Venho acompanhando —
como milhares de brasileiros interessados na sobrevivência da Justiça
Brasileira —, a fase de julgamento da Ação Penal 470, torcendo para que ela
chegue logo a seu término com pelo menos razoável aprovação ou tolerância
popular. Justiça em descrédito é justiça suicida, involuntária estimuladora da criminalidade,
na qual ela mesma corre o risco de figurar como vítima. O cidadão precisa
acreditar — nem que seja equivocadamente — que o severo “olho da lei” está observando-o
nos momentos de tentação para praticar o mal. Percebido o crime, ocorrerá a
punição. “Melhor, portanto, andar na linha,,,”. Grande parte da utilidade da
justiça está na sua virtualidade, na mera crença de que ela está presente, viva
e realmente funcionando.
Embora os
magistrados não devam se curvar à “opinião pública” — leia-se com mais
propriedade opinião da mídia... — não se pode negar à população brasileira um
mínimo direito de ver coincidir, ao máximo, a “verdade processual” com a
“verdade real”, porque tola a sociedade não é. Com a rápida e gratuita difusão
da informação — agora com julgamentos do STF assistidos ao vivo — mesmo pessoas
de pouca escolaridade, mas inteligentes — a inteligência está no cérebro, não
nos diplomas — podem concluir sobre onde reside a verdade sobre fatos de grande
significado ético e econômico.
A comunidade pode
não conhecer os “meandros” processuais — que vê com desconfiança —, mas sabe
distinguir, com razoável acerto, o que resultou, finalmente, daquele bonito —
quando for o caso — “palavreado”, assim qualificado pelas pessoas mais simples
mas nem por isso menos justas. Se a justiça é sustentada com os tributos pagos
pela população, esta tem todo o direito de ver bem aplicado o dinheiro dela
extraído na forma de impostos, com punição dos “maus” e absolvição dos
inocentes que foram acusados por engano ou malícia.
O que disse acima
vem a propósito dos dois votos proferidos esta semana, pelos Ministros Joaquim
Barbosa e Ricardo Lewandowski. Assisti pelo menos a 90% da exposição de ambos e
só posso dizer que foram votos bem detalhistas, mostrando uma bem intencionada
vontade de enquadrar corretamente os fatos — depoimentos e documentos — nos
“tipos” penais, algo não muito fácil, atualmente, porque a legislação vem se
tornando cada vez mais abstrata e abrangente, estimulando interpretações
conflitantes. A leitura de ambos os votos é uma prova de que se, no geral,
nossa justiça não é ainda — já poderia ter sido, há anos — de primeiríssimo
mundo — por causa da lentidão, estimulada por legislação processual ingênua —,
o elemento humano, seus magistrados, é de altíssimo nível.
Proferido o necessariamente
pesado voto “fatiado” do Min. Joaquim Barbosa, o Min. Ricardo Lewandowski
proferiu o seu, em parte coincidente com o do Relator. A divergência surgiu
quando passou a examinar, com minúcia — e coragem, convenhamos, porque a
opinião pública prefere condenações “globais”; dúvidas causam desconforto
mental — a conduta de João Paulo Cunha.
Terminado o exaustivo
e fundamentado voto do Min. Lewandowski — sobre cujo mérito só poderá opinar
quem leu os autos —, o Min. Barbosa pediu a palavra para “replicar”, ou prestar
alguns esclarecimentos, em oposição ao voto proferido pelo Min. Revisor.
Concedido pelo Min.
Presidente o pedido do Relator, o Min. Revisor, discordando com firmeza, pediu
o direito de, havendo a nova fala do Min. Relator, fosse concedida a ele,
Lewandowski, a oportunidade de também responder — “treplicar” — aos argumentos
do Relator. Argumentou que se ocorre uma “réplica” deve também ser permitida
uma “tréplica”, como ocorre nos debates do Tribunal do Júri. O Min, Presidente,
sempre sereno e diplomático com os colegas, evitando nova longa polêmica após
cansativa sessão plenária, preferiu, aparentemente, deixar a decisão sobre o
incidente para a sessão de julgamento da próxima segunda-feira, dia 27 de
agosto de 2012. Certamente, em reunião informal, longe da televisão, os
Ministros trocarão ideias sobre esse incidente processual.
Não encontrei, no
Regimento Interno do STF, nenhuma “regra” sobre os direitos de “réplica e
tréplica”. Obviamente porque o Ministro Relator não funciona, no caso, como
“acusador”, nem o Min. Revisor, como ”defensor” do réu que considerou inocente.
Qualquer analogia com o Tribunal do Júri é, portanto, equivocada. Se Joaquim
Barbosa já foi promotor de justiça, a partir de sua posse no STF passou a ser
apenas juiz. Lewandowski foi advogado e depois juiz, sempre do quinto da
advocacia, mas se tivesse vindo para o STF, diretamente da advocacia, teria que
esquecer essa origem no momento em que tomou posse do cargo no Tribunal. Todo
magistrado, assumindo seu posto, deve procurar esquecer o seu passado hábito profissional.
Se este permanece — e isso realmente ocorre porque os neurônios são teimosos e
desprezam normas fora da caixa craniana —, a força do hábito é compreendida e
desculpada pelos colegas julgadores porque eles mesmos sabem que é impossível
livrar-se totalmente de antigos costumes. Uma razão a mais para que na
composição dos tribunais a maioria de seus juízes sejam de carreira, “viciados”
no hábito de ver ambos os lados de qualquer pendência, o que não ocorre com
magistrados oriundos do quinto constitucional que não passaram, por algum
tempo, na função de juízes.
Dir-se-á que se não
pode haver o “direito” de réplica nem de “tréplica’, por outro lado o Regimento
não impede que qualquer ministro aparteie o colega visando um esclarecimento
para melhor decisão colegiada.
Aí caberá à
inteligente e serena condução dos trabalhos pelo Min. Carlos Ayres Britto
improvisar, com aprovação de seus pares, um método de trabalho para um caso
excepcional, como é o “Mensalão”. Ou negando qualquer equivalente de “réplica” e
“tréplica”, ou dosando em apenas uns poucos minutos o tempo máximo — quinze
minutos, por exemplo — para manifestações do Relator e Revisor, após seus votos
formais, já proferidos. Com isso impedirá a quase eternização de um julgamento
que está travando o funcionamento normal da Corte Máxima. Ayres Britto sabe que
precisa ser um bom presidente no caso “Mensalão”, mas precisa também ser bom
presidente de um Tribunal que não foi concebido para cuidar de um único caso,
por mais importante que seja.
Milhares de outros
processos aguardam julgamento do STF . Em casos mais simples, com único ou
poucos réus, não tem muita importância um debate mais longo sobre tal ou qual
item. No entanto, em um julgamento de imensa proporção como é o caso da Ação
Penal 470 — provavelmente o mais complexo desta década e talvez de décadas futuras,
é preciso considerar o fator tempo. E a rotina dos tribunais, no país, aponta
para a melhor solução do problema “tempo”. Qual é ela?
Atuei poucos anos na
segunda instância, em São Paulo. Mas a rotina usual, muito prática e funcional,
na fase propriamente de julgamento, era a seguinte,: o juiz relator lia seu
voto, analisando a prova e concluindo em tal ou qual sentido. Em seguida o
revisor proferia seu voto mas quando sua opinião coincidia totalmente com a
opinião do relator, apenas dizia que subscrevia o que dissera o relator. Afinal,
para que repetir tudo aquilo já mencionado pelo relator quando tantos outros
postulantes esperam julgamento? Quando achava que sua decisão era coincidente
com a do relator mas a fundamentação era diferente, explicava porque modificava
a fundamentação, embora chegando ao mesmo resultado. E o terceiro juiz, ou
outros juízes presentes — conforme o caso — seguiam o mesmo sistema dizendo
apenas que seguiam o relator ou o revisor, quando estes discordavam. Terminada
a votação, o juiz presidente fazia a soma dos votos e proclamava o resultado. Se
um dos juízes não concordava com a decisão majoritária, podia, querendo, fazer
constar, no acórdão, seu voto vencido. Tudo isso na maior tranquilidade. Não
havia uma como que “necessidade” de provar que o colega de julgamento estava “errado”. Nem o relator nem o revisor se consideravam
“diminuídos” caso sua vontade não prevalecesse. Afinal, o Direito não é uma
ciência exata. Não fosse essa a prática rotineira do tribunal, seria impossível
o fluxo normal de julgamentos, já bastante emperrado mesmo com tais votos de
“acompanho o relator”, ou “acompanho o revisor”.
Alguém dirá que como
a Ação Penal 470 é muito importante, é imprescindível — no interesse apenas da
“plateia”, porque os advogados recebem cópia dos votos — que cada um dos onze
ministros leia horas e horas de voto. Não vejo assim. Primeiro porque há o
pressuposto — real, benevolente ou reservadamente desconfiado — de que os
Ministros do STF são moralmente íntegros, pois do contrário não estariam no
STF. Se as partes não arguiram suspeição nem impedimento, não podem, depois,
presumir favoritismo, gratidão ou qualquer outro empecilho para um ministro dar
o seu voto com isenção. Segundo, porque a demora, só favorece uma das partes,
os acusados, nunca a acusação. Terceiro, porque longos votos nem sempre
significam decisão profundamente honesta.
Um juiz — qualquer
juiz, de qualquer país —, pode, querendo, disfarçar sua tendenciosidade
pinçando tais e quais detalhes — e ignorando outros —, que estão, ou pareçam
estar, nos autos sem que os ouvintes do voto percebam a desonestidade mental do
magistrado na seleção dos detalhes. Quem está ouvindo não está lendo os autos. Nos
países sob ditadura — não é o caso, felizmente, do Brasil —, decisões “sob
encomenda do ditador” são redigidas de tal forma que se forem lidas por pessoas
de outro país, que não conheçam a realidade local, imaginam que a decisão foi
juridicamente correta. A desonestidade mental é suficientemente astuta para
disfarçar a realidade, usando um linguajar jurídico aparentemente correto.
Pode-se mentir cosendo fragmentos de verdades. A mentira está na costura, na
omissão de algumas partes. Inteligentes enganadores conseguem isso com algum
êxito.
Juristas
importantes, reservadamente, já argumentaram que o único defeito da TV Justiça,
tão aberta, está em estimular a eventual vaidade dos ministros. Que alguma
vaidade existe em todo ser humano, não há dúvida. Modéstia excessiva pode
significar vaidade de alguém ambicionando um Nobel da Paz.
No caso da Ação
Penal 470 há uma situação especial que atrapalha a emissão de votos sucintos
demais, dizendo apenas que seguem o Relator ou Revisor. Com tanta audiência
midiática, é natural que todos os Ministros temam parecer superficiais ou acomodados
apenas acompanhando votos dos colegas. Se, porém, o respeitado presidente Ayres
Britto solicitar, em pleno julgamento, esse favor dos senhores Ministros, ou
pedindo a eles que façam um esforço para resumirem seus votos em tantos minutos
— em benefício da celeridade —, aí desaparecerá o constrangimento relacionado
com a concisão indispensável para que o julgamento deste caso não continue por
meses ou anos afora, tirando proveito de um Regimento Interno excessivamente
tolerante na concessão de recursos.
O que pretende o
Min. Joaquim Barbosa, com sua réplica? Convencer o Min. Lewandowski a mudar seu
voto? Não o conseguirá, por mais eventualmente sábias que sejam suas palavras.
Mudança de voto por pressão argumentativa de colega de julgamento é vista com
justificado horror por magistrados. Que se faça isso uma vez por ano, ou menos,
vá lá. Mais do que isso carimba o magistrado como um ”fracote”,
“influenciável”, “insista! que ele cede e muda de opinião!”
Um grande cientista
pesquisador pode se dar ao luxo, sem vexame, de mudar várias vezes de opinião
na busca da esquiva verdade escondida na matéria. Um juiz, porém, que muda de opinião
com frequência dá a impressão de não ter “densidade” suficiente. Isso porque a
justiça aplica-se apenas a seres humanos, que, desde o tempo das cavernas, não
estão atrás da verdade pura, científica, mas de uma ordem estatal contra alguém.
Um juiz enérgico. com Q.I. de 90 pontos, impressiona muito melhor que um juiz
de Q.I. de 120 pontos mas que a todo momento muda de orientação.
Finalmente, o
assunto da aposentadoria do Min. Cezar Peluso. Poderá ele votar antes de se
aposentar?
Houvesse maior
racionalidade legislativa no tratamento do tema “aposentadoria por idade do
magistrado”, a data fatal de 3 de setembro próxima não teria muita importância.
Aposentado, o Min. Peluso poderia ser consultado pelo Tribunal indagando-o se
aceitaria continuar no julgamento do caso do Mensalão, tendo em vista que já
conhece bem o processo e seria um desperdício que esse trabalho, na sua
integralidade, fosse inutilizado. Afinal, sua aposentaria não foi decretada por
incapacidade física, ou mental, mas por uma mera abstração que, por sinal, é
completamente arbitrária. Nos EUA o juiz pode estar com mais de noventa anos e,
permanecendo lúcido, só sairá quando assim quiser.
A aposentadoria aos
70 anos não deveria ser considerada como o equivalente de um maciço “derrame
cerebral”, hoje AVC, ocorrido como presente de aniversário da ingrata natureza.
Quem sabe, o futuro nos reservará essa benéfica e racional mudança, permitindo
que o magistrado que acompanhou a instrução de um processo possa, se assim
quiser, dar o seu voto, para o qual se preparou longamente. Seria um caso de
vinculação ao processo, como já existe no caso do juiz que muda de comarca mas
fica vinculado a decidir o caso em que formou a instrução, isto é, recolheu a
prova. O fato de um juiz querer dar o seu voto, após aposentado, num caso ou
outro que estudou, não significa algo mau, parcialidade. Certamente significará
vontade de externar sua opinião em caso importante, realizando justiça em sua
maior plenitude. Relembre-se que a isenção de qualquer juiz só é exigível
quando ele recebe o caso, não no momento de julgá-la. No momento de julgar ele
não pode mais ser “isento”, isto é, não saber qual das duas partes está com a
razão. Tem que decidir em favor de um dos lados. Não pode dizer que o processo
“empatou”, deixando a solução para as próprias partes, que possivelmente
decidirão a pendência usando a força.
O Min. Cezar Peluso
é considerado um juiz severo. Isso, no entanto, não significa necessariamente
que vá ser um “condenador”, no caso da Ação Penal 470. Sua severidade pode
incidir também contra a acusação.
É pena que as
presentes considerações tenham somente um vago interesse acadêmico, porque não
haverá tempo para uma alteração legal das normas atuais relacionadas com a
aposentadoria por idade dos magistrados, impedindo-o de dar qualquer voto,
mesmo tendo estudado longamente o caso, como é o caso do “Mensalão”.
Uma coisa resulta de
tudo o que foi acima mencionado: o Regimento Interno do STF e mesmo a
legislação processual penal precisam ser alterados.
(25-8-2012)
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