sábado, 11 de setembro de 2010

Fé, política, ciência: espinhosas ligações

Sabedoria tradicional recomenda não discutir, comparar, prever e muito menos criticar — isso já seria o horror dos horrores! — religiões, política e até mesmo futebol. Principalmente religiões, campo minado — pode-se nele perder mais que as pernas... —, adequado para a formação de legiões enfurecidas contra qualquer mínima observação crítica — “Cuidado com a boca, irmão!”.

Não obstante o risco, como negar a imensa influência das concepções religiosas na vida dos povos? Quantos milhões já morreram e ainda morrerão — talvez nuclearmente incinerados —, não por causas naturais mas como conseqüência, próxima ou remota , de filosofias ou proselitismos oriundos de textos dados como sagrados? No até agora insolúvel conflito árabe-judeu, na Palestina, há um bocado de subentendido religioso na impasse. Uma das partes, ou ambas — as objeções deslocam-se como areias do deserto, assopradas por políticos — acham que a santidade de Jerusalém não pode ser fatiada e a humanidade ainda não avançou o suficiente para impor uma decisão “de fora”, oriunda de uma corte de justiça internacional, como seria lógico e natural quando as partes não conseguem chegar a um acordo.

Há milênios, nuvens mentais carregadas de eletricidade pairam sobre cabeças humanas magnetizadas por convicções religiosas, supostamente lógicas e morais, sugerindo que os “inimigos de nossa fé, por estarem absurdamente ‘errados’, devem ser excluídos do rol dos vivos”. Haveria, nessa eliminação, apenas “profilaxia moral”. Para tais obcecados, seria pecado, crime e covardia transigir com o “erro” e sua conseqüente “maldade”.

De início, afasto da arena deste texto sobre paixões dominadoras o futebol, esporte que, para minha perplexidade, é capaz de levar cidadãos — equilibrados em tudo o mais — às lágrimas, ao enfarte, ao êxtase da vitória, ao vandalismo incendiário, às fraturas de crânio e ao homicídio. Tudo isso, espantosamente, quando o time do efusivo torcedor perde, ganha ou até mesmo empata; na alegria ou na tristeza, tanto faz. O guloso “demônio”, disfarçado em bola, não escolhe situações. Quer apenas gargalhar loucamente, olhar desvairado, utilizando porretadas e coices humanos, de preferência entre carros em chamas, seu habitat natural. Um comprovante a mais de que o homem dito civilizado não conseguiu se libertar de seus instintos mais ancestrais, entre eles o desejo de ser admirado pela violência.

Quanto às religiões, sempre impregnadas de fortes emoções — embora de outra natureza, voltadas, em tese, para o bem — existem as mais e as menos serenas. As mais e as menos preocupadas com o retorno financeiro da pregação. Preocupação fundamentada — às vezes exageradamente — na necessidade prática de dinheiro para a difusão de crenças que resolverão todos os problemas de seus seguidores: de saúde, de dinheiro e até mesmo de amor.

Deixando de lado esporádicos abusos individuais de difusores da fé — a grande massa de adeptos é sincera e bem intencionada —, fato inegável é que o homem, há milênios, sente a necessidade de um protetor infinitamente inteligente, ubíquo, poderoso, bondoso, compreensivo, justo e instantaneamente acessível — via oração —, sem os conhecidos intermediários burocráticos que atormentam os cidadãos que pedem algo a alguém, governo ou pessoa jurídica. Quem tem fé conversa diretamente com seu deus, sem risco de grampos e cobranças de lição de casa.

Sob esse ângulo, de amparo espiritual, a fé é insubstituível, independentemente de sua correspondência fiel com a realidade científica. Auto-ajuda que nos conforta e fornece algo valiosíssimo: a esperança. Como tirar — pergunta-se —, impiedosamente, das mãos do náufrago desesperado a única taboa que o impede de se afogar na própria angústia? Dizer ao pai da criança cancerosa, ao profissional maduro e desempregado, ou à velhinha, com início de Alzheimer, que é melhor deixarem de ilusões e encarar a dura realidade: a morte da criança, o desemprego permanente e a loucura da velha? Além do mais, não esquecer que em toda religião, digna desse nome, está impresso um código moral que é ou já foi útil à humanidade.

Dizia Rui Barbosa que o código penal cuida dos crimes públicos e a religião se encarrega dos crimes privados. Presumo que, em média, o mafioso italiano — com algum resquício de cristianismo incutido na alma quando criança — é menos perverso que o gangster russo, ou o membro da Yakuza japonesa, criados desde o berço na visão estritamente materialista. O mafioso baleado, sentindo fugir o sangue e a vida, provavelmente temerá um julgamento final. Talvez até reze. O criminoso profissional russo e o japonês, convictos de que nada mais são que carne organizada, apenas lamentarão não continuarem vivos.

Pessoas sinceramente religiosas, desde que pacíficas e tolerantes— não o sendo serão mais soldados, guerrilheiros ou terroristas — não deveriam, jamais, serem atacadas ou menosprezadas intelectualmente por serem tais, mesmo quando sua fé se apresenta com fundamentos ingênuos. Isso porque um crente autêntico, mesmo analfabeto, revela — só por acreditar em Deus —, algo moralmente precioso: o espírito de justiça. — “Como é possível”, pergunta-se o crente autêntico, “não haver um Deus quando se constata que algumas pessoas, más e astutas, passam pela vida só gozando e abusando, enquanto milhões de outros apenas sofrem, carregando as cruzes da pobreza,ignorância, doença, azares e injustiças de toda ordem? Seria injusto, ‘ilógico’, não haver um julgamento final, com castigo ou recompensa, conforme o passado de cada um”. Revolta-o a mera possibilidade de que bons e maus tenham igual fim apavorante: o nada!

Frente a argumentos desse tipo os agnósticos respondem que lógica, ciência e dura realidade nada têm a ver com aspirações de justiça. De acordo, tecnicamente. Fatos são fatos, mas a compaixão — elefantes foram filmados fazendo esforços inúteis e desesperados para libertar uma elefanta com a perna presa acidentalmente em um pneu amarrado — é uma qualidade imensamente útil à preservação e conforto espiritual da raça humana. Como já lembrou alguém, um faminto não precisa conhecer o fenômeno científico da digestão para satisfazer sua fome. Ao homem comum interessa muito mais a felicidade — sua e de sua família —, que o conhecimento profundo da ciência, acessível a uma microscópica minoria. Diz a BBC de Londres, segundo um jornal de ontem — “Estadão”, pág. A17 — que em 2009, no Japão, 32.000 pessoas se suicidaram. E o nível cultural japonês é dos mais elevados. Se não há engano na cifra, convenhamos que é gente demais torturada pela falta de perspectiva. A maior cultura geral e científica não as salvou da morte voluntária.

Alguns autores norte-americanos atuais empenham-se vivamente em demonstrar que Deus não existe. A argumentação dele é irresistível, sob o prisma lógico. De fato, como eles dizem, as religiões não são propriamente “escolhidas” por seus adeptos. Recebem-nas dos pais. Não é mera coincidência que nos países cristãos as crianças se tornem adultos cristãos, o mesmo ocorrendo entre judeus e muçulmanos. Outro argumento forte dos ateus está na crítica àquele que diz ter sido “salvo por milagre”, em um desastre que matou dezenas ou centenas. Tais críticos ponderam que um Deus justo não teria motivo algum para tanto favoritismo e até mesmo impediria o desastre. Esses mesmos autores argumentam ainda que se houvesse um Deus justo — e um deus injusto já seria a negação da idéia — não existiriam tantas doenças e organismo maléficos. Perguntam: qual o benefício, para o homem — sua obra-prima — das verminoses, lepra, tuberculose, parasitas, debilidade mental, aleijões, loucura e taras em geral?

Digo tudo isso apenas como crítica ao “tom” algo agressivo da pregação atéia. Aos “modos” da doutrinação. Não deve haver pressa em convencer milhões de pessoas de que elas rezam apenas para os próprios ouvidos. Eu não me sentiria moralmente bem se fosse capaz de convencer — um idoso principalmente —, de que ele não pode esperar nada após a morte. Que ele mude opinião, quando e se quiser. Mesmo porque a orgulhosa Ciência não pode se gabar de estar carregando apenas certezas. Fenômenos corriqueiros ainda não têm explicação: por exemplo, por que os corpos se atraem, em vez de se repelirem? O que ainda desconhecemos é mil vezes maior que o conhecido. Só o futuro dirá. Dez anos atrás alguém falava em “matéria escura” no universo?

Com alguma freqüência, opiniões científicas dadas como incontestáveis, ou alvissareiras, são substituídas por outras de sentido oposto. A hipótese do “Big Bang” ainda não me parece convincente. Quem sabe, os cosmólogos logo nos dirão que talvez não tenha havido “explosão inicial” alguma; que o universo apenas “arfa”, como um pulmão cansado, os astros se afastando e se aproximando. Não obstante, o tatear na busca da verdade deve ser estimulado, sem interferências políticas nem religiosas porque quanto mais o homem conhecer o ambiente em que vive — inclusive ele mesmo, artista principal na tragicomédia —, melhor dominará os obstáculos que o limitam e atormentam. Se, em alguns momentos, a senhora ciência defrontar-se com a senhora fé na mesma calçada estreita, será a fé que deve ceder a passagem, não o contrário. Esse gesto da fé, embora doutrinariamente doloroso, certamente trará proveito à condição humana. Permitirá um aperfeiçoamento da própria religião, na parte que ela tem de melhor: sua aceitação da verdade. Todo corpo vivo — e as religiões também são “vivas”, em certo sentido — precisa evoluir, para não perecer. Lamento dizer, certa ou erradamente, que o declínio de algumas religiões na captação de novos adeptos deve-se à equivocada “sabedoria” da rigidez doutrinária. Se o universo inteiro está em constante mutação, porque só as religiões seriam as únicas exceções nesse sentido?.

Quase finalizando, arrisco dizer, como simples “filósofo amador”, que nas próximas décadas a ciência investigará intensamente a “inteligência” inata, espontânea, “embutida” em todos os seres vivos; tenham eles, ou não, um cérebro. Essa inteligência “difusa” — provavelmente não outorgada por qualquer poder sobrenatural, vez que completamente amoral — explica a perfeição anatômica e funcional de toda a vida, inclusive do vírus da AIDS, bactérias patogênicas, escorpiões, aranhas venenosas, cobras idem, morcegos hematófagos, mamíferos em geral e até mesmo plantas venenosas. As plantas, sem cérebro, sabem o que lhes convém quando se inclinam buscando um raio de sol que passa perto. Biólogos dizem que as plantas choram quando cortadas. A meu ver, aparentemente, essa inteligência não se origina de um deus, é simples conseqüência da crescente complexidade de todo ser vivo, campo promissor para os cientistas da Biologia. Mas se alguém disser que essa inteligência difusa é o próprio Deus, nada a opor de minha parte. Questão de nomenclatura.

Compreendo que as religiões — assim como as ciências, política e tudo o mais —, se manipuladas por cérebros exaltados , podem sofrer enormes escorregões e tombos, como foi o caso do pastor americano que pretendia queimar 200 cópias do Alcorão no dia 11 de setembro. Felizmente, desistiu a tempo, pressionado pelo governo americano. Escorregou mas acabou não caindo. O incidente lembra uma narrativa engraçada, ficcional, que aqui reproduzo para abrandar eventual agitação de espírito de algum leitor extremamente sensível aos debates sobre religião.

Um religioso, exaltado mas com pouco juízo — algo raro no mundo real —, fazia uma pregação em que dizia que tudo que existe na face da terra é perfeito, porque o Criador não transigiria com qualquer imperfeição na sua própria obra. Nesse momento, uma voz, no fundo da sala, protestou com um ronco indignado. Era um corcunda que, agressivo, ficou de pé, posicionou-se meio de lado e perguntou ao pregador: — “Tem certeza? O que o senhor acha dessa minha corcova?”

O orador não titubeou: — “Do que está reclamando? Parabéns! Nunca vi corcunda mais perfeita que a sua!”

Voltando ao sério, resumo o artigo nas seguintes palavras: que cada um faça o que lhe traz mais satisfação interior. Creia ou não creia. Tolere crenças contrárias. Quem sabe você pensaria igual se estivesse no lugar da outra pessoa, com passado e carga genética diferentes da sua. E, se você for ateu cultíssimo, não fique aborrecido com as supostas “ilusões’ dos crentes. Ilusões também são úteis, se não agressivas. Todas as artes não passam de ilusões e ninguém jamais pensou em elimina-las só porque não passam de “fantasias”. Estas também têm seus direitos, se beneficiam os homens de alguma forma. Defenda apenas o direito da Ciência prosseguir na busca da esquiva verdade, apesar de, por vezes, ela também tropeçar.

(10-9-2010)








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