Lendo os jornais, recheados
de intrigas políticas, com deduções tremendas de “exploração de prestígio” e
“tráfico de influência”, a mera proximidade corporal, eletrônica ou cibernética
se tornou um perigo. A qualquer político, magistrado, ou empresário, zeloso da sua
reputação, recomenda-se levar uma vida de ermitão social. Nunca aceitar uma
carona de automóvel, avião, helicóptero ou barco sem antes exigir, de quem o convida,
certidões negativas, atualizadas, de todos os cartórios judiciais, com “um nada
consta”. E convém, para maior garantia, que contrate detetives para sondar o
passado dos eventuais contatos porque eles podem ser marginais enrustidos.
Ser fotografado ao lado de
pessoa com possíveis inimigos está se tornando uma atitude temerária porque
sabe-se lá o que a mídia concluirá dessa aproximação. Até que se prove sua
inocência, sua reputação estará arruinada. E mesmo se nada for apurado, a
má-fama continuará porque a população não tem como ler tudo o que aparece nos
jornais. E caso leia, não terá certeza se “o cara” não é mesmo bandido, escapando
da cadeia apenas porque “contratou um bom advogado”.
As genéricas considerações
acima não têm — é bom deixar claro — conexão com os atuais escândalos relacionados
com um empresário dos jogos de azar cujo nome lembra água que despenca de
grande altura. Isso porque se um político alega nunca ter tido contato com um
suspeito e a mídia prova — com fotos, e-mails e registros telefônicas —, que
esse contato era frequente, essa diligência investigadora mostrou-se
pertinente, no sentido de que o político está mentindo. E quem mente está, em
tese, escondendo algum malfeito, porque ninguém mente à-toa . Agora, se o
político, magistrado ou empresário admite, de pronto, que manteve contato
social, comercial ou institucional, com Fulano ou Sicrano, explicando com
naturalidade e verossimilhança a natureza desse contato, que este não seja motivo
para jogar o cidadão aos leões e hienas da mídia. Leões são a grande mídia. As
hienas devoram o que sobra.
Os criminalistas são, de
modo geral, profissionais simpáticos, curiosos, inteligentes, comunicativos,
receptivos ao humor, alguns até engraçados no momento certo — em defesas no
júri uma “sacada” pode decidir um julgamento —, bem informados e com alguma
veia literária. Tenham ou não escrito, ainda, trabalhos de ficção, ou fora dos
autos. De tanto ouvir, dos clientes, desabafos, verdades que não podem ser
ditas a mais ninguém, mentiras que precisavam ser ditas para salvar a pele — a
própria ou de um grande amigo ou parente que quis apenas ajudá-lo —, acabam se
tornando ótimos psicólogos, conhecedores dos recantos morais mais escuros,
inacessíveis a outros profissionais, instruídos apenas com o habitual jogo de
mentiras de todo tipo de comércio. Imagino que os sacerdotes de antigamente,
calejados na escuta de pecados e manobras para “dourar a pílula” — tentando
inconscientemente enganar o próprio confessor —, não ficavam muito atrás de
Freud no conhecimento da alma. Pelo menos o que ocorre no porão, ou banheiro.
Feito esse introito,
demonstrativo de respeito por uma profissão muito ingrata, porque a comunidade
gostaria de ver muitos de seus clientes atrás das grades, por décadas, ou mesmo
enforcados — isso não ocorrendo “por culpa dos “advogados espertos que
aproveitam as falhas da lei” —, sinto-me obrigado, como simples cidadão, a sugerir
algumas alterações — na lei ou na jurisprudência —, que diminuiriam a evidente
impunidade reinante.
Deixo claro que se eu
vivesse da advocacia criminal e precisasse sustentar minha família, faria
exatamente o que todos fazem — se dentro da legalidade —, porque é da essência
da advocacia defender o cliente usando os instrumentos processuais disponíveis.
Assim como um cirurgião do governo, designado para operar o coração de um
financista desonesto, não pode errar, de propósito, na operação — visando eliminar
um homem daninho —, não pode o
criminalista deixar de usar seus conhecimentos em benefício do cliente. E ficar
recusando ricos clientes é suicídio profissional. Por que, afinal, estudou
tanto se não pode usar tais conhecimentos?
A comunidade revolta-se, com
razão, contra a impunidade dos ricos que se veem processados e, se condenados, não
cumprem pena de prisão em regime fechado. Esse sentimento de que existem duas
justiças, a do rico e a do pobre, é bem compreensível. Mas a impunidade, nesses
casos, não é total. Existe um castigo moral e social. Primeiro, porque a
desmoralização do réu sempre lhe é desagradável. Por mais cínico que seja o
réu, não lhe agrada ser visto como ladrão. Seus filhos, nas escolas, também
passam vexames e não há muito o que se fazer a respeito, se o “bullying” não é físico.
As esposas de tais marginais veem muitas amigas afastarem-se discretamente, com
medo do “diz-me com quem andas...”. Os negócios sofrem grande queda, ou mesmo fecham,
muitos amigos afastam-se, fingem que não o veem, etc. E seus advogados, quais justiceiros
particularizados, extraem o que podem — o contratado não é caro — para evitar o
grande pavor do desonesto: o xilindró. Um banqueiro, sem privilégios, nas sujas
cadeias dos países subdesenvolvidos viveria — mera hipótese — a antecâmara do
inferno, com dezenas de diabos de carne e osso tentando sacar alguma vantagem.
Passemos, agora, a examinar
alguns pontos fracos da nossa legislação e jurisprudência que precisariam ser
modificados para recuperação do prestígio da justiça criminal. Comecemos com o
bafômetro, quando recusado por motoristas que se envolvem em acidentes.
Essa recusa não pode deixar
de gerar alguma consequência legal, como se vem pretendendo. É evidente que seria
ridículo forçar o motorista a assoprar no aparelho. Não porque ele “não pode
ser obrigado a fazer prova contra si mesmo” — invocação que, por si só, é uma
confissão de culpa. É como se ele dissesse: — “Como estou alcoolizado, não vou
permitir que se constate isso com um aparelho!”
Não é possível “forçar”
porque, para isso, teria que haver ameaça e talvez luta corporal, até com a
possibilidade cômica de um motorista — fortíssimo, alterado pelo álcool e
acompanhado de amigos —, inverter os papéis, colocando o aparelho na boca do
guarda alegando que era este que estava bêbado. Bêbados têm ideias inesperadas.
Um deles, pescando nos EUA, aborrecido porque um pequeno tubarão roubava suas iscas,
atirou-se à água, atracando-se com o esqualo, que fugiu apavorado sem dar no
agressor uma única mordida. Uma sensata jurisprudência teria que, maciçamente,
presumir que o motorista só não assoprou o bafômetro porque reconhecia estar
com alta dose de álcool no sangue. A presunção de embriaguez estaria no simples
fato da recusa, cabendo ao motorista provar depois, em juízo, querendo, que
essa presunção não se aplicava, no seu caso.
Alegará talvez, seu
defensor, que a presunção não poderia prevalecer porque o motorista, por
exemplo, não estava, momentaneamente, em seu juízo perfeito, porque tomara
remédio com efeitos colaterais que ele desconhecia; ou que é insano desde que
nasceu; que é índio não inserido na civilização, ou qualquer condição
excepcional. Tudo isso exigiria prova difícil. Se o réu é louco não poderia
guiar automóvel; se estava fora de si porque é consumidor de drogas, não
poderia estar ao volante; o mesmo se diga do suposto índio não civilizado que,
como tal, não teria habilitação para dirigir.
Em suma, a mera recusa em
praticar um ato legal que, de imediato, poderia comprovar sua inocência, já
encerra uma presunção de culpa. Alguma pena teria que sofrer o recusante para
não tornar inútil uma lei que visa diminuir o número de mortos no trânsito. As
leis não são criadas apenas para proteger acusados. Visam defender também o
interesse da sociedade.
Nos aeroportos de todo o mundo o cidadão que quer entrar em um avião de
passageiros é obrigado a passar por sistemas de alarme e permitir que sua
bagagem passe pelo raio-x. Se ele se recusa a fazer isso, simplesmente não
embarca. O efeito da recusa é imediato e sem apelação. Ridículo seria, nesse
caso, ele dizer que não aceita ser revistado porque não é obrigado a produzir
prova contra si mesmo mas que, precisando viajar, seria inconstitucional
impedir seu direito de ir e vir, inclusive pelo ar. E, ainda no caso do
bafômetro, dizer que a prova da embriaguez poderia ser comprovada com prova
testemunhal é desconhecer a vida real. Dificilmente curiosos que pararam no
local para olhar o que aconteceu vão aceitar ser arrolados como testemunhas,
sendo depois convocadas a depor em juízo, dizendo se o motorista estava ou não
com jeito de embriagado.
Outra distorção abusiva da
ideia de que “ninguém pode produzir prova contra si mesmo” está no uso do
silêncio nos depoimentos judiciais, sem nenhuma consequência jurídica.
Imaginemos um perigoso e rico traficante que é requisitado para o
interrogatório. Chegando ao fórum — escoltado por viaturas e até helicóptero,
mobilizando dezenas de policiais — ele decide calar. Que não seja forçado a
falar é compreensível, mas que essa recusa não gere qualquer consequência é irracional
e um insulto à sociedade. A pegar essa moda, seria melhor intimar, bem antes da
audiência, o defensor e o réu a se manifestarem quanto à intenção, ou não, de
silenciar. Porem, mesmo que diga, o réu, que vai falar, nada impede que ele
mude de ideia ao chegar ao fórum, ridicularizando a justiça. “Mudar de ideia é
um direito constitucional”, diria.
Um detalhe que desmoraliza
as comissões parlamentares de inquérito, está na permissão do “cochicho” entre
o convocado e seu advogado, ou mais de um, antes do convocado responder às
perguntas. Afinal, é um depoimento ou junta consultiva? A comissão quer extrair
a verdade do convocado, ou do seu advogado? O depoimento pessoal não pode ser
apenas um meio de defesa. Deve ser muito mais a uma busca da verdade. Se fosse
encarado apenas como meio de defesa, quando o réu caísse nunca contradição que,
por si só, implicasse em confissão de um crime, essa confissão — pergunta-se —
não serviria para nada porque teria funcionado como acusação, violando a
“essência” defensiva do interrogatório. As “essências” filosóficas permitem
concluir qualquer coisa, conforme o interesse de quem as invocam.
Concluindo, se o Poder
Judiciário não reagir, na área penal — principalmente formando um lobby atuante
no Congresso Nacional e criando uma jurisprudência mais valorizadora da busca
da verdade real — o destino da magistratura está selado, não obstante a vasta
maioria dos magistrados seja estudiosa e se guie por padrões éticos. A companha
jornalística contra a violação do teto salarial, no judiciário, foi aplaudida
pela população porque ela está muito decepcionada com a justiça. Tão
decepcionada que se o ganho máximo, comprovado, dos juízes fosse de seis mil
reais, a população diria “Ainda é muito!”
Que as considerações acima
não assustem os criminalistas mais estudiosos. Uma maior “dureza”
interpretativa — maximizando o bom senso —, valorizará sua atividade
profissional. Hoje, a “coisa” está tão fácil para “anular tudo” que já não é
mais necessário muita leitura e saber para soltar criminosos em “habeas
corpus”. Ou então, que o Congresso
confesse abertamente que essa história de prisão é velharia, vingança social
inútil e dispendiosa, e invente uma nova técnica que desestimule as pessoas
propensas a cometer “crimes”, digo, “fatos socialmente incorretos”.
(3-6-2012)
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