domingo, 2 de setembro de 2012

Ônus da prova criminal também é encargo da defesa

O julgamento da Ação Penal 470 tem tido o mérito de suscitar maior atenção para a questão do ônus da prova criminal em juízo. Atenção não só dos profissionais do direito como também dos jornalistas e de centenas de milhares de cidadãos inteligentes que estão acompanhando — séria e apaixonadamente — o caso pela televisão.

O lado pedagógico desse julgamento não pode ser desprezado, embora possa revelar também — e nisso continua pedagógico — a existência de pequenas falhas humanas dos profissionais que lidam com essa atividade tão difícil e escorregadia envolvendo os atos de acusar, defender e julgar o semelhante. Note-se que em todo julgamento, examinam-se fatos passados, já desaparecidos, esgarçados pelo tempo, não presenciados por nenhum dos três profissionais que atuam no julgamento: promotor, advogado e juiz. Tenta-se, com o julgamento, recompor fatos, nem vistos nem ouvidos por aqueles que dissertam convictamente sobre um ato provavelmente criminoso e com auxílio de provas que podem ser, por vezes, falsas. Ou uma mescla de verdades e mentiras, porque nem toda testemunha é uma incorruptível adepta da verdade. E não só ela. A vítima — quando viva, claro — pode mentir. Idem, os peritos, embora muito raramente. 

Tudo, na mão do homem, pode ser distorcido. Justamente por isso está certa a velha assertiva de que “o juiz é o perito dos peritos”. Só ele está em melhor condição de avaliar o conjunto, unir todas as peças do quebra-cabeça. Quem já foi juiz em ações de desapropriações de imóveis sabe que o perito indicado pelo desapropriado quase sempre conclui que o imóvel vale mais que o mencionado pelo perito do expropriante e mesmo pelo perito nomeado pelo juiz. Quanto ao perito do expropriante ocorre quase sempre o contrário: o imóvel vale pouco.

 Não obstante tantos perigos “filosóficos” de desvio da perfeita reprodução de fatos passados sob julgamento, a verdade precisa, a todo custo, ser procurada, investigada, analisada e finalmente enquadrada em descrições legais que, paradoxalmente, são hoje, por vezes, tão incisivas quanto extensas e abstratas.

Um dos itens teóricos mais importantes nos debates do “mensalão” — não só entre o Procurador Geral e os advogados, mas também entre os próprios juízes —, está no saber se o acusado tem, ou não, o dever de fazer prova de sua inocência. Um dos Ministros  insistiu no sentido de que o réu não tem que provar nada, nem mesmo sua inocência; somente a acusação, diz ele, tem a obrigação de produzir provas.
 
Essa extremada posição — muito comodista para a defesa —, não pode mais prevalecer e é extremamente prejudicial ao próprio réu quando a prova da acusação o incrimina. Pergunta-se: caso o réu seja inocente — apesar da aparência em contrário, conforme a prova da acusação — caberia ao promotor o encargo legal de sair em busca de novas provas que inocentem, eliminando qualquer dúvida? Caberia ao promotor a dupla tarefa de produzir provas, primeiro contra e depois a favor do réu, enquanto o réu e seu patrono apenas observam polindo e assoprando as unhas? 

Como já disse, acusador e julgador lidam com informações não vistas nem ouvidas pessoalmente, mas colhidas, de empréstimo, em depoimentos, documentos, perícias e palavras ditas pelo próprio réu em juízo —, quando não se recusa a falar. Nesse ponto — de conhecer os fatos mais de perto — o advogado leva enorme vantagem sobre acusador e juiz porque tem o privilégio de ouvir, diretamente “da fonte”, seu cliente, o que realmente ocorreu, quando este, claro, lhe diz a verdade, o que geralmente acontece. Nem sempre, ressalte-se, porque às vezes o réu mente ao próprio defensor supondo que, figurando como inocente aos olhos do advogado este lutará a seu favor com mais vigor e sinceridade, impressionando melhor o juiz ou os jurados. A convicção de inocência do cliente convence um bocado, transparece na voz e na linguagem corporal do defensor.

É preciso muito talento artístico para fingir indignação. O fingimento, qual um furúnculo com crise de consciência, sempre aflora, como que expulso por uma ética orgânica. Nelson Rodrigues conta que, como repórter criminal iniciante, compareceu a um local onde acabara de correr a morte violenta de um homem. A viúva, desesperada, queria morrer. Gritava e arrancava os cabelos. Recusava a tradicional oferta de água com açúcar oferecida pelas amigas. Finalmente, um tanto desidratada por tantas lágrimas, aceitou um copo d’água mas antes de beber indagou: “É filtrada?”

Como já disse, estimula, involuntariamente, a impunidade geral, o Judiciário, por seus representantes, sustentar, em termos absolutos, que o acusado “não tem que provar sua inocência”, aproveitando-se do fato de acusador e juiz não estarem presentes quando ocorreu o crime — ocorrência juridicamente impossível, mesmo porque se fossem testemunhas não poderiam atuar como acusador ou juiz.
 
É cômodo demais, como disse, e lesivo ao interesse da sociedade, o acusado, na polícia e em juízo, permanecer mudo, indiferente, quando alguns fatos o incriminam, sem que esse silêncio autorize alguma ilação contrária à sua inocência. Na fase de inquérito, ainda é tolerável o silêncio porque nessa fase as garantias do suspeito nem sempre estão presentes. Em juízo, porém, não há justificativa para a mudez voluntária. Repita-se: ele não pode ser forçado a falar, mas silenciando, esse mutismo resultará em algum prejuízo de convencimento contra ele. Que pelo menos minta porque, mentindo, sua versão será investigada e, sendo mentirosa, trará o proveito de informar qual o caráter do réu, um fator que sempre contribui para o esclarecimento da verdade. 

 O Processo Penal, ao contrário do que muitos afirmam, não foi concebido apenas para defender o réu (Davi) contra o abuso do Estado (Golias). O Estado, hoje, em países de legislação e jurisprudência frouxas, talvez seja mais “Davi” do que “Golias”, tal é a força do crime organizado; ou mesmo desorganizado, quando as leis são moles demais. Cada vez mais “crianças” de dezessete anos são arregimentadas por criminosos adultos para matar e roubar, tirando proveito da legislação brasileira e da desigualdade de rendas envenenada pela promoção do consumo. 

O Processo foi inventado também para proteger a sociedade, que tem interesse em afastar de seu convívio pessoas que matam, ou furtam, ou estupram, ou caluniam, etc. Por isso, interessa ao bem comum — aí incluindo até o réu, remotamente, como mero cidadão — que o acusado responda alguma coisa quando indagado pelo juiz, ainda que dizendo que de nada sabe, nada viu, nem ouviu, nem praticou. Ficando em silêncio, mente por omissão. Não é obrigado a se incriminar, como já dito. Precisa apenas falar, sua fala funcionando como um bafômetro da mentira. Quem recusa o teste do bafômetro, no trânsito, está implicitamente confessando que bebeu. Na verdade, no fundo, silenciando totalmente sobre os fatos que o apontam como autor de delito, estará — com ou sem lei, jurisprudência ou doutrina — se auto incriminando, levando o julgador a pensar: — “Além de criminoso é arrogante...”. Assim pensará o juiz, embora não escreva assim na sentença. Resumindo: ficar em silêncio impressiona mal. É um “empurrãozinho” para a condenação.

Réus podem ser legalmente condenado por indícios e circunstâncias. Do contrário haveria garantia de impunidade nos crimes mais graves. Os crimes premeditados — os mais lesivos à sociedade — são sempre cometidos em locais e momentos escolhidos pelo criminoso. Dou, em seguida, um exemplo, em abstrato, que demonstra que indícios e circunstâncias autorizam, legal e moralmente, a condenação, a menos que a defesa faça um esforço probatório em sentido contrário.

Figuremos a hipótese de um cidadão — doravante “Romeu” —, sem recursos próprios, que mantem união de fato com mulher rica e madura. É praticamente sustentado pela companheira. Tendo, há meses, se apaixonado por outra mulher — jovem, bela mas... pobre —, está inconformado com a impossibilidade de — sem tremendo prejuízo econômico — livrar-se da ligação que mantém com a já pouco interessante companheira para viver maritalmente com sua bela namorada. Esta, porém, muito prática, já deixou claro que não quer ser apenas um “galho”. A filosofia comercial, digo, existencial da beldade já lhe foi transmitida com o velho e doloroso ultimato: “Ou eu, ou ela!” 

Depois de pensar, e planejar a melhor solução para seu dilema, o angustiado Romeu, sem passado criminal, põe em prática um plano que considera garantia de sucesso: convida a madura companheira para um longo passeio romântico por uma região montanhosa que ela sempre mencionava como um lugar que gostaria de conhecer. Ela aceita, feliz, a ideia — já andava desconfiada da frieza do amigo — e, dias depois ambos saem de carro para a provável segunda lua de mel.

Chegando à beira de um precipício, longe de todo olhar estranho, o Romeu para o veículo e convida a companheira a sair do carro e olhar a beleza do rio e as pedras que se encontram cem metros abaixo. Mesmo receosa de alturas a mulher se aproxima da beirada do penhasco e nesse momento é empurrada para a morte. Nenhuma testemunha. Em seguida, despenteado, quase “em choque”, o Romeu procura a delegacia mais próxima e relata, desesperado, a triste tragédia que resultou de um mero escorregão da inocente senhora. Ele se acusa, com olhar de louco, dizendo que no fundo sente-se culpado porque, distraído com a beleza da paisagem, não viu a mulher aproximar-se da beira do precipício. O aparente desespero convence o delegado, o escrivão e até um vendedor de pamonha que se achava, por acaso, na delegacia. 

Ocorre que a infeliz vítima tem uma irmã desconfiada. Ela estranha o relato do Romeu porque a falecida tinha um notório medo de altura e por isso nunca aceitara morar em apartamento acima do segundo andar. Por que iria, então, se aproximar perigosamente da beira de um precipício? Além disso, sua irmã já lhe havia dito que, por sugestão do Romeu, a falecida fizera um substancial seguro de vida instituindo seu companheiro como beneficiário, porque ele ganhava pouco, coitado, não tinha patrimônio e nem qualquer especial habilidade profissional. Finalmente, essa irmã mencionou ao delegado que a falecida havia lhe dito, reservadamente, que receava que o companheiro estava tendo “um caso”. A polícia, alertada — “cherchez da femme!” —, resolveu pesquisar melhor os antecedentes e descobriu que três meses antes do “escorregão” o Romeu havia, de fato, providenciado um vultoso seguro de vida da companheira, figurando ele como beneficiário.

 Após grampear suas conversas telefônicas, com autorização judicial, a polícia não chegou a ouvir nenhuma confissão expressa de homicídio, mas captou trechos de conversa amorosa do Romeu com uma certa moça; conversas cujo teor não era compatível com a dor moral aparentada quando comparecera à delegacia mencionando o triste acidente. Prosseguindo nas investigações, inclusive ouvindo a amante de Romeu — que, pelo visto não participara do plano sinistro —, soube que o acusado a visitara no dia seguinte ao alegado acidente, não aparentando estar abalado, muito pelo contrário. A polícia concluiu o inquérito dizendo que tudo levava a crer que a mulher fora mesmo arremessada para a morte por um homem que pretendia quatro benefícios com um único empurrão: liberdade, dinheiro, satisfação amorosa e impunidade.

Convocado para depor, tanto no inquérito quanto em juízo, Romeu invocou seu direito constitucional de permanecer em silêncio: — “Não porque assim prefiro”, explicou, mentindo, “mas porque assim fui orientado por meu advogado”. A prova contra ele seria, portanto, apenas indiciária, dependente apenas da capacidade de dedução do juiz.

O leitor, neste hipotético caso, como juiz togado ou jurado, absolveria o réu só porque não havia testemunhas nem provas diretas do crime? A defesa sustentaria, nas suas alegações finais, que um escorregão sempre pode ocorrer, em qualquer local, mesmo à beira de precipícios. O argumento do medo de alturas não seria relevante porque algumas pessoas se esforçam para vencer seus medos irracionais. Fazem isso aproximando-se do que temem. Certamente — continuaria o defensor — foi por isso que a vítima atreveu-se, inclusive para agradar o réu, a fazer algo que usualmente não faria: espiar perigosamente o fundo do abismo, Quanto ao seguro de vida — prosseguiria a peça de defesa final —, tratava-se de mera preocupação de uma companheira amorosa, previdente, sempre preocupada com o futuro de seu amado, caso ela faltasse, como veio a acontecer. Finalmente, o fato dele ter uma ligação amorosa, mantida em sigilo, isso nenhuma relação tinha com um mero acidente. Se a bela nova namorada esperava, do Romeu, uma decisão de ligação permanente, às claras, isso só existia na cabeça dela; não na dele, que tivera apenas um entusiasmo passageiro. Por tais razões pedia a absolvição, invocando pelo menos a “dúvida razoável”.

Em tese, em remotíssima hipótese, o acusado, claro, poderia estar dizendo a verdade. Seria ele apenas um tremendo azarado, vítima de coincidências. No entanto, os jurados provavelmente o condenariam. Se o caso fosse julgado por um tribunal de justiça é previsível que os desembargadores não desprezariam a robusta prova indiciária contra o réu, acolhendo tão facilmente as explicações de seu advogado nas alegações finais. Diriam, entre eles: “Esse advogado é esperto, mas tudo o que ele disse não passa de fumaça. Onde está a prova de suas conjeturas?”

A “culpa” pela condenação do réu, nesse caso, seria, no entanto, do próprio réu, permanecendo em silêncio e não tentando, por comodismo, provar sua inocência.

Imaginemos — continuando o exemplo —, que o advogado fosse diligente e comprovasse, com depoimentos de moradores da região, que o ponto do escorregão era muito procurado por turistas em razão da especial beleza. Tais moradores diriam, por exemplo — sem mentir —, que duas outras pessoas já haviam caído no abismo, ali mesmo, nos últimos dois anos, sem despertar suspeita, e por causa disso a Prefeitura local já determinara — antes da queda da companheira do réu —, que seria ali construída uma mureta, impedindo novos acidentes. A obra não fora ainda construída por falta de verba. Se o patrono do réu também juntasse um laudo pericial comprovando a existência de um real perigo de um escorregão, naquele ponto, isso ajudaria bastante o acusado. Quanto ao medo de altura, o advogado, conversando com pessoas que conheciam a vítima, ficaria sabendo que esta já dissera às amigas que, após assistir um filme na televisão, sobre como vencer medos irracionais — de cobras e aranhas, por exemplo —, dissera que pretendia, doravante, reagir, usar a mesma técnica: aproximar-se do que temia. Quanto ao seguro de vida, quem sabe o corretor poderia depor, sem mentir, dizendo que a vítima, quando o chamou para fazer o seguro, teria explicado que fazia isso por livre iniciativa, sem qualquer pressão ou sugestão do seu companheiro. E quanto às desconfianças da irmã, sua palavra era suspeita porque, segundo o contrato, na hipótese de morte da infeliz senhora a indenização seria paga ao Romeu mas, faltando este, à irmã. Se o réu fosse condenado como assassino da contratante do seguro, não poderia receber o dinheiro. Aí a indenização seria da segunda beneficiária.  Finalmente, quanto à sua namorada, ela estava rancorosa, ao depor, porque ele, Romeu, já lhe dissera, antes de seu depoimento, que perdera o entusiasmo para uma futura ligação, “pedindo uma pausa”.

Com esse novo e revolucionário quadro probatório, grandes seriam as chances do Romeu escapar de uma condenação. Resta, então, a pergunta: caberia ao promotor fazer essa pesquisa probatória, visando proteger a inocência do réu?

Resumindo e repetindo: o acusado não precisa provar sua inocência, SALVO quando a prova da acusação o incrimina. Quando o incrimina, é sua obrigação produzir a prova possível de sua inocência. E o silêncio teimoso sempre contribui para incriminar.

Abraão Lincoln disse, certa vez, falando sobre as mais difíceis decisões presidenciais, disse que para ele a ética se resumia no seguinte: depois de bem examinar as alternativas ele decidia conforme o que  mais tranquilizasse a consciência. Se ele se “sentisse intimamente bem” com tal decisão, essa seria provavelmente a melhor. Nesse ponto, a intuição moral tem grande ajuda. Com bons juízes certamente ocorre o mesmo.  

Peço escusa, no exemplo acima, pela transformação de um tema jurídico em pequeno conto policial. Por sinal mal construído, porque eu disse, logo no início, que houve um crime e quem foi seu autor, quando poderia ter ocorrido um mero escorregão. Nesse detalhe eu é que escorreguei.

A intenção didática me perdoará pela mistura de gêneros literários.

 (01-9-2012)  

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