Como autor, sinto-me injustiçado. O que
não deve causar estranheza nas pessoas melhor informadas. Imagino que nenhum escritor,
bom ou mal, se considera plenamente realizado. Se ele se considera “o máximo”, está
redondamente enganado, porque a perfeição é inatingível e incompatível com qualquer
arte. Certamente padece de sutil burrice, ainda que Nobel, confundindo, por
exemplo, ganhar dinheiro — escrevendo livros —, com o status, de grande
escritor. Estes existem em pequeno número e eu, com um mínimo de realismo, não
me incluo no selecionado rol. Se, eventualmente, me incluísse, jamais o diria
porque a imodéstia ofende e com ela a já mencionada burrice estaria mostrando
as garras.
No caso de autores, homens e mulheres,
que enriqueceram escrevendo livros de medíocre qualidade — mas estão bem
conscientes disso —, não há porque criticá-los. Pelo contrário. São pessoas
inteligentes. Vencedoras. Sabiam francamente
o que queriam — ganhar muito dinheiro —, e agiram em conformidade com esse
objetivo. São homens e mulheres
práticos, bons empresários de si mesmo, dublês de psicólogos e marqueteiros,
com grande percepção do que agrada e desagrada não só o público leitor como
também os editores, esses atribulados intermediários entre o talento e o
público.
Sem editor, nada feito. Imprimir livros,
propagandeá-los e distribuí-los é ciência esotérica, cara e arriscada. Alguém
já proclamou que autor e editor precisam fazer como as galinhas: não basta botar
o ovo, é preciso cacarejar. Mas apenas para as galinhas isso sai barato. Editores
precisam de faro superior ao de cães de aeroportos, detectores de drogas — um olfato
mais mercantil que literário — para impedir que seus produtos impressos não se
transformem em encalhes, provocando gastrites monumentais. São, essencialmente,
comerciantes de livros, não funcionários do Ministério da Cultura, encarregados
de elevar a instrução do país. Somente por exceção é que publicam obras que são
respeitáveis mas financeiramente “cheiram mal”. E o Estado não é rico o
suficiente para garantir aos editores que todos seus livros encalhados serão
indenizados pelo tesouro público. Há necessidades muito mais urgentes que
erguer o ânimo de autores que veem seus originais rejeitados.
Em
2005 publiquei, por minha conta, um romance — “Criônica”, Edições Inteligentes,
autor Pinheiro Rodrigues — em torno na Criogenia aplicada a seres humanos.
Todos sabem que a Criogenia é um capítulo sério da ciência, dedicado a estudar os
efeitos das baixas temperaturas em seres vivos e não vivos. O frio interessa
aos pesquisadores da velocidade da eletricidade nos materiais, à pesquisa
espacial, ao armazenamento dos bancos de óvulos e esperma e em muitas outras
coisas.
Envolvendo o humano, a Criogenia acabou
interessando às mentes mais “visionárias” que entenderam conveniente criar um
ramo próprio da Criogenia que especificamente estudaria o congelamento de seres
humanos. Esse “ramo” foi batizado, nos EUA, de “Cryonics” — que traduzi para
“Criônica”. Tais “visionários”— melhor seria dizer “entusiastas”— passaram a
imaginar o seguinte: se um homem, não muito velho, for acometido de doença
incurável, com morte próxima, o que haveria de moralmente censurável se ele, em
vez de aguardar passivamente o “doentio pelotão de fuzilamento”, pedisse para
ser congelado, imediatamente após sua morte natural, como se fosse um
espermatozoide, ou óvulo? Mantido a uma temperatura próxima ao zero absoluto —
em que os inquietos átomos ficam praticamente imóveis —, não haveria apodrecimento,
não é mesmo?
— “Mas o sujeito estaria morto! Como
ressuscitar um cadáver congelado? Estando morto, sua alma teria ido embora!
Onde a pegaríamos de volta para reintroduzí-la no maluco falecido décadas atrás?”
— diziam os espiritualistas mais indignados.
Com base nessa esperança, moralmente não
censurável, os “entusiastas utópicos” passaram a imaginar as técnicas possíveis
para ver se conseguiam congelar uma pessoa logo após sua morte, com isso
evitando a deterioração, principalmente dos neurônios. Eles imaginaram, usando apenas
a lógica — por vezes enganadora porque desatenta aos detalhes fáticos —, que se
um ser vivo qualquer ficar congelado de tal forma que suas células não
apodreçam, imobilizadas pelo frio, é possível — pelo menos possível —, que
daqui a algumas décadas, quando a ciência e a técnica estiverem muito mais
adiantas, ele possa ser descongelado e manipulado de forma a retornar à vida.
Os danos resultantes do longo e álgido sono seriam consertados pela ciência
futura. Algo assim como ocorre quando alguém assiste a um filme em DVD, faz um
“pause” e depois prossegue vendo a fita. Se nada apodreceu, quando extremamente
congelado, por que seria impossível o “ressuscitar” algumas décadas depois?
Tudo dependerá das técnicas futuras, muito mais avançadas que as atuais.
Essa esperança, em um ser humano que se
sabe próximo da cova, ou da cremação, tem um efeito psicológico secundário nada
desprezível: é muito mais confortador saber que vai perder a consciência numa
mesa de operação, para talvez — pelo menos talvez — acordar em um futuro mais
cientificamente avançado, do que saber, com absoluta certeza que vai morrer
mesmo e apodrecer ou torrar, em crematório, até ser reduzido a cinzas que cabem
em pequena urna. — “Se a criônica não funcionar, paciência. Já estarei morto e
nem saberei disso. É como adormecer para uma operação arriscada. Algo muito
mais palatável que a certeza da morte iminente, com seu pavoroso “nada”, ou o
inferno. Uma conjetura semelhante às apostas na Mega Sena. Provavelmente não
ganharei nesta semana mas posso ganhar na próxima. E meu investimento no
congelamento não será exagerado. O único prejuízo, caso a criogenia não funcione,
será de meus herdeiros, com os gastos do congelamento. Se funcionar, o prejuízo
será maior porque os herdeiros terão que devolver boa parte da herança recebida
do “velho maluco!”.
Vejamos, agora, o lado técnico da ideia
e depois a conclusão desestimulante a que cheguei.
Não há dúvida, como já disse, que o frio
intenso da criogenia — 196º Célsius negativos — impede em, digamos, 99%, o
apodrecimento dos tecidos. No entanto, esse frio não tem apenas consequências
benéficas. Há o lado negativo: com o congelamento a água que existe no interior
das células de nosso corpo transforma-se em cristais de gelo, dilatam-se e, sendo
tais cristais dotados de arestas, essas perfuram a membrana celular, deixando
vazar o precioso líquido sem o qual será impossível a “nova vida”. Quando do
descongelamento, haveria bilhões de células totalmente inutilizadas. Aí o
grande obstáculo técnico para a eficácia da criogenia.
Surgiu, porém, nos últimos anos, uma
esperança: sapos e rãs da regiões árticas ficam congelados no inverno,
aparentemente mortos, mas com a retorno da primavera, “acordam”, lampeiros,
prontos para continuar o ciclo biológico: comer e copular — porque esses
cretinos feios não pensam em outra coisa. Para tal façanha, de ressuscitar, o
organismo de uma rã dessas regiões, a “rã-leopardo” (Rana pipiens), produz uma
forma de açúcar que impede que a água das células se transforme em gelo e, com isso,
dilatando-se, provoque o dano celular. Em suma, as células ficam congeladas,
vitrificadas”, mas sem dilatação. E sem dilatação, as células conservarão a
água indispensável.
Era o que os adeptos da Criônica queriam
ouvir. O resto de empecilhos seria contornável, como, por exemplo, as
proibições legais, exageradas, exigindo que o paciente esteja “totalmente”
morto para que se iniciem os preparativos para o congelamento, com imediata
retirada de seu sangue e substituição dele por glicerol. Essa exigência legal
implica em manter de prontidão uma equipe de técnicos, espera que pode demorar
dias. No momento em que o coração para de bater desencadeia-se uma maratona
contra o tempo porque cada minuto é precioso. Se o cérebro for privado de
oxigênio, mais que alguns minutos — o número exato é sujeito a discussão —, o
neurônio começa a se estragar, o que tiraria a razão de ser da criônica. Quem deseja
se congelar, para despertar daqui a algumas décadas, quer “acordar” tão lúcido
quanto era antes de morrer.
Com a boa notícia de que algumas rãs e
sapos congelados podem retornam a vida, bastaria aos adeptos da criônica se
esforçarem para sintetizar uma substância que, introduzida imediatamente no
“paciente”, após sua morte, impedisse a água da células se transformar em gelo.
Sem gelo, repito, nenhuma dilatação, nenhum “estouro” de células.
Neste ponto da exposição, confesso que
minha esperança maior — ao estudar o assunto e escrever o romance — não estava
tanto em propiciar a um doente de câncer incurável, por exemplo, desfrutar mais
alguns anos de vida após a “ressurreição”. Seria muito trabalho e gasto para
alguns anos de vida a mais. Minha “ambição secreta”, “inconfessável” — não
propriamente para minha pessoa —, era a perspectiva de uma coisa muito mais
abrangente, uma quase eternidade física. Como assim? Explico a seguir.
Se o paciente, após décadas de
“criopreservação” acordasse lúcido e fosse um excepcional cientista — um
Einstein, ou equivalente —, com imensa bagagem de informação e reflexão
original, seria útil à humanidade que ele vivesse — lúcido, lúcido! — duzentos,
trezentos ou mais anos, com periódicos acréscimos de novos neurônios —
verdadeiras “gavetas” que armazenam informações — que adicionariam novos
conhecimentos aos conhecimentos já existentes.
Onde obteríamos esses novos neurônios?
Através das células-tronco embrionárias, capazes de se transformarem em
qualquer tipo de célula, inclusive a nervosa. Mesmo as melhores cabeças
envelhecem e enfraquecem. A natureza, “mesquinha”, tem essa limitação. Faz questão
de que não sobre ninguém além dos 130 anos. Se ocorrer isso estaremos vendo uma
múmia viva, mas cega, muda, surda e desnorteada.
Mesmo as melhores cabeças envelhecem,
infelizmente. Porém, com periódicos acréscimos de novos neurônios — mesmo com
eventual necessidade de fazer algumas intervenções cirúrgicas na caixa craniana
—, com tais neurônios “loucos para trabalhar”, a mente humana daria grande
salto à frente. Voltando ao grande físico, um Einstein três vezes mais
capacitado em quantidade de neurônios, certamente teria muita coisa a nos ensinar.
Nesse entusiasmado ponto de reflexão,
recebi uma ducha de água fria em meu entusiasmo especulativo. Lembrei-me de que,
pelo que se sabe, nenhuma célula é imortal. Neurônio é uma célula. E os
neurônios novos, obtidos via células-tronco embrionárias, seriam
“células-bebês”, totalmente ignorantes. Precisariam aprender a falar, a ler, a
fazer o curso primário, ginasial, universitário e pós-graduação para só então
ajudar, acrescentando algo o cérebro do velho cientista. Neurônios velhos,
embora sábios, iriam enfraquecendo e morrendo à medida que a “garotada
ignorante” fosse brotando em seu cérebro, outrora privilegiado. Continuaria
existindo, no córtex cerebral, essa
periódica “invasão de bárbaros” — como disse um certo filósofo, referindo-se a
cada nova geração.
Como desconheço qualquer possibilidade
de tornar os neurônios imortais, não vejo agora, lamentavelmente, na criônica,
utilidade maior do que o paciente continuar a vida que levava antes de ser
congelado, vivendo, depois de “acordado”, os anos que normalmente viveria se
não tivesse sido acometido da doença mortal. Provavelmente alguns anos a mais,
devido aos recursos da futura medicina. Nada mais. Apenas uma “esticada”, depois
de uma longa “parada”, nunca alguns séculos de acréscimo.
Insisto: mesmo que uma pessoa consiga
“ressuscitar”, sem danos — por si só uma estrondosa façanha técnica — o
“ressuscitado” continuaria envelhecendo. Se recebesse, periodicamente, o
implante de células-tronco embrionárias capazes de se transformar em neurônios,
estes seriam, como já disse, “caixas vazias” que necessitariam ser preenchidas
a partir do zero. Com o passar dos anos, o grande cientista já não seria mais
ele mesmo, porque seus velhos e sábios neurônios estariam mortos. Einstein não
mais saberia que nasceu em Ulm e que é alemão, a não ser que alguém lhe
ensinasse isso. Triste, não?
Se existe um Deus que criou
deliberadamente uma criatura tão especial, “à sua semelhança” — o bicho homem,—
parece que não estava nas Suas intenções colocar no Planeta Terra um ser não
muito confiável, ganancioso e orgulhoso que, um dia, pretenderia viver
eternamente, talvez tentando Lhe tomar o poder. Não confiando plenamente na sua
especial criatura instalou no seu cérebro neurônios de duração limitada e
carimbou essas palavras invisíveis: “Artigo perecível. Prazo de validade: 120
anos. Convém consumir bem antes do vencimento”.
Esse, por enquanto, o desanimador futuro
da criônica. Mas meu romance é bom, ou pelo menos ilustrativo. Pena que não tenha
sido difundido. À breca com a modéstia.
(16-09-2012)
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