Prevejo também, com o devido
pedido de desculpa pela ousadia, que o íntegro Min. Gilson Dipp, acostumado — como
magistrado de grande envergadura —, a ver as coisas de modo equidistante, não
se sentirá confortável na função inevitável de conter os impulsos vingativos —
talvez até inconscientes —, de alguns membros da Comissão, impregnados de
rancores inconformistas e mesmo justos, que pedem vingança em forma “oficial”,
apoiada pelo governo.
Segundo o Prof. Lafer, a
Comissão da Verdade será útil porque — nas suas palavras —, apenas “deverá
examinar graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um direito à memória e à verdade histórica. Suas
atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Ou seja, ela nem pune,
pois não é justiça de transição retributiva (...) nem indeniza (...). A
natureza da verdade que cabe à comissão apurar não é a verdade jurídica
proveniente da judicialização de processos políticos. É, para recorrer
novamente Arendt, a verdade factual dos
fatos e eventos, que é a verdade da política”.
Desnecessário transcrever o
artigo por inteiro. Resumindo o pensamento do erudito professor, essa Comissão,
diz ele,“visaria apenas impedir o esquecimento por apagamento de rastros da
violação de direitos humanos”. Mas quem disse que tais rastros foram apagados?
Quantos artigos, filmes, reportagens, entrevistas televisionadas e livros já
foram publicados e vistos sobre tais mazelas? A censura nunca impediu a difusão
de informes sobre torturas, homicídios e abusos de algumas centenas de sádicos
por vocação ou por ódio político —
existentes em todos os países e raças, na direita e na esquerda — que
aproveitam o momento de qualquer “virada” para dar vazão aos seus instintos. Se
a esquerda tivesse vencido, em 1964, esses ou outros sádicos equivalentes
teriam também, sem constrangimento, cometido barbaridades, com largo uso do
cárcere, torturas para obter informes e “paredón” contra os que lutaram contra
eles.
No meu modesto ponto de
vista, essa Comissão, só pelo fato de ser criada, oficialmente, por um governo
composto de pessoas, na sua maioria, oriundas da esquerda e mencionando, de
antemão — nas palavras de Paulo Sérgio Pinheiro —, que só se interessará,
unilateralmente, por violação dos direitos humanos cometidos por agentes do
governo, está destinada a fazer muito mais mal do que bem ao país. Será uma típica “Comissão revanchista”, ainda
que prometa — com ou sem sinceridade —, não o ser. Isso porque muitos juristas
e políticos, não só no Brasil mas no mundo todo, entendem que crimes contra os
direitos humanos não prescrevem. Se não prescrevem, será necessário — até por
coerência —, punir criminalmente dezenas ou centenas de pessoas, a grande
maioria já bem idosa, em todos os escalões, que agiram pessoalmente. ou por
omissão, na vigilância de seus subordinados, como seria o caso de oficiais de
alta patente.
Nossa Presidente, quando
ocupava importante cargo no Governo Lula — salvo engano, na Casa Civil — dizia
que os direitos humanos são imprescritíveis. Se ela continuar pensando do mesmo modo, nada
mais coerente com ela mesma que, constatados, com testemunhos colhidos na governamental
Comissão, os crimes de agentes do governo ditatorial, ela ordene ou estimule
seus subordinados da área jurídica a processarem criminalmente todos os
oficiais militares que ocuparam cargos de relevo, em uma verdadeira “caçada” de
culpados, os sádicos ou meramente distantes e omissos. Não é impossível, hoje,
garantir que daqui a dois anos, terminada a tarefa da Comissão, o STF, com nova
composição, decida que os direitos humanos são imprescritíveis.
Essa inoportuna Comissão
acabará funcionando, possivelmente, como uma espécie de Inquérito Policial,
colhendo provas que poderão servir de base para um posterior denúncia e
processo criminal de enorme repercussão e agitação no país. Agitação que deveria
estar pacificada com a Lei da Anistia. Pelo menos por suposto delito de
“omissão”, poucos e idosos generais, almirantes e brigadeiros escaparão da
tortura mental, moral e até financeira de contratar defensores caros e competentes
para poderem morrer com dignidade. E morrerão revoltados, porque a maioria
deles estava sinceramente convicta de que agiram por idealismo, impedido que o
país “descambasse” para um comunismo que consideravam equivocado, lesivo ao
país, conforme ficaria depois comprovado com o desmantelamento da União
Soviética e toda a pobreza do Leste Europeu, quando sob domínio russo.
Essa já confessada — pelo
sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro — intenção de somente “pegar” quem cometeu ou
indiretamente apoiou torturas estimulará pessoas “com mentalidade de direita” —
parcela minoritária mas composta de milhões de brasileiros desiludidos com a
corrupção e a impunidade atual do país — a reagir, formando uma outra Comissão,
não estatal — a “Comissão 2” —, colhendo
testemunhos de parentes de militares ou civis que foram prejudicados pelos
revoltosos de esquerda, assaltando bancos e cometendo outros ataques. E nada
impede que essa provável “Comissão 2” procure, indo mais a fundo na motivação
do Golpe Militar, demonstrar — colhendo depoimentos de natureza teórica —, que era
intenção da esquerda brasileira, no início dos anos 1960, instaurar uma “Cuba
n.2” no hemisfério sul. Uma “Cuba-Brasil” que teria sido obviamente estrangulada
economicamente, durante décadas, pelo poderio norte-americano, como ocorreu com
a Cuba do regime castrista. À época, os EUA tinham poder militar, econômico e
diplomático para isolar o Brasil. Com sanções econômicas impediria que outros
países fizessem negócios com o Brasil.
Essa provável “Comissão 2” se
especializará, certamente, em demonstrar que houve apenas um “golpe preventivo”
das Forças Armadas, abortando um golpe comunista que amadurecia a olhos vistos,
com desafios de cabos e sargentos à hierarquia militar; com políticos de
esquerda seguindo ordens da União Soviética, belo ideal socialista
transfigurado em impiedosa ditadura. Dirão, os depoentes da “Comissão 2”, que o
comunismo só empobreceu a própria Rússia e os países que dominou com punho de
ferro. É fácil prever que a “Comissão da Verdade 2” se orientará para a justificação
política do golpe militar porque a esquerda de então, sem força governamental,
não teria mesmo condições materiais para prender e torturar membros do governo, em
grande escala, pois não dispunha de cadeias, recursos e locais à sua
disposição.
Como bem lembra o cuidadoso
texto de Celso Lafer, os últimos governos já se interessaram em reparar, com
duas Comissões — a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, no governo
F. H. Cardoso e a Comissão de Anistia, no governo Lula — as injustiças
cometidas nos chamados “anos de chumbo’. Indenizações já foram pagas àqueles que
pessoalmente sofreram com a repressão, o mesmo ocorrendo com os familiares de
tais vítimas. Tendo em vista as reparações governamentais anteriores, não haveria,
acrescento, mais razão para criar nova Comissão, agora destinada a apurar,
unilateralmente, uma verdade já mais do que sabida e com finalidades — talvez
inconscientemente secretas — de revanche.
Fosse essa Comissão da
Verdade um empreendimento apenas cultural, privado, acadêmico, composto de
historiadores — sem interferência governamental —, não haveria o que censurar,
porque toda verdade deve ser investigada. Mas não é isso que está ocorrendo,
porque, repita-se, trata-se de uma comissão criada pelo governo, e governo oriundo
da esquerda, com as naturais mágoas. A “verdade histórica”, já conhecida, dificilmente
será vista como a meta verdadeira dessa Comissão.
De uns tempos para cá surgiu
no mundo uma nova, absurda e retrógrada mania de governos interferirem no exame
do passado, favorecendo ou proibindo tal ou qual investigação, segundo as
preferências de quem manda no momento. Dizem que os historiadores são mais
poderosos que Deus, porque este não pode modificar o passado, mas os
historiadores podem.
Poucos anos atrás, o
Parlamento Europeu baixou uma norma considerando crime alguém negar o
Holocausto. Simplesmente isso. Não obstante milhões ou centenas de milhares de
judeus tenham realmente perecido no impiedoso massacre, nenhum governo ou
Parlamento culto deveria impedir alguém de querer provar, com bons ou mal
argumentos, que o número de judeus assassinados foi diferente dos usualmente
mencionados seis milhões. Se algum maluco, com pretensões de historiador,
quisesse demonstrar com dados pesquisados, que o número de mortos não foi de
seis, mas de, digamos, três milhões, ou dois, ele se sentiria inibido e em
perigo de ser processado criminalmente, porque, de forma indireta, estaria
contrariando a versão semioficial, de seis milhões de mortos, que foi sempre
mencionada na mídia. Agora, se um outro historiador quisesse escrever um livro
comprovando que foram dez milhões os assassinados pelos nazistas, essa pesquisa
não sofreria nenhum risco de processo, porque não estaria negando o Holocausto.
As pesquisas históricas não devem ser “orientadas”, em um sentido ou outro.
O governo turco seguiu o
exemplo: baixou uma lei proibindo que alguém dissesse ou provasse que houve um
massacre de armênios no início do século passado. Como os armênios se recusaram
a lutar no exército turco contra um país vizinho, foram violentamente
reprimidos, com mortes ou deportação violenta, variando a cifra de mortos em
torno de um milhão e meio. Que o governo turco negasse ter havido um massacre
de armênios, dizendo que houve apenas uma guerra civil, estaria em seu direito.
Proibir, no entanto, sob pena de processo, que alguém investigue o assunto e
escreva a respeito já é um regresso às trevas da ignorância. Curioso, e
agravante, é que o governo Sarkozy, pouco depois, baixou uma ordem equivalente
— mas de sinal contrário —, proibindo que alguém, na França, negasse o chamado
“holocausto armênio”. Uma ridícula troca de proibições quanto à História. Cabe apenas
o consolo de que é melhor uma guerrinha de travesseiros do que uma guerra trocando
chumbo.
Repito: governos não têm o
direito de criminalizar a busca da verdade ou mesmo a suposta busca da verdade.
Quem quiser, que investigue o que bem entenda e depois seja, se for o caso,
ridicularizado pelas bobagens que concluir. Inversamente, não devem os
governos, sob o falso pretexto de perpetuar o “mero registro” da verdade — já
bem conhecida e sempre disponível a jornalistas e historiadores particulares —
criar Comissões confessadamente tendenciosas que poderão resultar em processos
que afrontam o que foi acordado na Lei de Anistia.
A nossa Lei da Anistia não vale mais? Como
reagiriam os adeptos de uma Comissão da Verdade se ela fosse criada, hipoteticamente,
por um governo eventualmente hoje de direita, com finalidade exclusiva de apurar as violações
de “terroristas de esquerda”? Ninguém pode negar que, caso triunfasse a
esquerda no governo de Jango Goulart, o “paredón” seria o destino de inúmeros
políticos e militares que se opunham ativamente ao movimento de esquerda.
Sempre foi assim em tais movimentos, seja de esquerda, seja de direita. Lenine
mandou matar o Czar |Nicolau II, mulher, filhos e empregados domésticos, só
para diminuir a possibilidade dos adeptos da monarquia russa voltarem ao poder.
Para Lenine, não haveria nada de moralmente censurável nisso porque o que
interessava era o “bem maior”, o superior interesse de uma causa justa que
corrigiria todas as injustiças sociais.
A atual Comissão da Verdade
só será útil para realimentar o ódio entre a esquerda e a direita brasileiras e
para a venda de revistas e jornais. Nada mais. Colher informações? Elas podem,
repita-se, serem colhidas por comissões e pesquisas particulares. Não envolvam
o governo nisso.
Agentes torturadores —
quando fazem esse trabalho sem serem coagidos — são realmente uma escória
moral. Em todas as raças e povos há um pequeno percentual de pessoas que têm
propensão ou indiferença sádica. É um dado biológico. Nasceram assim, “não têm
culpa”. Não sentem aversão em infligir sofrimento. Carrascos que operavam a
guilhotina, ao tempo do Terror francês ou, na Idade Média, usando forca ou o
machado para cortar pescoços, certamente não vomitavam depois. Até preservavam o
emprego, tentando passar a “boquinha” para o júnior. Alguém dirá que a Comissão
da Verdade” poderia se limitar a investigar apenas os relatos contra as pessoas
que, pessoalmente, praticaram as torturas, sem alcançar a cúpula da Revolução
de 1964. Isso, porém, é impossível ou dificílimo, porque o torturado não sabia,
com certeza, quem ordenara a tortura. Na dúvida, seria “alguém lá de cima”, um
oficial de alta patente.
O leitor deve estar se
perguntando: — “Quem é esse cara” — este seu criado, leitor — “que escreve
contra a Comissão? Deve ser um tremendo fulaninho de direita...”
Respondo: não sou. Se o fosse,
diria, porque não é crime ter convicções políticas. Situo-me politicamente equidistante,
um tanto mais próximo da esquerda. O
Socialismo tem um belíssimo ideal a realizar na Terra, esse planeta tão cheio de injustiças
contra os que tiveram o azar de nascerem em família pobre.
O lema comunista de exigir, de cada um, conforme
sua capacidade e dar a ele conforme sua necessidade é Cristianismo puro. Uma
orientação que seria aplaudida por todos os anjos do céu. Só que é um ideal
prematuro, em termos práticos, porque a raça humana ainda está imensamente
impregnada de egoísmo, ganância e desejo de status. Basta ver os escândalos
financeiros revelados semanalmente no Brasil, cometidos não por pessoas
famintas, mas por gente rica e bem educada. A ganância e o desejo de ser melhor
que os outros está tão ínsita no ser humano que mesmo nos países comunistas,
antes da dissolução da União Soviética, formou-se uma “nova classe”, a
“nomenklatura” com direito a um conforto inacessível à “massa ignara”.
Ingressavam no partido único para terem direito a cartões de racionamento especiais
e para “subir na vida”.
Esse lema comunista, acima
enunciado — “à cada um conforme sua necessidade, etc. — não é aceito nem mesmo
por operários. Se dois deles, trabalhando na mesma função, diferem na
capacidade de trabalho e de gerar filhos, o trabalhador que é mais inteligente
e produtivo, mas tem apenas um filho, considerará injustiça se o operário
vizinho — lento, mole, confuso e com prole numerosa —, ganhe mais que ele só
porque, tendo muitos filhos, precisa receber salário maior.
Karl Marx resumiu, em curta
frase, seu ideal comunista: “a abolição da propriedade privada”. Noventa e oito
por cento dos trabalhadores, porém, não gostariam de viver em residências
coletivas, com intimidade forçada. Além disso, um socialismo ditatorial — no
começo, longo começo, sempre ditatorial, temendo o regresso do regime deposto
—apela ao terror, aos julgamentos sumários. Esse socialismo “virulento” simplesmente
“congela” a iniciativa e a criatividade. Daí a pobreza que sempre desaba sobre
os países sob ditadura comunista, com seus habitantes travados pelo medo de
demonstrar qualquer “tendência capitalista”. O belo ideal socialista terá que
ser atingido gradualmente, como ocorre nos países nórdicos, em que a ambição
individual, mesmo sendo eventualmente gananciosa, é empreendedora, cria novos
horizontes. Enriquece, evidentemente, uma pequena parte da população mas boa fração
dessa riqueza é canalizada, pelo governo, para as populações mais pobres. O
egoísmo capitalista é moralmente antipático mas como promove o enriquecimento
do país, acaba elevando o padrão de vida de todos: pobres, remediados e ricos.
O bom futuro do planeta está
na aliança da liberdade econômica — leia-se criatividade — com o planejamento de
retaguarda, isto é, na união do Capitalismo com o Socialismo. O primeiro para
criar a riqueza, soltando as rédeas das pessoas mais ousadas, mesmo
gananciosas. O Socialismo, para zelar pela utilização mais justa dessa riqueza.
Vigiando os “gananciosos” mas não a ponto de quase sufocar os produtores de
riqueza com tributos exagerados e desestimuladores. E será desnecessário
lembrar que os tributados excessivamente não se deixam saquear passivamente.
Para isso existem os Paraísos Fiscais, e outros truques — lícitos e “semi-lícitos”,
criados pelas infatigáveis criatividades contábeis e jurídicas. Segundo
Everardo Maciel — “As raízes da corrupção no Brasil”, jornal “O Estado de S.
Paulo”, de 2-1-12, pág. B-2 — os débitos
inscritos na Dívida Ativa da União ultrapassam a soma de um trilhão de reais, a
demonstrar que há muita coisa a consertar neste país, na área tributária e na
legislação processual que rege a cobrança das dívidas em geral.
Já que citei Marx, cito
agora um seu grande amigo, Engels, por sinal filho de um rico industrial
alemão. Engels dizia que “Tragédias genuínas no mundo não são conflitos entre o
certo e o errado. São conflitos entre dois certos”. Há também uma pequena dose
de “certo” na direita política.
Capitalismo e Socialismo
precisam andar de mãos dadas — ou até mesmo, inicialmente, amarradas, meio que
à força. E uma Comissão de Verdade que só retardará o ajustamento dos dois
grandes sistemas — reacendendo velhos ódios —, só atrapalhará o futuro do país.
A China vem crescendo mais que as demais nações porque fez uma acomodação entre
os dois sistemas. Podemos fazer o mesmo, no Brasil, com métodos próprios.
Aliás, isso vem sendo feito, sem alvoroço, pela Presidente Dilma. A Comissão da
Verdade parece ter sido apenas um ligeiro escorregão de uma mulher muito
autêntica, sentimental, honesta, corajosa, mas ainda abalada emocionalmente
pelo que sofreu em mãos perversas. Há, porém que, como estadista que é, ajudar
a esquecer um pesadelo ou sonho mau que ainda pode voltar a nos manter em
sobressalto.
Talvez, em outro artigo,
faça uma síntese bem apertado das virtudes e vícios dos dois sistemas políticos
que poderiam ter torrado, atomicamente, o planeta caso Nikita Kruschev não
tivesse recuado, sensatamente, aceitando o papel de fraco, quando Kennedy ameaçou
atacar, em 1962, a frota russa que conduzia mísseis para Cuba. Kruschev
desprestigiou-se, foi censurado pelos seus generais mas salvou a Terra da mais
mortífera das guerras.
(24-5-2012)
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