhança com o jogo de xadrez. Às vezes, para conseguir uma vantagem no tabuleiro é preciso sacrificar algumas peças. Por isso, Temer, em vez demitir Geddel, de imediato, com base na acusação de Calero — negada por Geddel — ou abrir uma demorada investigação sobre a divergência relacionada com a altura de um prédio em Salvador, preferiu algo mil vezes mais importante: a aprovação de um plano a duras penas elaborado pelo seu prestigiado Ministro da Fazenda. O que era mais importante, naquele grave momento? Saber das reais motivações de Geddel? Demitir, de imediato Geddel? Investigar demoradamente quem tinha mais razão, ou recuperar a economia?   

Caberia, data venia, ao Ministro da Cultura, quando pressionado por Geddel, negar o seu pedido e ponto final. Afinal, não estava sob a mira de um revolver. Se se sentisse desconfortado para permanecer no cargo, poderia pedir demissão, alegando razões pessoais, ou até mesmo dar explicações técnicas para sua saída. Se temesse ser acusado, futuramente, de estar envolvido em alguma ilegalidade — relacionada com o referido prédio —, poderia até gravar a conversa que teve com o presidente, guardando essa prova a sete chaves, para uma eventual necessidade de defesa de sua honestidade quando ainda fazia parte do governo. Nunca, porém, gravando uma conversa com quem o nomeou e procurando polícia e mídia para prejudicar diretamente o presidente e, indiretamente o seu país.  

Se o investidor estrangeiro já duvidava sobre investir no confuso Brasil, essa dúvida aumentou com o alvoroço sobre a altura do prédio. E que “a política tem dessas coisas” — frase que Temer teria proferido — é verdade muito conhecida. Cabe a cada ministro dizer “não!”, e ponto final, quando outro político lhe pede algo com que não concorda. 

Felizmente, o incidente não chegou a ponto de impedir a aprovação da referida PEC, embora tenha prejudicado o país na área econômica. 

Depois do hercúleo esforço, de meses, tentando colocar as finanças em ordem, o atual governo seria irresponsável se congelasse as reformas por causa de alguns pavimentos, a mais ou a menos, de um prédio de apartamento em que o presidente não tinha qualquer interesse. Faltou senso de proporção, ou maturidade, na gritaria.  

(11/12/2016)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

O projeto de “abuso de autoridade” é desnecessário.

É dispensável — pelo menos no momento —, no Brasil, um projeto de lei, ou PEC, prevendo a punição por “abuso de autoridade” de qualquer promotor ou juiz exercendo suas funções em qualquer processo criminal.

O projeto, já apresentado no Senado, visando “abusos” da Lava Jato, é claramente uma tentativa de intimidar, colocando na defensiva perpétua tanto os promotores quanto os juízes que atuam na fase do inquérito, deferindo quebras de sigilo, busca e apreensão de provas, decretando prisão temporária ou preventiva, autorizando condução coercitiva e outras atividades autorizadas pela legislação justamente para demonstrar que as denúncias não se baseiam em meras conjeturas.

No fundo, essa busca de indícios, ou provas, colhidas no inquérito, visa proteger pessoas inocentes. Ou, se não habitualmente “inocentes”, pessoas que não cometeram o crime em investigação. O “denunciado” — em significado popular —, pode, apesar de seu passado, estar sendo caluniado por inimigos astutos que querem tirar proveito da “onda” de má-reputação um inimigo.

Um inquérito policial bem feito até solidifica o princípio de presunção de inocência. Nem toda investigação policial resulta em denúncia criminal. Uma pessoa falsamente apontada como autora de um crime fica — se o inquérito for bem feito —, poupada da necessidade de se defender em um sempre imprevisível processo criminal, porque o promotor pode pedir o arquivamento do inquérito, ou sua paralização até que surja novo indício que justifique o oferecimento de denúncia. As pessoas nem sempre dizem a verdade quando “denunciam” outras à polícia.

 Os termos vagos descrevendo os alegados “abusos de autoridade”— possibilitando variadas interpretações —, contidos na proposta legislativa encampada pelo Sen. Renan Calheiros, obrigariam promotores e juízes a gastarem a maior parte de seu tempo apenas se defendendo. A menos — risivelmente —, que contratassem grandes criminalistas, para defendê-los das acusações feitas pelos réus do colarinho branco.

A meu ver, a legislação atual já possibilita a punição —, criminal e cível, indenizatória —, contra uma acusação deliberadamente falsa, ou um julgamento igualmente doloso, desde que transitada em julgado a ação criminal onde ficou comprovado o intuito de somente prejudicar o acusado; ou possibilita anular o processo, antes de seu fim natural quando constado, pela própria justiça, que o referido processo foi, desde o início, apenas um simulacro de busca da verdade. Algo assim como uma cédula falsa, que obviamente moeda não é. Dou um exemplo: o réu foi acusado apenas de ter matado e jogado ao mar uma possível e única testemunha de um crime, mas em plena audiência o suposto morto aparece, em carne e osso explicando que “sumiu” porque do contrário seria assassinado pelos inimigos do acusado.

Enganos de avaliação da prova, ou da interpretação do Direito —, ou mesmo uma certa “tendenciosidade” profissional — o tal “cachimbo na boca torta” ou “calo profissional” de promotores e advogados —  são uma coisa. Muito outra seria o dolo, bem consciente, de um acusador que sabe que sua prova é falsa. Isso ocorrendo, trata-se de crime, a permitir até a expulsão da carreira de promotor e sua condenação criminal, cumulada com ação de indenização movida por sua vítima judicial. E o mesmo se diga no caso de um eventual magistrado corrupto, ou determinado a condenar um inocente sabendo que isso não é verdade e que a prova contra ele é falsa.

“Abusos” óbvios, da parte de um promotor ou juiz, mesmo no Brasil de hoje, só podem ocorrer como situações anômalas, de interesse mais psiquiátrico, facilmente detectáveis como insanidade. Se, numa busca e apreensão, ou condução coercitiva, um promotor, com esgar de alucinado, põe-se a gritar e chicotear o indiciado, ou a chutar móveis e parentes do suspeito, essa conduta aberrante seria logo filmada ou fotografada, chegando de imediato à mídia, antes mesmo que os enfermeiros coloquem no louco a camisa de força.

Exagerei, propositalmente, na descrição do que seria “abuso de autoridade”, mas eventuais humilhações desnecessárias de indiciados podem ser corrigidas imediatamente pelas próprias Corregedorias do Ministério Público e da Magistratura. Nunca, porém, pondo em risco a liberdade desses profissionais de trabalhar conforme sua interpretação das normas de procedimento.

 Impedir totalmente, como segredo de estado, a “publicidade” — desencadeada pela mídia — de uma prisão temporária ou preventiva seria privilegiar demais os criminosos que não tiveram acanhamento de arriscar suas reputações contando com a impunidade e o segredo de justiça.

Mesmo nos mais adiantados países do Primeiro Mundo a imprensa não fica proibida de noticiar o que acontece quando também “os grandes” são acusados de malfeitos. Banqueiros e magnatas são vistos, na mídia, algemados, mesmo quando não agem com violência. Pessoalmente, preferiria dispensar o uso das algemas quando o suspeito não reage, mas essa prática é muito usada em outros países, sem protestos significativos.

Por que só no Brasil isso não poderia ocorrer? Antes do Mensalão quantos políticos, banqueiros e famosos estavam presos? “Nenhum”, respondeu-me, após uma pausa, um grande criminalista brasileiro.

(07-12-2016)

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Quebrando as fronteiras rígidas do conhecimento

Talvez o verbo certo seja “relativizar” tais fronteiras. O essencial, mais do que a exatidão na escolha de um termo, é salientar a necessidade, cada vez mais premente, de unir os ramos do conhecimento. Não digo “misturar” tudo em um “angu” superficial e ignorante. Pelo menos, criar pontes inteligentes entre os diversas domínios.
É velha, mas sempre pertinente, a definição daquele que só se interessa pela própria especialidade: “especialista é aquele que sabe cada vez mais de cada vez menos”. No plano microscópico ele é gênio. Na compreensão global, se não um tolo desconectado pelo menos um alienado do mundo em que vive. Talvez pior: um pavão, cheio de si, porque no conhecimento minucioso dos detalhes do seu piolho particular ninguém o suplanta. Pelo menos é o que ele imagina, vivendo no seu mundinho.

                 Tais considerações vieram-me à mente após ler um artigo sensatíssimo, no jornal “O Estado de S. Paulo”, de 3-8-09, do prof. Jerson Kelman, professor da Coppe-UFRJ. Ele foi diretor-presidente da Agência Nacional de Águas e diretor-geral da Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica.

                 Nesse artigo, “A bala perdida no Senado”, Kelman salienta a necessidade de não ver as coisas isoladamente: (...) “sem um sistema de gerenciamento capaz de harmonizar os interesses conflitantes no uso dos rios ocorre uma babel em que cada setor ignora a existência do outro. Por exemplo, o setor agrícola e o energético comportam-se como se as águas pudessem ser utilizadas de forma exclusiva, respectivamente para a irrigação e para a produção de eletricidade. Outro exemplo: a autoridade estadual permite que se faça uma captação ou se lance um efluente num rio sob sua jurisdição, sem atentar para as consequências sobre a quantidade e qualidade utilizada por outros usuários localizados rio abaixo, às vezes em outros Estados da Federação”.

              A observação acima serve como uma luva para a ideia que venho (monotonamente) incentivando ha meses, talvez para desespero de alguns leitores que entram em convulsão à simples menção da necessidade de um governo democrático global. Se mesmo dentro de um país de regime federativo se constata a necessidade do estado pensar no bem estar do estado vizinho — antes de empreender determinada obra, ou planejar um sistema —, o que não se dirá da convivência mundial, cada vez mais estreita? Há uma estreita analogia entre “estados soberanos”, na área internacional e “estados” — vizinhos ou não — dentro de uma mesma federação.

               Em termos de água, mero exemplo, pergunta-se: se um país prevê futura escassez, tem ele o direito “soberano” — egoísmo garantido pela força — de represá-la, mesmo que com isso arruíne a agricultura e o abastecimento de um vizinho país (ou imensa coletividade sem status de Estado), situado em nível mais baixo? Qualquer pessoa, mesmo de poucas luzes, dirá que o interesse da população do país ou povo vizinho, não pode ser ignorado. Se o for, faltará água na região menosprezada. Em compensação, não faltará, no povo prejudicado, um caudaloso “ódio líquido’ — inventaram mais essa novidade, “líquido”, em política internacional... —, com terroristas auto justificados pelo fato de não disporem de um tribunal internacional que repare a injustiça sofrida. E essa via legal o planeta não tem. Basta dizer que qualquer país, para poder ser julgado em uma demanda ajuizada na Corte Internacional de Justiça, precisa aceitar a jurisdição. É julgado apenas se assim concordar. Sabendo estar errado, não concorda, obviamente. Medo da pressão internacional? Nem sempre. Depende de saber quem comanda essa pressão.Tem cabimento um atraso jurídico desse porte em pleno século XXI?

               A justiça internacional ainda sofre grandes limitações institucionais. Certamente provocando desespero, embora não verbalizado, de seus competentes juízes que, provavelmente, gostariam de poder trabalhar com mais desenvoltura, fazendo justiça completa, em escala realmente mundial. Um justiça sem tantas limitações políticas disfarçadas em normas jurídicas.

Infelizmente, os competentes magistrados internacionais — convocados em todas as partes do planeta para integrar os tribunais internacionais —, não podem ficar reclamando, a torto e a direito, contra as restrições que os impedem de fazer a desejada justiça. Nas federações  formando um único país, cada estado ou província cuida dos “assuntos locais” mas não decide sobre relações internacionais, nem declara guerra à província ou estado vizinho, e muito menos a outro país. O estado do Texas, por exemplo, não pode declarar guerra contra outro país. Somente a União pode fazer isso. Muito menos pode o Texas dizer que “não aceita ser julgado” numa demanda qualquer, ajuizada pela União ou por outro estado da federação americana. O mesmo precisa existir na área internacional. A noção de soberania precisa ser relativizada, para não se transformar em empecilho para um mundo mais justo e, consequentemente, menos sujeito a guerras, massacres, fome e terrorismo.

               Voltando ao artigo do prof. Jerson Kelman — que nas entrelinhas revela-se um intelectual equilibrado e sem vaidade — ele acentua, como disse de início, a necessidade da administração federal abordar o problema das águas de forma global, examinando repercussões das decisões em todas as áreas em que vão ocorrer consequências.

Um outro item que demonstra a ligação íntima de assuntos aparentemente separados está na conexão entre o excesso populacional e os enredados esforços para a construção da paz. Pais ricos, ou remediados, têm poucos filhos. Pais pobres geram abundante descendência. Excesso que leva, quase fatalmente, ao desemprego, criminalidade de rua (não do colarinho branco —, aí trata-se de “vocação”) e migrações desordenadas em busca de países que ofereçam mais oportunidades. Ou pelo menos alguma oportunidade, porque em certas regiões de miséria, simplesmente não há qualquer chance de progresso individual, seja qual for sua força de vontade. Imagine-se o leitor nascendo hoje, de família pobre, no Sudão, Somália, Zimbábue ou outro país paupérrimo. Mesmo tendo, por sorte, uma feliz combinação de genes ligados à inteligência, sua desnutrição dentro do útero e nos primeiros anos de vida minará o pleno desenvolvimento de seu cérebro.

A promissora concepção da União Europeia já se defronta com críticas e dificuldades. E a União Europeia é um “ensaio” ou “ovo” informal de um governo mundial. Se ela falhar, falhará também, por “contágio”, a ideia de uma governança global, o que será uma lástima. Isso porque os pobres do Leste Europeu, em grande número — o fator quantidade minando a qualidade de qualquer ideia —, afluem para os países mais ricos, perturbando sua economia. Como precisam trabalhar, aceitam salários mais baixos, o que aumenta o desemprego dos trabalhadores locais, que passam a apoiar políticos de direita, hostil aos estrangeiros. Hostilidade de conveniência, mas de qualquer forma, hostilidade. E essa prevenção também causa ressentimentos dos governos de outras regiões — Brasil, por exemplo —, que encaram como ofensa a desconfiança com que seus cidadãos são tratados nos aeroportos europeus, mesmo como simples turistas. Qualificação que o país receptor vê com reserva, supondo que o moço tenha desembarcado com a intenção de ali morar e trabalhar.

O exagero populacional também gera efeitos não estritamente econômicos, relacionados com mero excesso de mão de obra. O econômico transforma-se em racial. Pior, racista. Explico: como os “invasores’ são, no geral, mais escuros (africanos e sul-americanos), ou de feições árabes, a ojeriza pelos imigrantes, “concorrentes desleais” — porque aceitam salários menores, sendo preferidos pelos patrões — acaba se transfigurando em um problema de cor, ou traços fisionômicos. A “raça” do imigrante acaba levando a culpa pelo desemprego dos brancos no país hospedeiro. Políticos locais, sempre à cata de votos, aproveitam a onda de animosidade e elaboram políticas que tendem a marginalizar os “invasores” mais escuros. Daí as explosões de desproporcionada violência — incêndios e depredações — que ocorrem ante a menor “provocação” da polícia. No fundo, no fundo, toda aquela violência origina-se da fertilidade incontrolada. A mera quantidade gerando a má-qualidade na convivência humana.

Um outro exemplo da conexão entre o excesso de nascimento nas camadas mais pobres e conflitos sangrentos duradouros entre povos está no que ocorre no Oriente Médio. Fosse bem menor o afluxo de judeus procurando, compreensivelmente, “um lar em Israel”, após a criação desse estado, a paz com os palestinos teria tido mais chance de ser alcançada. Menos árabes teriam sido expulsos das áreas que ocupavam. Conseqüentemente, o ressentimento palestino teria sido menor. O mesmo se diga do ódio de Bin Laden, estimulado com o ressentimento palestino. Talvez nem existisse o atentado de 11-9-2001. Ocorre que não havia — nem na época nem agora — uma autoridade mundial capaz de dar um “pare!” às sucessivas levas de judeus que queriam, finalmente, e em excesso, poder morar num país próprio, Israel.

Ainda hoje, qual o principal espinho que dificulta a solução do problema da criação de dois estados na antiga Palestina? O excesso de judeus, não abonados, que se instalam na Cisjordânia. Vêm de toda parte, e o governo israelense não se sente confortável para expulsar seus irmãos de raça ou religião. E porque tais colonos se instalam na Cisjordânia? Capricho? Não. Instalam-se ali porque são relativamente pobres, numerosos e não têm recursos para se instalarem em regiões tranqüilas e confortáveis dentro das principais cidades. Sempre o problema da quantidade.

Quando se fala em “judeu”, pensa-se logo em “judeu rico”, mas isso não corresponde à realidade. Judeu favelado, miserável, pelo que sei, praticamente não existe hoje no mundo. Consta — não sei se é verdade — que os judeus demonstram uma solidariedade acima do habitual para com seus irmãos menos afortunado. Mas, se não existe judeu miserável, há milhares deles, da classe média baixa, ou próxima da baixa, que desejam viver em Israel. Não podendo comprar casa ou apartamento nos melhores bairros das cidades

Francisco Pinheiro Rodrigues   (04/08/2009)


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

“Temas de DIREITO MÉDICO”, de Elias Farah.  A dupla vocação de um jurista. Realizado em ambas.

Direi algumas palavras sobre um reservado e conhecido advogado de São Paulo que, se adepto fosse da autopropaganda, estaria sempre presente na mídia, devido à seriedade e amplidão de seus conhecimentos. Não está porque é avesso à superficialidade e à incoerência. Digamos, em flash comparativo, que ele é a antítese de um Donald Trump. Dr. Elias Farah está entre aqueles que pensam que cabe aos outros, não a si mesmo, julgar o próprio trabalho. Por isso, eu o avalio, aqui, por dever de justiça. Hoje em dia, a elogiável virtude da modéstia é até prejudicial porque a propaganda e a mídia pesam mais que a realidade.

Para sentir o grau de discernimento desse descendente de libaneses basta conversar um pouco com ele, onde até mesmo o silêncio tem significado. Mas quem pretende conhecer realmente suas opiniões precisa ler seus livros e artigos, publicados em jornais e revistas especializadas na área jurídica, cível e trabalhista. Principalmente na relação entre Medicina e Direito.  Nesse último item, sua biografia guarda, para mim, certa analogia com a vida de outra extraordinária figura humana, científica e intelectual: um médico carioca, clínico geral, Dr. Miguel Couto (Miguel de Oliveira Couto), falecido em 1934, no Rio de Janeiro, titular de três cátedras na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Além disso, era homem de extrema bondade, segundo seus biógrafos.

Por que relacionei, involuntariamente, nosso amigo com esse grande médico do passado — além de tri-catedrático Miguel Couto foi também imortal da Academia Brasileira de Letras — em vez de me lembrar de algum jurista famoso, tendo em vista que o Dr. Farah é advogado? É que, lendo parte de seus inúmeros livros e artigos sobre aspectos legais da Medicina, não pude fugir à conclusão de que Elias Farah nasceu com dupla vocação, algo que acontece também comigo, embora em dimensões bem mais modestas.

 A medicina foi minha primeira possível opção profissional, talvez a mais adequada à minha real natureza: a propensão inata para confiar desconfiando do enfoque abstrato ou vago demais — e por isso talvez enganador — das palavras. Filosofia, teologia, sociologia, economia e direito, por exemplo, podem ter seus termos interpretados de várias maneiras, até mesmo opostas. Basta lembrar a palavra “democracia”, no tempo da Guerra Fria. Americanos e russos divergiam muito sobre o que seria uma “verdadeira” democracia.

Assistindo aos apaixonados debates do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff — as lágrimas, sinceras, de seus defensores encheriam jarras — pode-se ter uma ideia da relatividade, da fluidez, da conflituosa hermenêutica jurídica, o que explica minha preferência para escrever, no meu blog, apenas sobre os detalhes mais concretos dos julgamentos de maior repercussão na mídia. Ou então escrever — aí sem remorsos —, sobre assuntos mais literários, em que a imaginação é livre e mesmo recomendável. Mesmo em atividade “literária” tenho uma forte predileção para fantasiar em termos concretos, preocupado em não insultar a inteligência do leitor. Não entro em “buracos negros” para voltar ao passado e conviver com dinossauros. Se eles me devorassem eu só poderia escrever este artigo em sessão espírita.

Na medicina, uma pneumonia, um enfarto, ou câncer é algo muito mais “sólido” que o descumprimento de um preceito fundamental. Uma “pedra nos rins” é mais incontroversa que uma “cláusula pétrea” constitucional, ou um “direito humano” — há dezenas, fora os mencionados expressamente na CF —, que tanto podem ser invocados pelo criminoso quanto pela vítima. E fiquemos por aqui, porque é o Dr. Farah que nos interessa. Quem quiser um resumo biográfico geral de sua atuação como advogado leia, por favor, meu artigo sobre ele — “Dr. Elias Farah e a ética na advocacia” —, no meu blog (francepiro.blogspot.com), ou nos sites 
www.franciscopinheirorodrigues.com.br, ou www.mundori.com

Esta divagação sobre mim mesmo — sobre a qual peço perdão ao Dr. Farah e ao leitor —, relaciona-se com a falsa ideia de que os talentos humanos são específicos e exclusivistas. Pensa-se que um advogado já nasce “advogado”; um médico já é “médico” mal abre os olhos ao nascer. Não é assim na vida real, em todas as profissões. Conheci grandes advogados que estudaram Direito porque não tinham condições econômicas de frequentar uma faculdade de medicina, ou de engenharia. Não foi o caso do Dr. Farah, mas só quem é “médico” vocacional teria condições de escrever o que ele escreveu quando analisa seus temas de Direito Médico. Antes de abordar o lado legal do tema ele dá uma explicação, facilitada, do aspecto técnico, “medicinal”, do problema.  Advogados criminalistas — principalmente aqueles de gostam de atuar no Júri —, revelam-se quase peritos em detalhes técnicos fora de sua profissão, quando isso é necessário para melhor defesa do réu. Valdir Troncoso Peres parecia um colega de clínica de S. Freud quando dissecava, nos julgamentos, as intenções do réu, da vítima, ou de quem mais influísse no julgamento. Segundo ouvi de um grande advogado tributarista, a pessoa que mais entende, no Brasil, de Reforma Tributária é um médico. Leonardo da Vinci era uma usina de conhecimentos transformáveis em quadros e invenções. 

Voltando ao Dr. Miguel Couto, minha curiosidade sobre esse médico vem do fato acidental dele ter curado um grave problema de pele no rosto de uma irmã de meu pai, ambos cearenses, como eu. Não cheguei a conhecê-la porque saí do Ceará quando tinha apenas dois anos.

 Segundo meu pai, sua irmã, ainda jovem, bonita, casada, passou a sofrer, no rosto, um grave problema de pele, distúrbio que a enfeava de modo anormal. Meu pai não entrou em detalhes descritivos e eu, à época do relato, não me interessava por isso. Casada com um homem de recursos, consultou, sem êxito, todos os médicos do Ceará. Como ninguém conhecia a origem da deformação, o casal foi, de navio, a Salvador, Baía, porque lá, à época — começos do século XX —, clinicavam os melhores médicos do país. Inutilmente. Ninguém conseguiu curá-la. Aí alguém sugeriu que ela fosse ao Rio de Janeiro, só para consultar um determinado clínico geral, de crescente fama, “um tal” de Dr. Miguel Couto. E ela foi — tudo de navio, vejam o sacrifício. Conta meu pai que a consulta foi rápida, sem quaisquer exames laboratoriais, mesmo porque então inexistes. Dr. Miguel Couto fez à paciente algumas poucas perguntas, pesou-a e receitou-lhe comprar um vidrinho de ácido clorídrico. Teria apenas que ingerir o conteúdo na forma que recomendou. Ela o fez e ficou completamente curada.

Pergunto: considerando que todas as pessoas têm ácido clorídrico no estômago, como esse notável médico concluiu que sua ingestão iria curar o grave problema na pele do rosto? Quando pergunto a um médico qual a relação de causa e efeito, nesse caso, sempre ouço hipóteses vacilantes. O interessante, no caso desse médico, é que nos concursos de catedrático os concorrentes, àquela época, tinham que comprovar extensa cultura geral, filosófica e histórica, porque a medicina estava longe do tecnicismo atual. Será que essa maior cultura geral influía no acerto dos diagnósticos do Dr. Miguel Couto? Mas uma coisa é certa: os médicos variam imensamente na sua intuição, ou dedução, na capacidade de diagnosticar.

No Direito, ou melhor, na aplicação do direito aos fatos sob julgamento isso também ocorre. Grandes doutrinadores podem, como juízes, ou advogados, atuar de forma menos acertada. Algo “atordoados” pelas belas especulações teóricas podem, talvez, desprezar o exame mais “rasteiro” dos fatos, quando nos próprios fatos, profundamente investigados, estaria o detalhe decisivo. Senti isso, algumas vezes, quando juiz. Presumo que a boa “pontaria” jurídica do Dr. Elias Farah seja especialmente aguda não só nos litígios em geral como naqueles que envolvem aspectos médicos.

Seu livro “Temas de Direito Médico”, de 660 páginas, abrange praticamente todos os assuntos que relacionam Direito e Medicina. Para escrevê-lo, o Dr. Farah teve que se enfronhar nos detalhes médicos para explicar melhor o lado jurídico dessa importantíssima atividade. Nem enumero, aqui, os tópicos — abordados, cada um, em no máximo uma página —, porque a mera menção deles tornaria extenso demais este artigo, já cansativo para o leitor de média resistência. Seu livro deve ser lido por legisladores, advogados, magistrados, promotores de justiça, médicos, donos de planos de saúde, farmacêuticos e por curiosos que se enquadram no brincalhão adágio de que “de médico e louco todos têm um pouco”. É o meu caso. Espero que afastado o “louco”.

Depois de tantos elogios sinceros ao ilustre advogado, vou cometer agora uma ingratidão. Vou lhe sugerir que publique uma série de artigos — depois reunidos em livro, nos moldes práticos do “Temas de Direito Médico” — emitindo seu julgamento, ou opinião, sobre assuntos bem recentes, de grande interesse público, que abaixo relaciono:

1- Qual sua opinião sobre as tais “Pílulas de inteligência”? A propaganda é intensa e muitos duvidam dos relatos sobre sua eficácia. E quais os componentes químicos que, conhecidamente, influem no funcionamento dos neurônios?

2 - Na China, ao contrário do Ocidente, são relativamente raros os casos de câncer de próstata e do seio. Na “minha opinião” — essa é boa... — a explicação está ou no fato dos chineses pouco consumirem leite e seus derivados, ou porque eles consomem soja em lugar do leite. Note-se que o homem é o único mamífero que bebe leite após a fase de amamentação.

3- Qual sua opinião sobre a proibição de farmacêuticos medirem, em farmácias, o nível de glicose mediante a picada no dedo para extração de uma gota de sangue? Penso que muitos morrem de diabetes, não diagnosticada, porque ou não têm um plano de saúde ou sentem dificuldade de procurar um posto de saúde, frequentemente distante do local onde moram ou trabalham.

4- A mesma pergunta sobre a proibição de medir a pressão arterial pelo farmacêutico. Não vejo sentido nisso, principalmente porque a pressão pode ser medida enfiando o braço em um aparelho colocado na farmácia.

5 – Qual sua opinião sobre uma possível lei obrigando que de todo estudante — do curso fundamental até o superior —, se submeta a periódicos exames de vista e audição como forma de evitar ou minimizar déficit de compreensão de textos e de exposições orais dos professores. Muitos “maus alunos” o são porque a má visão em um dos olhos, ou ambos, atrapalham a leitura compreensão dos livros didáticos. O mesmo ocorre com pessoas portadoras de alguma deficiência auditiva e por isso com dificuldade de acompanhar uma aula e aprender novas línguas. Como não ouvem bem, desistem de aprender. Podem chegar a ler e compreender, mas ouvir e falar é outra coisa.

6 – Como vegetariano, com sua imensa capacidade de trabalho físico e intelectual, você recomenda a alimentação vegetariana? Sou um carnívoro consumado, mas parece-me que quando me abstenho de carne minha mente fica mais ágil, embora sinta-me “fisicamente” mais fraco. Seria mera impressão?
Talvez tais perguntas sejam impróprias para um grande jurista. Faço-as porque elas são dirigidas mais ao lado “médico” do grande advogado.

Encerrando, sinto uma sensação estranha. Parece que voltei aos velhos tempos de magistrado na ativa: lavrei minha “sentença”, julgando um grande livro e seu autor.
(16-11-2016)