sábado, 16 de julho de 2016

O “monstrinho” (CPMF) é um cisne, não “o patinho feio”


Lamento discordar desse grande jornal, o “Estadão” — 14/07/2016, A3 —, que assino há mais de vinte anos e que só tem um defeito formal: letras miúdas demais. Mas para que servem as lupas? Importei uma, da China, com 14 cm de diâmetro. Com luz, maravilha! Demorou quase um mês para chegar, mas chegou! Vou pedir outra. O problema não é do jornal, óbvio, mas da minha encorpada cronologia biológica, conjugada com um probleminha ótico especial. No mais, é jornal modelo, corajoso, investigativo e coerente. Sem ele o Brasil não teria avançado tanto na busca da moralização da prática política.

Onde discordo, topicamente, do jornal? Na sua condenação redonda, absoluta, inapelável, da CPMF, não a considerando como início de uma técnica nova, promissora, ótima para simplificar a arrecadação dos tributos. Especialmente — neste momento brasileiro —, para arrancar, mais rapidamente o país do atoleiro fiscal em que foi lançado por anos seguidos de uma administração federal incompetente, demagógica e nada honesta. Interessada mais em se perpetuar no poder do que em beneficiar os pobres. Pobres que agora, após darem o voto, em confiança, sentiram-se enganados e voltaram à antiga pobreza, via desemprego.

Aprecio o invulgar esforço mental, até físico, do competente ministro Enrique Meirelles visando curar — em alguns anos —, uma espécie de “doença” crônica, orçamentária, fiscal e moral que, ultimamente, está em fase agudíssima, gerando inflação, desemprego, insegurança, interinidade, cisão política (!?) dentro da Corte Máxima, ameaças “jararaquianas” de retorno ao poder, Congresso confuso e população mais ainda.

Não haveria, talvez — perguntaria ao lúcido Meirelles —, um meio qualquer, uma “nova técnica” que permitisse a recuperação rápida, em poucos meses, de nossa economia, sem precisar dos longos planos anuais por ele mencionados em entrevistas?

Intimamente, Meirelles sabe perfeitamente o que deveria fazer. Acontece que o notável economista está consciente de que não é um rei, com poder absoluto, e a democracia tem o seu calcanhar de Aquiles: a necessidade de agradar a grande maioria. Como existem mais tolos do que sábios, em todos os países — ninguém pode contestar isso —, e o poder do voto está na maioria, é fácil imaginar a difícil tarefa, mentalmente honesta, de propor o que é certo, ou momentaneamente certo, mas que parece errado. Especialmente em um país já encharcado de tributos. Refiro-me à CPMF, remédio neste momento, amargo, mas que, aplicado conjuntamente com outras terapias, pode retirar mais depressa o país de uma crise que o ridiculariza perante outros países menos devastados por seus governantes.

Neste artigo, sugiro um pouco de “mel financeiro” para compensar o amargor do tratamento severo, à maneira de certos remédios, para menores de 12 anos, que incluem um pouco de açúcar para melhor aceitação das crianças (os revoltados eleitores). Esclareça-se: os laboratórios colocam o açúcar para o bem delas. Sem o leve adocicado, elas não tomariam o xarope. E não há enganação do laboratório porque o açúcar está mencionado na bula. É para a garotada gritar e menos e não fazer escândalo. Não se pode,  bater em criança.

Situações extremas, excepcionais — nosso débito trilionário, se incluídos os juros da dívida —, exigem remédios igualmente excepcionais. Assim como acontece na Medicina, a contundência do tratamento varia conforme o situação real — sem trocadilho — do doente; não conforme a simpatia ou antipatia que ele sente por tal ou qual método de curar. Na situação de “ou operamos ou ele morre!”, é geralmente a família, não o paciente, quem dá a palavra final. O praticamente “condenado” não pode, ou deve, escolher, ao gosto, entre homeopatia, florais, alopatia, quimioterapia, radioterapia, cirurgia não-invasiva, arriscadamente invasiva, transplante, amputação ou até mesmo castração: — “O que você prefere, pergunta o médico” —, já cansado com a dúvida do cliente —: “ser enterrado inteiro, logo, logo, ou ficar vivo, desfalcado em algumas gramas e tomando pílulas de hormônio?”

Talvez eu tenha exagerado na deselegância da última comparação, mas a intenção foi boa, tal o preconceito existente contra um imposto que seria o ovo de colombo para um novo mundo tributário mais simplificado. Que não desperdice tanto tempo e energia com a invencível burocracia, confusa e inerente ao atual sistema fiscal, inchado de normas. Com guias e mais guias, prazos e mais prazos, milhares de páginas de assuntos tributários complexos, suscitando divergências de interpretação e até ensejando a venda de decisões administrativas, como já noticiado na mídia. E pior: obrigando o contribuinte a buscar a madeira e montar, ele mesmo, a própria cruz, sob pena de cadeia. O fisco apenas envia um e-mail, ou publica uma norma, e o contribuinte que se vire, imprima guias, escreva, calcule, etc. Se errar, multa ou xilindró, terror fiscal que nem sempre é mera fanfarronice.  

Na Revolução paulista de 1932 a população, por idealismo, entregava suas joias — até as sentimentais alianças de ouro —, aos revoltosos. Queriam ajudar na compra de armamentos contra um governo que consideravam ditatorial, o de Getúlio Vargas. E esforços assemelhados sempre ocorreram, em qualquer país, quando a população considera válida a filosofia de “vão-se os anéis; que fiquem os dedos”.

Vivemos, hoje, uma situação parecida. Para sair de um profundo fosso econômico-financeiro, Meirelles, faz das tripas coração e esquadrinha todos os cantos da economia para elaborar um deglutível plano de ação que conserte as finanças e torne nosso país mais atraente para investidores externos, com isso criando empregos e restabelecendo a normalidade da economia.

Meirelles apresenta três Planos. A, B e C. Neste último estaria a eventualidade — que gostaria de evitar —, de aumentar impostos. E aí estaria, latente, a CPMF. A respeito desta, reporto-me ao longo artigo — “A volta da CPMF, agora com redução do I. Renda. Depardieu e Putin” — no meu blog, http: //francepiro.blogspot.com/.

Tenham a bondade ou tolerância de ler. Se estiver errado será nos detalhes, nos números, não no sentido, na concepção, que nem é minha. No Brasil, quem vem lutando, há anos, pelo “imposto único” —  e a CPMF seria o primeiro passo — é o jurista Marco Cintra, um idealista que não deixa apagar a chama.

Em apertadíssima síntese, a CPMF — que incidiria nos pagamentos via cheques, cartões de crédito e débito, saques e transferências eletrônicas, tem as seguintes vantagens: ela é praticamente insonegável. É mais fácil, ao governo, fiscalizar bancos financeiras do que milhões de empresários. Retrata a realidade da economia; não prejudica tanto os realmente pobres, que costumam pagar suas compras com dinheiro vivo. Tem um tremendo poder de arrecadação. Digo isso tudo mesmo consciente de que muitos detalhes precisam ser examinados e dosados, com utilização de sofisticadas estatísticas, não ao meu alcance de não-especialista. O que interessa é a avaliação correta, não aterrorizada, desse imposto por pessoas de alta competência. Um deles, entre os melhores, o Min. Henrique Meirelles.

Uma pergunta cuja resposta gostaria que viesse do próprio Meirelles: qual seria, provavelmente, a arrecadação da CPMF se sua alíquota fosse de 1%, ou 1,5%? Outra pergunta: com ela, mais os cortes possíveis nos gastos, mais as privatizações e outras medidas — securitização, etc. — seria possível “consertar” nossas finanças até abril do ano que vem? Se não isso, quando alcançaríamos a normalidade com a ajuda da CPMF? E nem menciono aqui os efeitos da diminuição da roubalheira do dinheiro público, graças à Lava Jato, assunto que não é da alçada de Meirelles.

Se a resposta for positiva — e sei que seria honesta — não seria isso um estímulo para os brasileiros aceitarem esse esforço extra, embora penoso, para “nos tirar rapidamente do buraco? Invoquemos o bem comum.

Na Inglaterra, durante a guerra contra a Alemanha de Hitler, seus habitantes aceitaram com patriotismo, um forte racionamento. Dois brasileiros que lá estiveram, nessa época, foram a um restaurante caro e cada um pediu um bife. A carne foi servida e, como estava saborosa, os brasileiros pediram outro bife. O garçom disse que não poderia fazer isso porque a lei, por causa da guerra, só permitia aos restaurantes, servir um bife para cada freguês. Os brasileiros argumentaram que essa lei era tola porque o cidadão inglês poderia, terminada a refeição, ir a outro restaurante e pedir outro bife. O garçom respondeu que nesse caso o freguês não seria inglês. Quem relatou esse fato, em jornal, foi o inteligente João Melão Neto.

Não acho impossível que o contribuinte brasileiro, melhor esclarecido pela mídia, venha a aceitar — como remédio amargo mas bem intencionado, evitando sonegação e não “desviável” —, a CPMF, que pode, até, futuramente, ser aceita em definitivo, desde que substituindo um ou uma série de tributos. Assim como a geringonça voadora de Santos Dumont foi o ovo da hoje sofisticada aeronáutica — que suplanta a velocidade do som e transporta até elefantes —, a CPMF será um dia considerada o “14 Bis” tributário capaz de evitar a sonegação e nos livrar da burocracia e roubo do dinheiro público antes que chegue ao tesouro nacional.

Menciono, agora, o “açúcar” já referido, capaz de tornar menos amargo o promissor remédio que precisa ser testado na prática. Esse “adoçante” seria a drástica e concomitante redução de algum tributo que nos incomoda muito, todo ano: a declaração de rendimentos. Lembrei-me — não sou, obviamente, um tributarista — do Imposto de Renda, com alíquota máxima de 27,5%, que, no caso dos assalariados, é descontado no próprio holerite. Se a CPMF for acoplada à simultânea redução, por exemplo, do I. Renda na fonte, com alíquota — mero exemplo — de 10% para todos os ganhos, esse “alívio” tributário certamente diminuirá a indignação pública contra “um maldito novo imposto!”

Obviamente, para conciliar o objetivo de aumento de tributos com a simultânea diminuição do IR na fonte será preciso, sempre a título de exemplo, que a CPMF seja fixada em 1,5%, sendo 1% para o governo aplicar onde for mais urgente e necessário, e 0,5% para reduzir o percentual do IR.

Vladimir Putin, apesar de um ex-comunista disciplinado, fixou, na Russia, poucos anos atrás, o percentual de 10% para todo o ganho anual, seja ele muito ou pouco. Isso atraiu Gerard Depardieu para a cidadania russa, quando ele soube que na França havia a intenção de elevar para 75% o percentual desse tributo. Se Putin aumentou, o percentual depois, por causa do cerco econômico da Rússia, não sei. Sei apenas que se o Brasil decidisse padronizar, em definitivo, tal alíquota do imposto sobre rendimentos, milhares de fortunas, de todo o planeta, afluiriam, em massa, para viver e/ou investir no Brasil.
Se Meirelles considerar mais eficaz “compensar” o amargor da CPMF com outro tributo — em vez da redução do IR na fonte —, nada a opor de minha ignorante parte. Pensei no IR porque é um tributo que mexe diretamente com o bolso (alma) do contribuinte. Com outros tributos isso não acontece.   

Como este artigo já se esticou demais, fica aqui a “consulta” ao brilhante Henrique Meirelles, tido como um trabalhador compulsivo e capaz de avaliar quantitativamente a “ideia louca”.

Ideias são como ovos. Olhando-os não sabemos no que se tornarão.

Será uma pena se este “palpite tributário” não chegar aos olhos ou ouvidos de Meirelles. Ninguém poderá dar informação mais exata do que ele, que conhece os detalhes do nosso fenomenal endividamento.

(16-07-2016)








terça-feira, 12 de julho de 2016

Oportunidade para autodidatas



Uma sugestão aos legisladores mais inovadores — e corajosos...

Conversando com algumas pessoas, preponderantemente jovens de limitados recursos financeiros, culturalmente ambiciosas — refiro-me à cultura transmitida por livros, revistas especializadas e internet — é fácil constatar a frustração pela impossibilidade — estritamente burocrática — de, após dedicada leitura, por conta própria, não poderem comparecer a uma banca examinadora de uma Faculdade, que nunca freqüentaram, pagar as taxas necessárias e comprovar — sem sombra de dúvida, suborno ou “pistolão” —, que são detentoras dos conhecimentos necessários ao exercício de uma profissão liberal.

Impedidas, por motivos financeiros, ou outros, de freqüentar uma Faculdade durante quatro, cinco ou seis anos, tais pessoas se perguntam, entre revoltadas e desanimadas, por que não podem provar seus conhecimentos frente a uma severa banca examinadora. Se comprovado o conhecimento, receberiam um diploma com o mesmo valor daquele concedido aos alunos mais bafejados pela sorte financeira quando do nascimento. Elas se perguntam se a assimilação do conhecimento depende inexoravelmente do contato dos fundilhos da calça com uma carteira de sala de aulas.

História, Sociologia, Economia, Filosofia, Literatura, Matemática, Direito, Relações Internacionais, Psicologia, Línguas e inúmeros outros ramos do conhecimento dispensam a utilização de instrumentos mecânicos e laboratórios que poderiam justificar a exigência de freqüentar uma universidade. Mesmo as escolas que exigem contato direto, físico, com o objeto de estudo, como a Medicina, a Química, a Física, a Engenharia, etc., têm, suponho, uma grande preponderância de horas empregadas em ouvir dissertações de professores, algo que pode ser substituído pela leitura de livros, apostilas ou — se assim preferir o interessado —, por exposições orais gravadas em videocassetes, CDs e DVDs. Nos casos em que não basta o conhecimento teórico, absorvido em textos, o candidato já aprovado na teoria poderia freqüentar, durante alguns meses — algo bem mais factível —, as aulas estritamente práticas. Com esse complemento de “prática” — também sujeito a um posterior exame específico para aprovação — não haveria como negar, honestamente, que o candidato estaria em igualdade de conhecimentos com aquele que freqüentou um curso superior por alguns anos.

Alguém poderia argumentar que se o ambicioso cultural, de poucas posses, está realmente interessado em uma formação superior pode perfeitamente prestar vestibular em universidade pública, que dispensa o pagamento de mensalidades. A falta de recursos pecuniários não seria obstáculo para a formação superior.

Ocorre que muitos jovens — e também os “maduros” e “velhotes” —, precisam trabalhar. Contribuem, ou arcam sozinhos, com o ônus de sustentar eles mesmo e/ou parentes, cônjuges ou companheiras. Não podem se dar ao luxo de passar as manhãs, ou noites, ou o dia inteiro, freqüentando escolas. Longos cursos noturnos, para quem trabalha o dia todo, exigem uma determinação e sacrifício pessoal — e da família — invulgares. Muitos desistem pelo caminho, conseqüência não da dificuldade das matérias mas do cansaço físico e mental, do tempo excessivo perdido no trânsito, queixas da família ou, principalmente, dificuldades financeiras, pois a maioria desses cursos são particulares.

Pudesse o interessado — autorizado pela legislação — estudar sozinho, seguindo um ritmo próprio, e marcar, juntamente com a Faculdade, a data de seu exame, outro seria o estímulo para persistir no estudo, como autodidata muito acima do patamar de simples “curioso”. Em conseqüência da sistemática hoje vigorante, boa parte do talento nacional fica desperdiçado. Não há estímulo para aprender coisas mais sérias e difíceis. O jovem, o maduro ou mesmo idoso lúcido se perguntam: “Por que vou me aprofundar em tal conhecimento se não tenho dinheiro, tempo ou paciência para freqüentar uma Faculdade? Será uma perda de tempo tanta dedicação. Não posso me conceder esse luxo. O meu saber servirá apenas como hobbby .  Houvesse a perspectiva de, pelo esforço individual, romper a barreira que sufoca a ambição cultural meritória, muitos encarariam a possibilidade animadora de um passo além, contando apenas com seu próprio valor.

A presente sugestão tem especial pertinência em um país como o Brasil, em que há incontáveis feriados e “feriadões”, com “emendas” suprimindo o trabalho nas sextas-feiras ou nas segundas, quando há feriado nas quintas ou terças-feiras. Isso, sem falar em certas greves que se estendem por meses. E não nos esqueçamos dos longos períodos de ociosidade forçada pelo desemprego, em que o ambicioso cultural — cultural mas de senso prático — nem pode se inscrever num curso regular porque talvez tenha que interrompê-lo em razão do surgimento de uma vaga, com volta ao trabalho. Há quem fique desempregado por semestres, sem culpa própria, período em que convém não efetuar gastos educacionais sem uma certeza de retorno. Se, em vez de o desempregado ficar “na fossa”, como se diz, ele pudesse estudar alguma coisa que melhor o qualificaria profissionalmente, sua depressão ficaria bem aliviada. A ociosidade laboral teria deixado de ser mera perda de tempo.

Quando ainda freqüentava a Faculdade de Direito, nos anos cinqüenta, fui informado — não sei se corretamente — que na Alemanha havia a possibilidade, aqui inexistente, do cidadão estudar sozinho determinados assuntos e, sentindo-se seguro, pedir para ser examinado. Pagava uma taxa e enfrentava os examinadores. Não sendo aprovado, continuava estudando e quando se considerasse em condições inscrevia-se para novo exame, obedecido, claro, o calendário da universidade. Não sei se a informação era correta e se isso ocorria apenas provisoriamente, vez que a II Guerra Mundial havia desorganizado demais os cursos superiores da Alemanha.

Não vejo porque não se permitir essa ”abertura” no Brasil. Seria a democracia cultural em toda sua plenitude. Se, por exemplo, o entusiasta de História der, frente à banca examinadora, um verdadeiro “show” de conhecimentos históricos, por que negar a ele o título de historiador, com direito a lecionar e transformar seu conhecimento em profissão?  Em algumas da Faculdades acima mencionadas pode, talvez — por imperfeito conhecimento do signatário deste artigo — ser equivocada a presente proposta, tendo em vista a estreita vinculação da teoria com a prática, com o manejo físico em laboratórios. Mesmo que isso ocorra, como exceção, em algumas profissões, em outras matérias, essencialmente teóricas, livrescas, não há desculpa para negar-se ao cidadão o direito de estudar por conta própria e pedir para ser examinado. Poderia ele pedir um exame abrangente de todo o curso, ou da matéria relativa a um ano ou semestre.

Um meu ex-professor de Direito, falecido muitos anos atrás, argumentava que no Brasil as boas iniciativas logo ficam “desmoralizadas”, ou “avacalhadas” — se não me engano foi esse o termo cru que usou. Segundo ele, o nível de ensino — que já não lhe parecia bom —, iria decair ainda mais, se dispensada a freqüência ao curso universitário. “Aprovações”, ou “diplomas” seriam vendidos como biscoitos. Acrescentava que com a freqüência obrigatória a uma faculdade pelo menos havia um contato pessoal entre alunos e professores, alguma “osmose” acadêmica. Um contágio cultural “pelo ar”, contágio que não existe quando o interessado estuda sozinho. A objeção deve, hoje, ser encarada com reserva porque alguns professores dispensam os alunos mais desinteressados e indisciplinados após assinada a lista de presença. Tais alunos são mais úteis fora do que dentro das salas de aula. Querem só o diploma. Mesmo quando o aluno assiste as aulas o contato pára nisso. Alunos e professores não ficam conversando, trocando idéias. Esse diálogo é lenda.

Quanto à “desmoralização” desses exames, pode-se argumentar que a legislação teria meios de neutralizar essa alegada má-fama brasileira. A lei estabeleceria que as bancas teriam, forçosamente, que incluir entre os examinadores, uma preponderância de professores especialmente indicados pelas melhores universidades. E teria que ter também representantes daquela profissão relacionada com o exame de habilitação.

Não é possível que no Brasil de hoje não se encontrem algumas centenas de pessoas — professores e profissionais — resistentes ao suborno, ao nepotismo e ao interesse de classe profissional para compor tais bancas. Se alguém disser que a corrupção é inescapável, uma espécie de maldição genética nacional — o que absolutamente não é exato — que se decrete, então, a falência do país e sejam abolidos todos os exames, até mesmo os vestibulares e concursos públicos de maior prestígio. A discutível e microscópica “osmose cultural” da convivência universitária não se equipara ao estudo motivado do cidadão que pretende conquistar o seu lugar ao sol, mesmo não dispondo de tempo, paciência ou recurso para freqüentar um curso superior.

A “abertura” aqui proposta serviria também para os casos de profissionais já bem realizados, sem problemas financeiros, com idade algo avançada e que não se sentiriam bem em uma classe de jovens buliçosos Seriam peixes fora d’água. Um desses “vovôs”, funcionário público aposentado, estudante de Direito, certa vez ouviu a espirituosa mas pesada indagação de um professor de pouca sensibilidade: “O senhor pretende advogar no céu?”

Não se quer, aqui, desestimular o estudo regular nas Faculdades do país. É evidente que a orientação dos mestres poupa muita perda de tempo. O Autodidatismo tem suas limitações. Aliás, aprovada uma lei autorizando esse “exame direto”, sem obrigatória freqüência às aulas, o candidato poderia manter contados mensais — ou na freqüência mais pertinente — com “orientadores”, no sentido de ler tais ou quais livros, pesquisar isso ou aquilo, etc.

O normal e recomendável é que a vasta maioria dos interessados em uma formação superior freqüente os cursos e se submetam a exames periódicos, conforme prática usual. A sugestão contida neste texto é para pessoas em condições especiais — definidas por elas mesmas, frise-se, não pelo governo — e que prefiram o “atalho” especialmente árduo de estudar sozinhas, algo que exige muita determinação, disciplina e bons hábitos de leitura. Tais pessoas existem, embora em número restrito.

Algumas pessoas “sabem” ler, estudar; outras, não. Construir, o governo, muitas bibliotecas públicas sem, ao mesmo tempo, ensinar a juventude a “ler”, realmente, desperdiça dinheiro. Pouca adianta dar o “alimento’ sem fornecer a “dentadura” mental a quem dela necessita.  Estatísticas provam que o Brasil, nesse item, não se destaca. Boa parte dos alfabetizados não consegue entender, com precisão, o que lê. Em conseqüência, escreve mal. É impossível ser bom redator sem ser bom leitor. A “mecânica” visual e cerebral da leitura precisa ser adequada a cada pessoa. Daí a necessidade de o MEC se interessar pelo assunto e estudar como solucionar o problema da deficiente assimilação dos textos naquelas pessoas, de qualquer idade que, sendo de inteligência normal, querem saber, pela via impressa, mas têm alguma dificuldade, e não propriamente preguiça, para estudar. Quando se fala em dislexia, ela mesma é mal compreendida, uma dislexia dentro da dislexia.

Não se trata, frequentemente, de dislexia, ou de menor inteligência, o fato de algumas pessoas lidarem mal com textos impressos. É mais uma questão neurológica, contornável com métodos práticos. Está na hora de o governo pensar em instituir algo como “clínicas de leitura”, que orientem os interessados, sejam eles estudante ou autodidatas. A Finlândia, pouco tempo atrás, foi classificada em primeiro lugar em termos de compreensão de textos. O Brasil estava em péssima colocação, e assim continua. Mas isso não significa que o finlandês médio é mais inteligente que o brasileiro médio. Talvez as características da língua finlandesa obriguem uma leitura mais atenta que o português, provocando mais atenção. Talvez a nutrição mais adequada influa bastante no aprendizado. Conheci pessoas bem inteligentes que nunca conseguiram ler um livro até o fim. É um assunto, infelizmente, pouco pesquisado. Isso explica porque alguns maus alunos acabam se destacando depois que deixam a faculdade. É que, com persistência ou mero acaso, descobriram “a chave” específica para seu problema particular de como transformar palavras impressas em conhecimento efetivo de quem lê as palavras.

Finalmente, cabe tranqüilizar a valorosa — e injustiçada — classe dos professores universitários dizendo que ela não precisa se preocupar, substancialmente, com uma eventual — e altamente improvável — adoção da abertura legal aqui sugerida. As Universidades não se esvaziariam. Somente uma reduzidíssima minoria de aspirantes à cultura teria a tenacidade e a capacidade — melhor dizendo: “habilidade” — para, sozinhos, extrair de sisudos livros didáticos os conhecimentos necessários para impressionar as bncas. Bancas provavelmente tendentes a “dar uma lição no arrogante que se atreve a nos dispensar”. Essa tendência seria útil, valorizaria tais exames. Quem neles passasse seria mais procurado, profissionalmente.

Creio que se a banca se convencesse do real valor do candidato, a prevenção se converteria imediatamente em admiração. Expressa de pé e com um forte abraço no provável futuro colega. Professores são, no geral, idealistas. Sentem fascinação pelo saber, mesmo que assimilado por formas não tradicionais.

Fica aqui a idéia. O que fazer com ela foge da minha alçada.

(03-01-2008)








O leitor, algo espantado com essa proposta “esquisita” pode estar se perguntando?





segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um projeto visando intimidar a Lava Jato

O Brasil merece um troféu no campeonato de caradurismo legislativo. Prova de que alguns legisladores consideram imensamente estúpidos seus concidadãos. Há, nesse projeto de lei, um atestado de desprezo da opinião pública mais esclarecida e a crença de que todos os brasileiros, mesmo os mais intelectualizados, sofrem do chamado “analfabetismo funcional”.

O presidente do Senado, Renan Calheiros, um político simpático e muito inteligente, decidiu — talvez pressionado por políticos preocupados com a Lava Jato — desengavetar e apressar a tramitação de um projeto de lei, de 2009, prevendo punições a crimes de abuso de autoridades de agentes da administração pública, de magistrados, de membros do Ministério Público e do Poder Legislativo.

O que pretende — pelos resumos da imprensa — esse projeto de lei?

Simplesmente o seguinte: considerar crime “o cumprimento de mandados de busca e apreensão de forma vexatória”.

 Não há nada mais subjetivo do que a expressão “de forma vexatória”. Essa dubiedade (proposital) inibirá o oficial de justiça, ou o policial, na hora de fazer a apreensão. Não faltarão ameaças — declaradas ou veladas —, dos advogados dos investigados, presentes no local, ou do próprio investigado, alertando que eles, funcionários ou policiais, mesmo com o mandado em mãos, serão processados criminalmente porque estão agindo “de forma vexatória” e por isso poderão perderão seus cargos, além de, possivelmente, se tornarem réus em ação de indenização por danos morais. Dirão, por exemplo, que agem com “grosseria desnecessária”, com isso assustando as pessoas da casa ou do escritório onde ocorre a diligência.

Argumentarão, ainda, que tal ou qual arquivo ou documento não pode ser apreendido porque não tem relação com a busca autorizada pelo juiz e que a diligência precisaria ser adiada porque os filhos menores e a esposa do investigado estão assustados, gritando ou chorando, traumatizados, marcas psicológicas que não desaparecerão. Ou, ainda, que o pai ou o velho sogro do suspeito, cardíaco, ficou tão abalado com o “desnecessário aparato” policial que o velho parece estar na iminência de um infarto, sendo desaconselhável prosseguir na diligência. Se o velho morrer, problema à vista... Mil situações, com aparências jurídicas bem articuladas, visarão inibir e complicar a busca ou a apreensão. E o policial, lembrando do velho ditado de que “a corda sempre rompe no lado mais fraco”, preferirá não assumir “riscos desnecessários”.

O malfadado PL do ano 2009 prevê pena de detenção de um a quatro anos no caso de “cumprimento de diligência policial em desacordo com as formalidades legais”. Outra variante — também vaga, subjetiva — da intimidação que põe em risco funcional quem se atreve a cumprir qualquer mandado contra suspeitos de crimes do colarinho branco, ou chefões do crime organizado, sempre economicamente poderosos e muito bem defendidos.

 Considerando a extrema complexidade e incerteza do direito brasileiro, a pressão exercida pelo investigado, ou por seus advogados, nesses momentos de tensão, teria que ser contrabalançada com a presença — impossível, ou problemática —de um ou mais promotores, ou jurisconsultos, designados para acompanhar os policiais e rebater as críticas e ameaças “jurídicas” dos investigados, considerando que os policiais, ou oficiais de justiça, não são especialistas em direito penal, processual penal, constitucional e tributário. E as dúvidas podem se estender à informática e à contabilidade, conforme exija a natureza da prova objeto de apreensão. Esta pode envolver computadores e livros contábeis. Cada objeto apreendido ensejaria discussão e os policiais, sem assistência “técnica e jurídica”, ficariam desnorteados, temendo errar na apreensão e depois pagar caro com um processo criminal nas costas.

O aloucado projeto de 2009 ainda prevê pena criminal a quem negar, sem justa causa, acesso da defesa à investigação. Outro absurdo, porque se os advogados dos investigados conhecerem todos os planos da investigação obviamente alertarão de imediato seus clientes para que escondam ou destruam, imediatamente, determinadas provas antes da chegada dos investigadores. Se o advogado, sabendo que determinada prova, se apreendida, condenará seu cliente e, mesmo assim, não defender seu interesse, alertando-o, jamais será perdoado pelo cliente, que se considerará traído por quem deveria defende-lo. Negar, “sem justa causa” — outra fonte de dúvidas —, acesso da defesa à investigação também é uma forma de intimidação de delegados e promotores de justiça porque a vagueza da expressão pode ensejar complexas discussões. E quanto mais complexas, maior o grau de inibição dos agentes da lei.

É claro que policiais, oficiais de justiça e mesmo magistrados e promotores podem, eventualmente, abusar no exercício de suas funções. Quando isso ocorre, a mídia, sempre vigilante, publica o fato e as vítimas reclamam, não ficando o abuso em brancas nuvens. Mas intimidar com cadeia o cumprimento de mandados e ordens judiciais, em termos tão vagos — e impossíveis de descrever minuciosamente, de antemão —, demonstra uma intenção clara de travar ou fortemente inibir a tão adiada luta contra o crime organizado. Quando houver abusos, realmente, eles serão sempre denunciados e investigados.

 Se houvesse um projeto de lei dizendo que “qualquer advogado que se revelar fraco   ou abusivamente ousado na defesa do cliente, predispondo o julgador a condenar o cliente — resultando em condenação —, será processado criminalmente”, certamente a valorosa classe dos advogados reagiria aos gritos, de pé, contra esse difuso e absurdo perigo na prática de tão nobre profissão, já arriscada por sua própria natureza.

(04-07-2016)