Tudo em “ão”. E a
rima, no caso, não é apenas sonora, mas de conteúdos. Expliquemos.
Em 20 de maio
último publiquei um artigo, “Quando a gratidão se torna um mal”, no meu site e
no meu blog — www.franciscopinheirorodrigues.com.br —
bem como em outros sites amigos, www.mundori.com, www.netlegis.com.br
e outros. A ênfase do artigo era demonstrar que a gratidão, embora sendo uma
das qualidades mais belas do ser humano — até os cães a possuem — pode, como
todas as virtudes, ser contaminada por cálculos rasteiros do benfeitor. E nem
sempre é fácil, ao beneficiado, quando moralmente íntegro, escapar da pressão
do próprio íntimo em retribuir o favor recebido. Mesmo quando sua consciência
lhe aponta que o benfeitor está abusando.
Dei, no artigo, o
exemplo de um governador recém-eleito que, cobrado por um empresário de
reputação duvidosa — que se oferecera para ajudá-lo quando ainda candidato,
fazendo propaganda com alto-falantes — negara, depois da posse, o pedido do
empresário para ser nomeado para um cargo que propiciaria grandes desvios de
dinheiro público. Considerando que o zelo pela coisa pública deve prevalecer
sobre o natural — quase biológico —, sentimento da gratidão, concluí —, como
certamente concluiu o leitor — que na hora de “pagar”o favor, o beneficiado
deve verificar se esse “pagamento” fere, ou não, a lei ou a ética. Se fere,
deve dizer ao benfeitor: — “Desculpe, amigo. Continuo lhe devendo o favor. Pagarei
em outra oportunidade, mas o que me pediu agora, não posso fazer.” Essa
negativa não será ingratidão, mas virtude lúcida, expressa com energia. Se
alguém lhe empresta dinheiro em momento difícil mas pede, depois, que você
transporte cocaína dentro do estômago, seria ingratidão negar o pedido?
Esse “filtro”
moral, no momento de retribuir um favor, não parece muito utilizado, talvez por
falta de hábito —, ou mesmo por ignorância teórica de assuntos éticos numa área
— a política partidária — em que a luta pelo poder se torna encarniçada e
escrúpulos são encarados como “perfumarias”. Acredito que no início do primeiro
governo Lula, algum parlamentar destacado de seu partido, bom psicólogo,
percebeu que poderia, em única ação, ser ao mesmo tempo “solidário” com algumas
dezenas de recém-eleitos — que passavam dificuldades financeiras para pagar
débitos da campanha eleitoral — e obter simultaneamente uma quase garantia de
que os beneficiados iriam retribuir. Como? Evidentemente não com dinheiro, mas
com “especial atenção” na hora de votar projetos de interesse do governo.
Credores diversos, que trabalharam nas campanhas dos congressistas, incomodam
posteriormente os eleitos e “para que estes se concentrem melhor no trabalho
parlamentar — portanto em benefício do país! —, é melhor que trabalhem sem
pensar em dívidas”. Penso que teorizações assemelhadas passavam pela cabeça de
alguns ajudantes e ajudados do “mensalão”.
No Brasil, como no
resto do mundo — esse é o ponto mais rasteiro da democracia —, quase todo
cidadão, para conseguir ser eleito precisa de dinheiro. Muito dinheiro. Não é
exagero dizer que os cargos políticos são, em boa parte, simplesmente
“comprados”, via marketing e propaganda. O velho refrão teórico “um homem, um
voto” foi modificado: “para cada minuto de TV, mil votos”. O que não aparece na
TV simplesmente não existe. Inclusive na urna.
A despesa de
eleição é tolerável quando o candidato é famoso jogador de futebol,
apresentador de grande programa de auditório, ou protegido de altas figuras
políticas. Mesmo no EUA, presidentes e candidatos da oposição modificam o
conteúdo de seus discursos de campanha conforme aconselham seus conselheiros
financeiros e estrategistas da opinião pública. “No money, no chair”. Pontos de
vista de política externa e outros temas são alterados — com impressionantes
ataques de amnésia —, visando a arrecadação de fundos. A coerência simplesmente
se evapora. “Pombas” viram “falcões”, com o maior desrespeito à sua imagem
anterior. Pressões terríveis, relacionadas com a necessidade de votos sugam
qualquer resquício de uma bela qualidade que se chama “personalidade” — a
coragem de ser e não esconder o que se é.
“Quanto custa”, em
toda parte, ser eleito deputado federal ou senador? E são raros os candidatos
que mesmo dispondo de dinheiro próprio para tais “aventuras” — suas práticas esposas
a elas se opõem, angustiadas —, assumem o risco de perdê-lo na tentação de
ingressar na política. Eleitores são ingratos e nem sempre as urnas
correspondem aos gastos na mesma proporção.
Enfim, no início de
cada legislatura é previsível que haja um pequeno ou médio contingente de
endividados de campanha — alguns pretendendo apenas “se arrumar”, eles mesmos,
parentes e amigos. Outros, mais raros, com impulsos idealistas, sinceramente
agradeceriam, com lágrimas nos olhos, uma ajudazinha financeira para livrarem-se
de seus insistentes credores eleitorais e atividades assemelhadas. E os
parlamentares mais astutos — mais “solidários” —, próximos dos presidentes,
meditam sobre o imenso potencial da gratidão política. “Como utilizar, de
maneira aceitável, esse potencial? Uns poucos votos a mais, em votações
difíceis, “ajudariam a melhorar o país”.
Para reforçar a justificação
teórica das — para eles — meras “irregularidades financeiras”, os mecenas
político-financeiros argumentariam, tranquilizando suas consciências: — “Gente
do povo não tem dinheiro suficiente para entrar no Congresso. Como contornar
essa dura realidade? Devemos, passivamente, cruzar os braços e deixar o governo
da nação, indefinidamente, nas mãos pouco limpas, mas ricas, da burguesia? As
camadas mais pobres continuariam sem verdadeiros representantes no Congresso,
porque seus candidatos não se elegem apenas por falta de dinheiro? Não seria
uma forma de covardia essa passividade disfarçada em moralismo cego? Cego,
porque não mostram, os jornais, diariamente, novas e vultosas roubalheiras do
colarinho branco que resultam impunes?”
Surge, então, a questão
de saber quem desembolsará o dinheiro para ajudar os parlamentares endividados
em campanha. Se o presidente eleito for, eventualmente, um milionário, um
Rockefeller do Hemisfério Sul, o problema se resolve em uma questão
estritamente moral porque cada cidadão, dentro ou fora do governo, tem o
direito de gastar seu patrimônio na maneira que lhe agradar, desde que não
cometa um crime. A mera ajuda financeira — sem condicionantes de votação futura
— a um parlamentar endividado, saindo do bolso de um presidente, ou de seus
simpatizantes milionários, que não exigiram — direta ou indiretamente —
retribuição com votação em plenário, não será objeto de discussões jurídicas na
área penal. Haveria apenas , uma infração ao Código de Ética do deputado ou
senador, por causa do velho conselho da “mulher de César”, etc.
Se, porém, a
“ajuda” ao parlamentar endividado em campanha, veio ilicitamente dos cofres
públicos — não através de empréstimos bancários regulares, como seria legal —,
aí a “solidariedade humana” se desfigura porque a legislação não tolera esse
desvio de dinheiro público. A lei não diz que “os fins justificam os meios”.
Nas considerações
acima, porém — e infelizmente —, não se resume o “mensalão”. Pelo que diz,
sugere, ou prova a mídia, a “pensão mensal” entregue a alguns membros do
Congresso não teria relação apenas com momentâneas dificuldades financeiras de
recém-eleitos de origem modesta. Seria mesmo compra de votos, sem atenuantes
pelo menos morais, ou quase isso.
A problema maior do
julgamento do “Mensalão” está agora na obrigação herculeamente minuciosa dos
Ministros do STF, que terão de fundamentar a absolvição, ou condenação, de cada
um dos inúmeros acusados, com prova espalhada em 130 volumes dos autos do
processo. Haja fôlego e tempo para ler tantas páginas, cheques, registros e
longas e dissertações que visam tanto esclarecer quanto confundir o julgador.
A propósito dos 130
volumes, o processo do “Mensalão” veio comprovar que seria altamente
conveniente que a legislação processual fosse alterada de modo a limitar o
número de páginas das petições e documentos juntados pelas partes nos autos de
processos. Principalmente, quando houvesse mais de três réus. Uma espécie de
obrigação de resumo. Só os argumentos nele escrito exigiriam uma resposta do
julgador. Quem não é capaz de resumir seus argumentos em dez laudas admite que
está meio sem rumo no que pretende demonstrar.
Todo advogado que
defende um cliente que não tem razão sabe que a “única esperança de uma
escapatória” está em confundir a cabeça do juiz, trazendo argumentação e prova
confusas, embaralhadas, na esperança de conseguir um “dubio pro reo”, que
implicará em absolvição. A parte que tem razão normalmente procura ser
sintética e objetiva. A parte que não a tem esmera-se em montar uma mistura de
filosofia, sociologia, religião, metafísica, psicanálise, literatura e argumentos
de difícil compreensão que visam vencer pelo cansaço visual e cerebral os seus
julgadores.
Presumo que nos
casos de meras “ajudas” financeiras do “Mensalão”, com algum toque de
solidariedade, não houve um diálogo cru, direto, do seguinte teor: — “Vamos te
ajudar com uma verba para você pagar suas dívidas de eleição, mas você estrará
obrigado a, doravante, apoiar os projetos de interesse do governo!” O fraseado
mais provável terá sido: — Pedimos apenas que examine com carinho as posições
do governo. Queremos melhorar a sorte dos desfavorecidos, mal representados,
apesar de serem maioria na população. Não estamos te comprando. Certo?” E a
resposta seria: — “Claro, eu jamais me venderia. Agradeço a generosidade”.
Depois disso, porém, o dormente instinto de gratidão
entrará em cena, acordando no momento
certo e confortado, moralmente, com a lembrança de que “estou votando, a favor,
de cabeça erguida porque não prometi nada ao meu benfeitor, e ele também nada
me pediu, formalmente”.
Uma coisa é certa e
servirá de consolo, seja qual for o resultado no julgamento do “mensalão”: os
políticos, doravante, terão maior receio de desviar dinheiro público. A longa
tensão psicológica dos acusados, mesmo eventualmente absolvidos, certamente
desestimulará novas iniciativas do gênero. Teria sido melhor, pensarão, se amarrar
em um empréstimo bancário, para longo pagamento, do que permanecer sentando em
uma cadeira tremendamente quente e que talvez me afaste em definitivo da vida
política.
Quanto à “lentidão”
do título, todo o empenho do legislador deve ser feito no sentido de
simplificar a legislação processual para que os processos sejam mais rápidos,
sem prejuízo da segurança jurídica. E isso é possível, sem atropelo ao direito
de defesa. A extensão do presente artigo aconselha deixar esse assunto para
nova oportunidade.
(12-6-2012)
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