quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Solução do falso “problema” de prender, ou não, antes do trânsito em julgado da condenação.

Tudo no Brasil é oito ou oitenta, quando o bom senso indica sessenta, ou outro meio-termo. Inclusive o conflito mencionado no título. Falso, porque cada caso é um caso, como admite, com outras palavras, o sempre tranquilo, corajoso e quase “revolucionário” juiz Sérgio Moro na entrevista ao Estadão de 28-08-2017, pag. A4.

Na entrevista, Moro declarou “(...) admitir a suspensão dessa execução” (da prisão na segunda instância) “somente em casos excepcionais, quando for apresentado um recurso a um tribunal superior que tenha reais chances de êxito”. Quis dizer: quando os argumentos do réu, lido pelos desembargadores, forem sérios, merecedores de reflexão, não obviamente protelatórios ou afrontosos à prova, ele, Moro, admite que a prisão não seja automática, como regra invariável. Revelou elogiável prudência, sem prejuízo da sua reconhecida firmeza.

Resumindo — porque o brasileiro, de modo geral, odeia textos longos e talvez não prossiga lendo — a solução que proponho é a seguinte: como norma genérica, a condenação em segunda instância implica em recolhimento à prisão. Essa orientação “básica” desestimula o tradicional abuso da protelação como meio “prático” de defesa. Prático, porque é demorado o tempo do caso eventualmente chegar ao STF, agravando a morosidade da justiça, desprestigiando-a e incentivando a impunidade.
Porém, se o caso concreto comporta alguma dubiedade da prova — ou da correta interpretação do direito —, a decisão da apelação poderá ser no sentido de não decretar a prisão, mesmo condenando o réu. A não ser, claro, que não haja recurso contra o acórdão condenatório, que transitará em julgado e terá de ser cumprido em seus termos.

Insistindo: a prisão do réu quando condenado na segunda instância, não será automática, norma invariável. Valerá como orientação geral, mas não obrigatória se justificado, no acórdão, mesmo em termos genéricos, porque o condenado poderá recorrer em liberdade. Em termos genéricos porque o relator do acórdão não pode se transformar em uma espécie de defensor do réu, mostrando pontos dúbios da acusação.

Exemplos indicativos de dubiedade do caso, dispensando a prisão: o réu foi absolvido na primeira instância mas condenado na segunda; vacilação e divergências sobre caso semelhante na jurisprudência; prova muito controversa; forte conflito doutrinário das leis aplicáveis ao caso e condenação não unânime, na apelação.

Alguém dirá que se há alguma dúvida, o tribunal deveria absolver, com base no “in dubio pro reo”. Mas dirá errado, porque mesmo existindo dúvidas, há base suficiente para condenar. Mais certezas do que dúvidas. Na justiça não há “empate”, alegando o juiz que o caso é “insolúvel” e por isso não o julga.

Finalmente, há dois pontos ainda a considerar: a decisão, no acórdão,  de não prender — apesar de condenar — deve ser unânime, ou por maioria? Os promotores, mais “linha dura”, optarão pela necessidade de unanimidade para dispensar a prisão. Os defensores, mais “linha mole”, dirão que havendo voto vencido, pró-absolvição, o réu não será preso. Na minha desautorizada opinião, considerando o tradicional sentimentalismo dos juízes brasileiros, será necessário a unanimidade do acórdão para dispensar a exigência de prisão do réu condenado em segunda instância. A população aceitará melhor esta solução, mais severa, considerando o avanço incontrolável da criminalidade tanto do colarinho branco quanto a de rua, com matanças gratuitas de policiais e civis.  

Como um parêntese, saibam aqueles que nunca foram juízes, que magistrados conscientes, na hora de proferir a sentença, ou voto, nem sempre encontram facilmente a solução para o caso concreto. Solução, frise-se, que seja simultaneamente legal e, se possível, moral. Se a conclusão — apenas mental, antes de redigir a decisão —, for “indigerível”, insultando o bom senso do julgador, ou ofendendo sua consciência, algo deve estar nela errado, merecendo reexame antes de se transformar em sentença ou voto. Isso porque algumas leis — embora poucas —, podem ser maliciosas desde o início, propondo um fim mas visando outro, inconfessável. Projetos de lei podem, também, ser concebidos para o bem, mas depois desviados para o mal, como que envenenados no útero legislativo. Há exemplo recente disso na lei, de iniciativa popular, concebida para endurecer a luta contra a corrupção mas transformada em seu oposto, visando intimidar o juiz e o promotor na fase de investigação.

Torço para que o STF, unifique seu entendimento de que, desaparecida a presunção de inocência do acusado — porque seu caso foi examinado duas vezes —, deva ser, como regra geral, decretada sua prisão no julgamento da segunda instância. Mas não automaticamente, caso os desembargadores concluam, honestamente, que o caso, pela sua complexidade, e análise da personalidade do réu, aconselhe “uma segunda opinião”.

Esse reexame, pelos tribunais superiores, tranquilizará a consciência dos juízes da apelação. Principalmente se, decretada a prisão, na segunda instância, o réu for, no final, absolvido, depois de meses ou anos de um constrangimento que se revelou injusto, fruto de uma rigidez processual caolha.

Francisco Pinheiro Rodrigues (30-08-2017)



segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O demagógico teto salarial (retificado) dos magistrados.

(Em 10 de março passado publiquei o presente artigo com menção equivocada, de um teto salarial — R$39.293,00 — que era apenas uma promessa, ou manchete, mas não será concedido tendo em vista a grave situação do país. Aposentado, meio distante desses temas, baseei-me em anotação errada, pela qual peço me penitencio. Verificado, agora, que o teto é menor — R$33.700,00 —, reitero, com mais razão, os argumentos que mostram o caráter demagógico do teto remuneratório da magistratura, caso o legislador federal ainda pretenda estimular os bacharéis a estudar seriamente para poder ingressar numa magistratura que, até poucas décadas atrás, era respeitada, coerente, reservada e sem conflitos internos de conotação política. Esclareço que sou desembargador aposentado, sem direito — é óbvio —, de receber os rotulados “penduricalhos”. Nem todos o são, mas assim parecem. “Penduricalhos”, no meu entender, foram uma forma desajeitada dos magistrados contornar a demagogia do teto. Leiam o artigo todo antes de protestar).

Cada vez com maior franqueza — com verdades e meias verdades —, políticos, jornalistas e advogados investem contra o Poder Judiciário e o Ministério Público. Eles têm razão apenas com relação a alguns “penduricalhos”, sem bom fundamento, que procuram contornar o “teto” salarial imposto aos ministros do Supremo Tribunal Federal, no valor bruto, nominal, de R$33.700,00.

A “suculenta” cifra sugere nababesca paga mensal, como se ela viesse quase inteirinha para o patrimônio do juiz, ou do promotor, vez que ambos costumam ser igualmente remunerados.

Essa invejável remuneração máxima sofre, porém, um forte regime de emagrecimento já “na boca do caixa”, antes dela chegar às mãos dos magistrados. Vejamos, se esse teto salarial é realmente exagerado.

Esclareço que na demonstração abaixo levo em conta apenas o ganho mensal dos juízes que mais recebem no país, os, digamos, “marechais” togados — onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Os demais magistrados, a “tropa” — cerca de 15 mil “soldados” de primeira instância —, ganham progressivamente menos, conforme os degraus remuneratórios da carreira.

Vejamos o que acontece com a mais alta remuneração do magistrado brasileiro. Antes, porém, para quem não sabe, uma rápida explicação sobre a carreira dos juízes.

Magistrados de carreira começam — após difíceis concursos públicos de títulos e provas, em geral prestados mais de uma vez — como juízes substitutos de primeira instância. Frise-se que muitos candidatos desistem de prestar concurso, após várias tentativas mau sucedidas. Os aprovados, subindo gradualmente na carreira, de entrância para entrância, são forçados a mudar de residência, a cada promoção, porque o juiz é obrigado a residir na comarca em que trabalha. Isso, obviamente, é um incômodo para ele e sua família, o que explica porque muitos bacharéis, bem preparados e relacionados, prefiram advogar no conforto dos grandes centros, ou nas cidades onde cresceram.

Convém também lembrar que muitos juízes se aposentam sem chegar à segunda instância, onde ser transformariam em desembargadores. Não chegando ao ápice da carreia, sua remuneração será inferior à do ministro do STF.

A propósito da chegada ao “topo”, é um tanto paradoxal que na atual composição do STF, dos onze ministros, só três deles se tornaram magistrados após um concurso público de ingresso: o decano Celso de Mello — que ingressou em 1º lugar no Ministério Público de São Paulo; Rosa Weber, aprovada com distinção na Justiça do Trabalho, e Luiz Fux, que passou, também em 1º lugar, em concurso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Os oito Ministros restantes são oriundos da advocacia, do magistério, ou do Superior Tribunal de Justiça, onde foram juízes, mas não de carreira, isto é, não concursados. Estavam no STJ por força do quinto constitucional. Trabalhavam antes como advogados ou promotores de justiça, escolhidos pelas respectivas classes para “oxigenar” os tribunais com gente de fora da magistratura, com diferente visão dos fenômenos sociais.

Digno de nota é que, não obstante o conjeturável “calo profissional” do promotor de justiça e do advogado, tais juízes — não de carreira —, no geral têm se revelado bons julgadores, comprovando a capacidade de adaptação do ser humano a novas profissões. Se houver algum resíduo de influência da profissão anterior, essa influência vai, com o tempo se enfraquecendo, ainda que possam, talvez, não desaparecer inteiramente. O que nem sempre é um mal. Mais difícil de modificar é o temperamento, não a profissão exercida antes.

A propósito dessa maior proporção de não-concursados no STF, convém alertar os juízes de carreira — aqueles com ambições judiciais mais altas — que não se limitem “apenas” a trabalhar incansavelmente, julgando o máximo de processos possível, gastando a totalidade de seu tempo e energia no trabalho de ler processos e decidir de forma justa, em estilo direto e simples; sem “adornar” seu trabalho com desnecessárias citações eruditas. “Curto e grosso”, no bom sentido, mas certeiro, embora sem brilho acadêmico. A preocupação em ser invariavelmente “brilhante”, implica em retardar a produção maciça de decisões em um país que exagera na corrida aos tribunais. Chega a ser doentia a quantidade de reclamações trabalhistas, na esperança de “ganhar algum” na conciliação. E se nada ganhar, por total falta de razão, o reclamante nada tem a perder, contrariando o sábio conselho de Voltaire: “A vantagem deve ser igual ao perigo”.

 Esse trabalho, algo anônimo, do juiz “pé de boi”, infelizmente não impressionará o mundo político na hora de escolher de nomes para ocupar vagas nos Tribunais Superiores. É aconselhável, quase imprescindível, fazer cursos no Exterior, escrever livros, artigos, aprender novas línguas, lecionar, frequentar mestrados, doutorados e academias. Transcrever, nas suas sentenças, doutrinas estrangeiras e, finalmente — cereja no bolo —, ser sociável, cultivar amizades importantes. Não só ampliando seus conhecimentos jurídicos — e também de Economia —mas aumentando a “visibilidade”, sem a qual nunca será lembrado no mundo político, ou jurídico-político. Modesto, será considerado “um juiz provinciano”. Em suma, sem “vitrine”, seu futuro não será “brilhante”. Será apenas o referido “pé de boi, esforçado, até bom juiz, mas provavelmente de não muitas luzes”. Não lhe bastará ser infatigável abelha, precisa também ser vagalume.

Ocorre que essa “vitrine” custa dinheiro. Viagens, estadias, cursos, aulas particulares não saem de graça. Daí a necessidade do juiz ganhar bem.

Pelo visto, a mídia acha que todo juiz tem a obrigação de fazer voto de pobreza. Ele, na quase totalidade, não faz voto nem de pobreza, nem de riqueza, mas acha-se com o direito de manter seus filhos — convém ter no máximo dois, e olhe lá... — em escola particular, geralmente cara; contratar plano de saúde que dê cobertura total à família inteira; pagar serviço odontológico de qualidade, etc. Enfim, manter um padrão de vida de classe média, mas “média do meio”, isto é, nem média baixa nem alta (rica).

Se o juiz passa a viver no estilo de São Francisco de Assis — malvestido, parecendo um “pobretão” —, sabe o leitor como será ele visto pela população em geral? Como um “juizéco”, ou “funcionariozinho mequetrefe”, tal a automática e popular associação de ideias entre “dinheiro ” e prestígio profissional. O taxista, o açougueiro, o cozinheiro, o PM, vendo o juiz malvestido entrando no seu carro velho logo pensa: “Esse cara não pode ser uma autoridade importante... Se fosse, não ganharia tão pouco. Por que levá-lo muito a sério?”

Julgará o juiz como hoje julga o professor primário ou secundário, pessimamente remunerado, até insultado ou a agredido na sala de aula. Quando eu entrei na magistratura a remuneração do professor não era muito diferente da do juiz. Veja-se hoje a diferença e o desrespeito dos alunos a seus professores. A má-remuneração deixará de atrair os mais preparados para a magistratura. Decadência à vista.

 O arrogante milionário, chefão do tráfico de entorpecente, mesmo preso, vendo uma foto do juiz que o condenou, será mais severo: — “Como? Foi esse mendigo, esse bos..., esse inseto — incapaz de ganhar dinheiro como homem de verdade —, que me condenou?! Que ingrato! Será que ele não sabe que só continua vivo porque eu não decidi o contrário, mesmo estando atrás das grades”?    

Voltando ao ganho dos ministros do STF, o Imposto de Renda, descontado na fonte, de 27,5%, “come” R$9,267,50. A esse desconto some-se o percentual de 11%  (R$3.707,50) para efeitos previdenciários, mesmo que o magistrado já esteja aposentado (?!). Enfim, resta o ganho mensal, desfrutável, de R$20.725,50.

Ocorre que quanto mais velho o indivíduo, mais alta a mensalidade cobrada pelos planos de saúde. Para não ter que depender do SUS — talvez deitado em corredores de hospitais, sujeito a infecção hospitalar —, ele vê-se forçado a contratar planos de saúde que deem cobertura total, para todas as doenças.

 Falei em cobertura? Nem sempre ela funciona inteiramente. Os médicos mais prestigiados raramente atendem aos segurados dos planos de saúde, porque a remuneração deles, nos planos, é muito baixa. Só atendem com consultas particulares, cobrando entre seiscentos  e mil reais cada consulta. Tenho conhecimento próprio do assunto. E o “reembolso” é mínimo, ridículo. No meu plano de saúde, o reembolso não chega a cento e vinte reais, mesmo sendo a consulta próxima dos mil reais.

 Por que, mesmo assim, há necessidade de um plano de saúde? É que corpos humanos antigos, ainda caminhando, têm o mau costume de manifestar os mais variados sintomas, a exigir exames e mais exames, com tratamentos sofisticados. Como os juízes, na ativa ou aposentados, na sua maioria, são conservadores em termos conjugais, o mais comum é que, idosos, tenham como esposas senhoras igualmente idosas, que também merecem uma boa cobertura de saúde, caríssimo.

Como mero exemplo, aposentado, pago à SulAmérica, mensalmente, a quantia de R$6.959,76, pelo casal idoso. Resta, portanto, como quantia “gastável”, o valor de R$13.765,74. E não seria justo, nem cristão, que os magistrados fossem aconselhados — por mero cálculo financeiro —, a trocar periodicamente de esposa, casando com mulher nova, com isso pagando mensalidade menor no plano. Trocas semelhantes costumam agravar a situação do romântico tardio, porque esposa desprezada fica com direito de receber uma pensão bem superior ao lucro oriundo da diminuição da despesa com troca de mulher idosa por mulher nova. E se o magistrado foi imprudente a ponto de ter que pagar duas pensões alimentícias, seu destino financeiro será horrendo. Viverá angustiado, suado, pendurado em bancos, tendo que lecionar — a única atividade permissível ao juiz em atividade — e apertar o cinto continuamente na. Mas, com o número excessivo de processos aguardando julgamento, é até impatriótico o juiz dedicar horas preciosas preparando e dando aulas. Quanto mais aulas, menos sentenças.

Outra despesa, praticamente inevitável, que vai roendo o vistoso “teto salarial do STF”: a contratação de uma empregada doméstica mensalista. Um salário razoável para um doméstica, de R$1.300,00 transforma-se em R$2.000,00, considerando os encargos de INSS,FGTS, 13º, etc. Restam, portanto, R$11.765,74.

Muitos magistrados moram em condomínios. Tendo em vista despesas condominiais e frequentes “extras” no prédio, pagando, digamos uma despesa mensal de R$2.000,00 mensais, sobram R$9.765,74 Agora, meus amigos, se ele tiver filho ou neto em faculdade particular — nem todos podem entrar na USP — o que sobra ficará próximo, ou abaixo, do ganho de um taxista com carro próprio. Talvez, trabalhando como “uber”, conseguirá sobreviver sem os bancos.

O custo mensal em uma eventual faculdade particular de medicina, mero exemplo, em outra cidade, não sai por menos de R$7.500,00, incluída a despesa com estadia. Se forem dois os filhos nessas faculdades, terá que cobrir o rombo com empréstimos bancários.

Magistrados não se locomovem de bicicleta. Usam, ou deveriam usar, automóveis particulares. Além disso, têm o mau hábito de comer, vestir, e todas as despesas inevitáveis nas grandes cidades. O que sobra, raramente “sobra”, como comprova a situação de centenas ou milhares de juízes endividados em bancos.

No teto salarial do funcionalismo há muita demagogia. Prefeitos e governadores, até de estados importantes, recebem salários que só podem ser considerados como “simbólicos”. Esse simbolismo é esperto e premeditado. Permite que o governador, quando nega aumento ao funcionário de alta especialidade sempre pode dizer, escorado na hipocrisia remuneratória: “— Como?! Você, mero engenheiro nuclear, quer ganhar mais do que eu, governador?!”

Se, porém, a justiça brasileira fosse rápida e eficaz a população, muito grata, não faria críticas quanto à sua remuneração. Até faria questão de que os magistrados recebessem um salário superior ao atual. Isso porque a população, frustrada com conflitos de toda ordem, está com uma sede acumulada de justiça, que não pode ser excessivamente lenta. E por que ela não é nem rápida, nem eficaz?

A resposta é óbvia: porque nossa legislação processual é disfuncional, elaborada por quem não nunca foi juiz. Cheia de brechas, até de redação. Para vedar essas brechas a magistratura deveria manter semanal vigilância sobre o que ocorre no Congresso. É preciso impedir a formação do ovo da cobra entes que ela se transforme em jiboia.

Vendo que um determinado projeto vai — por ignorância ou má-fé —, retardar ou embaralhar o trabalho da justiça, associações de classe da magistratura teriam que lutar abertamente — não pela via judicial, mas pela mídia, ou lobby — para cancelar a própria iniciativa, ou sua redação, tentando convencer o legislador de que ele está no caminho equivocado. Mero esclarecimento, ou sugestão — dada por associação de classe —, antes que a bobagem se transforme em lei, difícil de mudar. Analogicamente, se um parlamentar apresenta uma lei ditando regras sobre como um cirurgião deve operar um coração enfartado, ou um canceroso ser tratado do tumor, e essa lei passar, imagine-se o trabalho dos médicos para exercer a sua profissão no modo certo, mas ilegal. Para salvar a vida do paciente, terão que infringir a lei.

Não se prega, aqui, o direito do juiz de decidir contra a lei.  Trata-se apenas de esclarecer o legislador, mostrando a ele que o que pretende legislar é daninho, ou confuso. Se a bobagem se transformar em lei, será preciso o juiz, em uma demanda, julgá-la inconstitucional, utilizando, porém, contorcionismos interpretativos. Pasme-se, mas nenhuma lei pode ser anulada “só” por ser estúpida, burra, contraditória, demagógica ou imprevidente. Tem que ser “inconstitucional”. Além disso, é preciso que alguém entre em juízo com um pedido formal de declaração de inconstitucionalidade, o que nem sempre acontece. Para quem não sabe, o Judiciário só age por provocação.    

Os juízes, que tanto estudaram, pretendem continuar sendo “classe média, média”; não “média, baixa”. Constataram que, com suas despesas mensais familiares — todas normais na classe média, como exemplificadas acima —, só escaparão de um progressivo endividamento bancário criando os tais “penduricalhos”. Sem eles, teriam que tirar filhos de escola particular, usar contratar planos de saúde mais restritivos na cobertura, etc.

A Constituição Federal não estabelece qual o “quantum” do “teto”. Diz apenas que ele não pode ser ultrapassado, seja qual for o argumento. O assunto, portanto é econômico e político, e assim deveria ser tratado.       

A única solução para esse problema, que desprestigia enormemente um Poder, o Judiciário — que, sendo desarmado, depende muito da forma como é encarado pela população —, está na criação de uma Comissão Especial, dos três Poderes, na qual será estudada uma elevação do vigente “teto” com o simultâneo cancelamento de todos os “artifícios” remuneratórios atualmente pagos aos magistrados em atividade. Se necessário, por economia estatal — em situações emergenciais —, cancele-se o direito de conversão de férias não gozadas em indenização, ela valendo apenas para efeito de aposentadoria.

Devido à extensão deste artigo, não menciono quais seriam as alterações processuais saneadores do grande mal da morosidade. Posso apenas garantir ao leitor que a morosidade da nossa justiça é muito mais causada pela disfuncional, ingênua e vesga legislação do que pela suposta preguiça de nossos juízes. Há muita coisa, na justiça, que não passa de ritual inútil.

A mídia parece ignorar que o juiz — na área processual, principalmente —, é um escravo da lei. Ele frequentemente tem que trabalhar como que constrangido por uma “tornozeleira” mental. Não pode suprimir um caminho procedimental que, mesmo sendo propiciador de chicanas, está na lei processual. E não concluam, sem mais detalhado exame, que o juiz brasileiro ganha mais que os juízes dos países de Primeiro Mundo. Lá, como cá, há ganhos embutidos ou omitidos na forma de resumir o ganho anual de seus juízes. É uma longa estória, que não segue um único padrão.

Grato pela paciência de ler o artigo inteiro. Se não leu, agradeço pelo menos a curiosidade da “espiada’.

20/08/2017