O lado pedagógico
desse julgamento não pode ser desprezado, embora possa revelar também — e nisso
continua pedagógico — a existência de pequenas falhas humanas dos profissionais
que lidam com essa atividade tão difícil e escorregadia envolvendo os atos de acusar,
defender e julgar o semelhante. Note-se que em todo julgamento, examinam-se
fatos passados, já desaparecidos, esgarçados pelo tempo, não presenciados por
nenhum dos três profissionais que atuam no julgamento: promotor, advogado e
juiz. Tenta-se, com o julgamento, recompor fatos, nem vistos nem ouvidos por
aqueles que dissertam convictamente sobre um ato provavelmente criminoso e com
auxílio de provas que podem ser, por vezes, falsas. Ou uma mescla de verdades e
mentiras, porque nem toda testemunha é uma incorruptível adepta da verdade. E
não só ela. A vítima — quando viva, claro — pode mentir. Idem, os peritos,
embora muito raramente.
Tudo, na mão do
homem, pode ser distorcido. Justamente por isso está certa a velha assertiva de
que “o juiz é o perito dos peritos”. Só ele está em melhor condição de avaliar
o conjunto, unir todas as peças do quebra-cabeça. Quem já foi juiz em ações de
desapropriações de imóveis sabe que o perito indicado pelo desapropriado quase
sempre conclui que o imóvel vale mais que o mencionado pelo perito do expropriante
e mesmo pelo perito nomeado pelo juiz. Quanto ao perito do expropriante ocorre
quase sempre o contrário: o imóvel vale pouco.
Não obstante tantos perigos “filosóficos” de
desvio da perfeita reprodução de fatos passados sob julgamento, a verdade precisa,
a todo custo, ser procurada, investigada, analisada e finalmente enquadrada em
descrições legais que, paradoxalmente, são hoje, por vezes, tão incisivas
quanto extensas e abstratas.
Um dos itens
teóricos mais importantes nos debates do “mensalão” — não só entre o Procurador
Geral e os advogados, mas também entre os próprios juízes —, está no saber se o
acusado tem, ou não, o dever de fazer prova de sua inocência. Um dos Ministros insistiu no sentido de que o réu não tem que
provar nada, nem mesmo sua inocência; somente a acusação, diz ele, tem a
obrigação de produzir provas.
Essa extremada posição
— muito comodista para a defesa —, não
pode mais prevalecer e é extremamente prejudicial ao próprio réu quando a prova
da acusação o incrimina. Pergunta-se: caso o réu seja inocente — apesar da
aparência em contrário, conforme a prova da acusação — caberia ao promotor o
encargo legal de sair em busca de novas provas que inocentem, eliminando
qualquer dúvida? Caberia ao promotor a dupla tarefa de produzir provas,
primeiro contra e depois a favor do réu, enquanto o réu e seu patrono apenas
observam polindo e assoprando as unhas?
Como já disse, acusador
e julgador lidam com informações não vistas nem ouvidas pessoalmente, mas
colhidas, de empréstimo, em depoimentos, documentos, perícias e palavras ditas
pelo próprio réu em juízo —, quando não se recusa a falar. Nesse ponto — de
conhecer os fatos mais de perto — o advogado leva enorme vantagem sobre
acusador e juiz porque tem o privilégio de ouvir, diretamente “da fonte”, seu
cliente, o que realmente ocorreu, quando este, claro, lhe diz a verdade, o que
geralmente acontece. Nem sempre, ressalte-se, porque às vezes o réu mente ao próprio
defensor supondo que, figurando como inocente aos olhos do advogado este lutará
a seu favor com mais vigor e sinceridade, impressionando melhor o juiz ou os
jurados. A convicção de inocência do cliente convence um bocado, transparece na
voz e na linguagem corporal do defensor.
É preciso muito
talento artístico para fingir indignação. O fingimento, qual um furúnculo com
crise de consciência, sempre aflora, como que expulso por uma ética orgânica.
Nelson Rodrigues conta que, como repórter criminal iniciante, compareceu a um
local onde acabara de correr a morte violenta de um homem. A viúva, desesperada,
queria morrer. Gritava e arrancava os cabelos. Recusava a tradicional oferta de
água com açúcar oferecida pelas amigas. Finalmente, um tanto desidratada por
tantas lágrimas, aceitou um copo d’água mas antes de beber indagou: “É
filtrada?”
Como já disse,
estimula, involuntariamente, a impunidade geral, o Judiciário, por seus representantes,
sustentar, em termos absolutos, que o acusado “não tem que provar sua inocência”,
aproveitando-se do fato de acusador e juiz não estarem presentes quando ocorreu
o crime — ocorrência juridicamente impossível, mesmo porque se fossem
testemunhas não poderiam atuar como acusador ou juiz.
É cômodo demais, como
disse, e lesivo ao interesse da sociedade, o acusado, na polícia e em juízo, permanecer
mudo, indiferente, quando alguns fatos o incriminam, sem que esse silêncio autorize
alguma ilação contrária à sua inocência. Na fase de inquérito, ainda é
tolerável o silêncio porque nessa fase as garantias do suspeito nem sempre
estão presentes. Em juízo, porém, não há justificativa para a mudez voluntária.
Repita-se: ele não pode ser forçado a falar, mas silenciando, esse mutismo
resultará em algum prejuízo de convencimento contra ele. Que pelo menos minta
porque, mentindo, sua versão será investigada e, sendo mentirosa, trará o
proveito de informar qual o caráter do réu, um fator que sempre contribui para o
esclarecimento da verdade.
O Processo Penal, ao contrário do que muitos
afirmam, não foi concebido apenas para defender o réu (Davi) contra o abuso do Estado
(Golias). O Estado, hoje, em países de legislação e jurisprudência frouxas, talvez
seja mais “Davi” do que “Golias”, tal é a força do crime organizado; ou mesmo
desorganizado, quando as leis são moles demais. Cada vez mais “crianças” de
dezessete anos são arregimentadas por criminosos adultos para matar e roubar,
tirando proveito da legislação brasileira e da desigualdade de rendas
envenenada pela promoção do consumo.
O Processo foi inventado
também para proteger a sociedade, que tem interesse em afastar de seu convívio
pessoas que matam, ou furtam, ou estupram, ou caluniam, etc. Por isso, interessa
ao bem comum — aí incluindo até o réu, remotamente, como mero cidadão — que o acusado
responda alguma coisa quando indagado pelo juiz, ainda que dizendo que de nada
sabe, nada viu, nem ouviu, nem praticou. Ficando em silêncio, mente por
omissão. Não é obrigado a se incriminar, como já dito. Precisa apenas falar,
sua fala funcionando como um bafômetro da mentira. Quem recusa o teste do
bafômetro, no trânsito, está implicitamente confessando que bebeu. Na verdade,
no fundo, silenciando totalmente sobre os fatos que o apontam como autor de
delito, estará — com ou sem lei, jurisprudência ou doutrina — se auto incriminando,
levando o julgador a pensar: — “Além de criminoso é arrogante...”. Assim
pensará o juiz, embora não escreva assim na sentença. Resumindo: ficar em
silêncio impressiona mal. É um “empurrãozinho” para a condenação.
Réus podem ser legalmente
condenado por indícios e circunstâncias. Do contrário haveria garantia de impunidade
nos crimes mais graves. Os crimes premeditados — os mais lesivos à sociedade —
são sempre cometidos em locais e momentos escolhidos pelo criminoso. Dou, em
seguida, um exemplo, em abstrato, que demonstra que indícios e circunstâncias
autorizam, legal e moralmente, a condenação, a menos que a defesa faça um
esforço probatório em sentido contrário.
Figuremos a hipótese
de um cidadão — doravante “Romeu” —, sem recursos próprios, que mantem união de
fato com mulher rica e madura. É praticamente sustentado pela companheira.
Tendo, há meses, se apaixonado por outra mulher — jovem, bela mas... pobre —,
está inconformado com a impossibilidade de — sem tremendo prejuízo econômico —
livrar-se da ligação que mantém com a já pouco interessante companheira para
viver maritalmente com sua bela namorada. Esta, porém, muito prática, já deixou
claro que não quer ser apenas um “galho”. A filosofia comercial, digo,
existencial da beldade já lhe foi transmitida com o velho e doloroso ultimato:
“Ou eu, ou ela!”
Depois de pensar, e
planejar a melhor solução para seu dilema, o angustiado Romeu, sem passado
criminal, põe em prática um plano que considera garantia de sucesso: convida a madura
companheira para um longo passeio romântico por uma região montanhosa que ela
sempre mencionava como um lugar que gostaria de conhecer. Ela aceita, feliz, a
ideia — já andava desconfiada da frieza do amigo — e, dias depois ambos saem de
carro para a provável segunda lua de mel.
Chegando à beira de
um precipício, longe de todo olhar estranho, o Romeu para o veículo e convida a
companheira a sair do carro e olhar a beleza do rio e as pedras que se
encontram cem metros abaixo. Mesmo receosa de alturas a mulher se aproxima da
beirada do penhasco e nesse momento é empurrada para a morte. Nenhuma
testemunha. Em seguida, despenteado, quase “em choque”, o Romeu procura a delegacia
mais próxima e relata, desesperado, a triste tragédia que resultou de um mero escorregão
da inocente senhora. Ele se acusa, com olhar de louco, dizendo que no fundo sente-se
culpado porque, distraído com a beleza da paisagem, não viu a mulher aproximar-se
da beira do precipício. O aparente desespero convence o delegado, o escrivão e
até um vendedor de pamonha que se achava, por acaso, na delegacia.
Ocorre que a infeliz
vítima tem uma irmã desconfiada. Ela estranha o relato do Romeu porque a falecida
tinha um notório medo de altura e por isso nunca aceitara morar em apartamento acima
do segundo andar. Por que iria, então, se aproximar perigosamente da beira de
um precipício? Além disso, sua irmã já lhe havia dito que, por sugestão do
Romeu, a falecida fizera um substancial seguro de vida instituindo seu
companheiro como beneficiário, porque ele ganhava pouco, coitado, não tinha
patrimônio e nem qualquer especial habilidade profissional. Finalmente, essa
irmã mencionou ao delegado que a falecida havia lhe dito, reservadamente, que
receava que o companheiro estava tendo “um caso”. A polícia, alertada —
“cherchez da femme!” —, resolveu pesquisar melhor os antecedentes e descobriu
que três meses antes do “escorregão” o Romeu havia, de fato, providenciado um
vultoso seguro de vida da companheira, figurando ele como beneficiário.
Convocado para
depor, tanto no inquérito quanto em juízo, Romeu invocou seu direito
constitucional de permanecer em silêncio: — “Não porque assim prefiro”, explicou,
mentindo, “mas porque assim fui orientado por meu advogado”. A prova contra ele
seria, portanto, apenas indiciária, dependente apenas da capacidade de dedução
do juiz.
O leitor, neste
hipotético caso, como juiz togado ou jurado, absolveria o réu só porque não
havia testemunhas nem provas diretas do crime? A defesa sustentaria, nas suas
alegações finais, que um escorregão sempre pode ocorrer, em qualquer local,
mesmo à beira de precipícios. O argumento do medo de alturas não seria relevante
porque algumas pessoas se esforçam para vencer seus medos irracionais. Fazem
isso aproximando-se do que temem. Certamente — continuaria o defensor — foi por
isso que a vítima atreveu-se, inclusive para agradar o réu, a fazer algo que
usualmente não faria: espiar perigosamente o fundo do abismo, Quanto ao seguro
de vida — prosseguiria a peça de defesa final —, tratava-se de mera preocupação
de uma companheira amorosa, previdente, sempre preocupada com o futuro de seu
amado, caso ela faltasse, como veio a acontecer. Finalmente, o fato dele ter
uma ligação amorosa, mantida em sigilo, isso nenhuma relação tinha com um mero
acidente. Se a bela nova namorada esperava, do Romeu, uma decisão de ligação
permanente, às claras, isso só existia na cabeça dela; não na dele, que tivera
apenas um entusiasmo passageiro. Por tais razões pedia a absolvição, invocando
pelo menos a “dúvida razoável”.
Em tese, em
remotíssima hipótese, o acusado, claro, poderia estar dizendo a verdade. Seria
ele apenas um tremendo azarado, vítima de coincidências. No entanto, os jurados
provavelmente o condenariam. Se o caso fosse julgado por um tribunal de justiça
é previsível que os desembargadores não desprezariam a robusta prova indiciária
contra o réu, acolhendo tão facilmente as explicações de seu advogado nas
alegações finais. Diriam, entre eles: “Esse advogado é esperto, mas tudo o que
ele disse não passa de fumaça. Onde está a prova de suas conjeturas?”
A “culpa” pela
condenação do réu, nesse caso, seria, no entanto, do próprio réu, permanecendo
em silêncio e não tentando, por comodismo, provar sua inocência.
Imaginemos —
continuando o exemplo —, que o advogado fosse diligente e comprovasse, com depoimentos
de moradores da região, que o ponto do escorregão era muito procurado por
turistas em razão da especial beleza. Tais moradores diriam, por exemplo — sem
mentir —, que duas outras pessoas já haviam caído no abismo, ali mesmo, nos
últimos dois anos, sem despertar suspeita, e por causa disso a Prefeitura local
já determinara — antes da queda da companheira do réu —, que seria ali
construída uma mureta, impedindo novos acidentes. A obra não fora ainda construída
por falta de verba. Se o patrono do réu também juntasse um laudo pericial
comprovando a existência de um real perigo de um escorregão, naquele ponto,
isso ajudaria bastante o acusado. Quanto ao medo de altura, o advogado,
conversando com pessoas que conheciam a vítima, ficaria sabendo que esta já
dissera às amigas que, após assistir um filme na televisão, sobre como vencer
medos irracionais — de cobras e aranhas, por exemplo —, dissera que pretendia,
doravante, reagir, usar a mesma técnica: aproximar-se do que temia. Quanto ao
seguro de vida, quem sabe o corretor poderia depor, sem mentir, dizendo que a
vítima, quando o chamou para fazer o seguro, teria explicado que fazia isso por
livre iniciativa, sem qualquer pressão ou sugestão do seu companheiro. E quanto
às desconfianças da irmã, sua palavra era suspeita porque, segundo o contrato,
na hipótese de morte da infeliz senhora a indenização seria paga ao Romeu mas,
faltando este, à irmã. Se o réu fosse condenado como assassino da contratante
do seguro, não poderia receber o dinheiro. Aí a indenização seria da segunda
beneficiária. Finalmente, quanto à sua
namorada, ela estava rancorosa, ao depor, porque ele, Romeu, já lhe dissera,
antes de seu depoimento, que perdera o entusiasmo para uma futura ligação,
“pedindo uma pausa”.
Com esse novo e
revolucionário quadro probatório, grandes seriam as chances do Romeu escapar de
uma condenação. Resta, então, a pergunta: caberia ao promotor fazer essa
pesquisa probatória, visando proteger a inocência do réu?
Resumindo e
repetindo: o acusado não precisa provar sua inocência, SALVO quando a prova da
acusação o incrimina. Quando o incrimina, é sua obrigação produzir a prova
possível de sua inocência. E o silêncio teimoso sempre contribui para
incriminar.
Abraão Lincoln
disse, certa vez, falando sobre as mais difíceis decisões presidenciais, disse
que para ele a ética se resumia no seguinte: depois de bem examinar as
alternativas ele decidia conforme o que
mais tranquilizasse a consciência. Se ele se “sentisse intimamente bem”
com tal decisão, essa seria provavelmente a melhor. Nesse ponto, a intuição
moral tem grande ajuda. Com bons juízes certamente ocorre o mesmo.
Peço escusa, no
exemplo acima, pela transformação de um tema jurídico em pequeno conto policial.
Por sinal mal construído, porque eu disse, logo no início, que houve um crime e
quem foi seu autor, quando poderia ter ocorrido um mero escorregão. Nesse
detalhe eu é que escorreguei.
A intenção didática
me perdoará pela mistura de gêneros literários.
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