quarta-feira, 13 de junho de 2012

Mensalão, gratidão, corrupção e lentidão


Tudo em “ão”. E a rima, no caso, não é apenas sonora, mas de conteúdos. Expliquemos. 

Em 20 de maio último publiquei um artigo, “Quando a gratidão se torna um mal”, no meu site e no meu blog — www.franciscopinheirorodrigues.com.br — bem como em outros sites amigos, www.mundori.com, www.netlegis.com.br e outros. A ênfase do artigo era demonstrar que a gratidão, embora sendo uma das qualidades mais belas do ser humano — até os cães a possuem — pode, como todas as virtudes, ser contaminada por cálculos rasteiros do benfeitor. E nem sempre é fácil, ao beneficiado, quando moralmente íntegro, escapar da pressão do próprio íntimo em retribuir o favor recebido. Mesmo quando sua consciência lhe aponta que o benfeitor está abusando.

Dei, no artigo, o exemplo de um governador recém-eleito que, cobrado por um empresário de reputação duvidosa — que se oferecera para ajudá-lo quando ainda candidato, fazendo propaganda com alto-falantes — negara, depois da posse, o pedido do empresário para ser nomeado para um cargo que propiciaria grandes desvios de dinheiro público. Considerando que o zelo pela coisa pública deve prevalecer sobre o natural — quase biológico —, sentimento da gratidão, concluí —, como certamente concluiu o leitor — que na hora de “pagar”o favor, o beneficiado deve verificar se esse “pagamento” fere, ou não, a lei ou a ética. Se fere, deve dizer ao benfeitor: — “Desculpe, amigo. Continuo lhe devendo o favor. Pagarei em outra oportunidade, mas o que me pediu agora, não posso fazer.” Essa negativa não será ingratidão, mas virtude lúcida, expressa com energia. Se alguém lhe empresta dinheiro em momento difícil mas pede, depois, que você transporte cocaína dentro do estômago, seria ingratidão negar o pedido?

Esse “filtro” moral, no momento de retribuir um favor, não parece muito utilizado, talvez por falta de hábito —, ou mesmo por ignorância teórica de assuntos éticos numa área — a política partidária — em que a luta pelo poder se torna encarniçada e escrúpulos são encarados como “perfumarias”. Acredito que no início do primeiro governo Lula, algum parlamentar destacado de seu partido, bom psicólogo, percebeu que poderia, em única ação, ser ao mesmo tempo “solidário” com algumas dezenas de recém-eleitos — que passavam dificuldades financeiras para pagar débitos da campanha eleitoral — e obter simultaneamente uma quase garantia de que os beneficiados iriam retribuir. Como? Evidentemente não com dinheiro, mas com “especial atenção” na hora de votar projetos de interesse do governo. Credores diversos, que trabalharam nas campanhas dos congressistas, incomodam posteriormente os eleitos e “para que estes se concentrem melhor no trabalho parlamentar — portanto em benefício do país! —, é melhor que trabalhem sem pensar em dívidas”. Penso que teorizações assemelhadas passavam pela cabeça de alguns ajudantes e ajudados do “mensalão”.

No Brasil, como no resto do mundo — esse é o ponto mais rasteiro da democracia —, quase todo cidadão, para conseguir ser eleito precisa de dinheiro. Muito dinheiro. Não é exagero dizer que os cargos políticos são, em boa parte, simplesmente “comprados”, via marketing e propaganda. O velho refrão teórico “um homem, um voto” foi modificado: “para cada minuto de TV, mil votos”. O que não aparece na TV simplesmente não existe. Inclusive na urna.

A despesa de eleição é tolerável quando o candidato é famoso jogador de futebol, apresentador de grande programa de auditório, ou protegido de altas figuras políticas. Mesmo no EUA, presidentes e candidatos da oposição modificam o conteúdo de seus discursos de campanha conforme aconselham seus conselheiros financeiros e estrategistas da opinião pública. “No money, no chair”. Pontos de vista de política externa e outros temas são alterados — com impressionantes ataques de amnésia —, visando a arrecadação de fundos. A coerência simplesmente se evapora. “Pombas” viram “falcões”, com o maior desrespeito à sua imagem anterior. Pressões terríveis, relacionadas com a necessidade de votos sugam qualquer resquício de uma bela qualidade que se chama “personalidade” — a coragem de ser e não esconder o que se é.

“Quanto custa”, em toda parte, ser eleito deputado federal ou senador? E são raros os candidatos que mesmo dispondo de dinheiro próprio para tais “aventuras” — suas práticas esposas a elas se opõem, angustiadas —, assumem o risco de perdê-lo na tentação de ingressar na política. Eleitores são ingratos e nem sempre as urnas correspondem aos gastos na mesma proporção.

Enfim, no início de cada legislatura é previsível que haja um pequeno ou médio contingente de endividados de campanha — alguns pretendendo apenas “se arrumar”, eles mesmos, parentes e amigos. Outros, mais raros, com impulsos idealistas, sinceramente agradeceriam, com lágrimas nos olhos, uma ajudazinha financeira para livrarem-se de seus insistentes credores eleitorais e atividades assemelhadas. E os parlamentares mais astutos — mais “solidários” —, próximos dos presidentes, meditam sobre o imenso potencial da gratidão política. “Como utilizar, de maneira aceitável, esse potencial? Uns poucos votos a mais, em votações difíceis, “ajudariam a melhorar o país”.

Para reforçar a justificação teórica das — para eles — meras “irregularidades financeiras”, os mecenas político-financeiros argumentariam, tranquilizando suas consciências: — “Gente do povo não tem dinheiro suficiente para entrar no Congresso. Como contornar essa dura realidade? Devemos, passivamente, cruzar os braços e deixar o governo da nação, indefinidamente, nas mãos pouco limpas, mas ricas, da burguesia? As camadas mais pobres continuariam sem verdadeiros representantes no Congresso, porque seus candidatos não se elegem apenas por falta de dinheiro? Não seria uma forma de covardia essa passividade disfarçada em moralismo cego? Cego, porque não mostram, os jornais, diariamente, novas e vultosas roubalheiras do colarinho branco que resultam impunes?”

Surge, então, a questão de saber quem desembolsará o dinheiro para ajudar os parlamentares endividados em campanha. Se o presidente eleito for, eventualmente, um milionário, um Rockefeller do Hemisfério Sul, o problema se resolve em uma questão estritamente moral porque cada cidadão, dentro ou fora do governo, tem o direito de gastar seu patrimônio na maneira que lhe agradar, desde que não cometa um crime. A mera ajuda financeira — sem condicionantes de votação futura — a um parlamentar endividado, saindo do bolso de um presidente, ou de seus simpatizantes milionários, que não exigiram — direta ou indiretamente — retribuição com votação em plenário, não será objeto de discussões jurídicas na área penal. Haveria apenas , uma infração ao Código de Ética do deputado ou senador, por causa do velho conselho da “mulher de César”, etc.

Se, porém, a “ajuda” ao parlamentar endividado em campanha, veio ilicitamente dos cofres públicos — não através de empréstimos bancários regulares, como seria legal —, aí a “solidariedade humana” se desfigura porque a legislação não tolera esse desvio de dinheiro público. A lei não diz que “os fins justificam os meios”.

Nas considerações acima, porém — e infelizmente —, não se resume o “mensalão”. Pelo que diz, sugere, ou prova a mídia, a “pensão mensal” entregue a alguns membros do Congresso não teria relação apenas com momentâneas dificuldades financeiras de recém-eleitos de origem modesta. Seria mesmo compra de votos, sem atenuantes pelo menos morais, ou quase isso.

A problema maior do julgamento do “Mensalão” está agora na obrigação herculeamente minuciosa dos Ministros do STF, que terão de fundamentar a absolvição, ou condenação, de cada um dos inúmeros acusados, com prova espalhada em 130 volumes dos autos do processo. Haja fôlego e tempo para ler tantas páginas, cheques, registros e longas e dissertações que visam tanto esclarecer quanto confundir o julgador.

A propósito dos 130 volumes, o processo do “Mensalão” veio comprovar que seria altamente conveniente que a legislação processual fosse alterada de modo a limitar o número de páginas das petições e documentos juntados pelas partes nos autos de processos. Principalmente, quando houvesse mais de três réus. Uma espécie de obrigação de resumo. Só os argumentos nele escrito exigiriam uma resposta do julgador. Quem não é capaz de resumir seus argumentos em dez laudas admite que está meio sem rumo no que pretende demonstrar.

Todo advogado que defende um cliente que não tem razão sabe que a “única esperança de uma escapatória” está em confundir a cabeça do juiz, trazendo argumentação e prova confusas, embaralhadas, na esperança de conseguir um “dubio pro reo”, que implicará em absolvição. A parte que tem razão normalmente procura ser sintética e objetiva. A parte que não a tem esmera-se em montar uma mistura de filosofia, sociologia, religião, metafísica, psicanálise, literatura e argumentos de difícil compreensão que visam vencer pelo cansaço visual e cerebral os seus julgadores.

Presumo que nos casos de meras “ajudas” financeiras do “Mensalão”, com algum toque de solidariedade, não houve um diálogo cru, direto, do seguinte teor: — “Vamos te ajudar com uma verba para você pagar suas dívidas de eleição, mas você estrará obrigado a, doravante, apoiar os projetos de interesse do governo!” O fraseado mais provável terá sido: — Pedimos apenas que examine com carinho as posições do governo. Queremos melhorar a sorte dos desfavorecidos, mal representados, apesar de serem maioria na população. Não estamos te comprando. Certo?” E a resposta seria: — “Claro, eu jamais me venderia. Agradeço a generosidade”.

 Depois disso, porém, o dormente instinto de gratidão entrará em cena,  acordando no momento certo e confortado, moralmente, com a lembrança de que “estou votando, a favor, de cabeça erguida porque não prometi nada ao meu benfeitor, e ele também nada me pediu, formalmente”. 

Uma coisa é certa e servirá de consolo, seja qual for o resultado no julgamento do “mensalão”: os políticos, doravante, terão maior receio de desviar dinheiro público. A longa tensão psicológica dos acusados, mesmo eventualmente absolvidos, certamente desestimulará novas iniciativas do gênero. Teria sido melhor, pensarão, se amarrar em um empréstimo bancário, para longo pagamento, do que permanecer sentando em uma cadeira tremendamente quente e que talvez me afaste em definitivo da vida política.

Quanto à “lentidão” do título, todo o empenho do legislador deve ser feito no sentido de simplificar a legislação processual para que os processos sejam mais rápidos, sem prejuízo da segurança jurídica. E isso é possível, sem atropelo ao direito de defesa. A extensão do presente artigo aconselha deixar esse assunto para nova oportunidade. 

(12-6-2012)
































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