Diz a edição on-line do “The New York Times” de 9-6-09, que a Suprema Corte Federal dos EUA proferiu, por 5 votos contra 4, uma decisão extremamente importante: os juízes eleitos devem dar-se por suspeitos nos julgamentos de casos envolvendo litigantes que fizeram contribuições generosas para suas eleições. E ainda há, no Brasil, quem pense em imitar os EUA no pior, argumentando que isso seria “democrático”, pois — dizem eles — o poder dos juízes deveria originar-se da escolha direta da fonte do poder, o “povo”.
Talvez essa decisão seja um começo para que a grande e rica nação afaste o peso do dinheiro na escolha de seus juízes mais importantes. Isso porque eleições, em todo lugar, são caras e, por vezes, nada santas. Diz a mesma notícia que em 39 estados americanos, incluindo Nova Iorque, ocorrem eleições para escolha de “Justices” (o equivalente de “desembargador”, no Brasil). O redator do acórdão em exame, o “Justice” Anthony M. Kennedy, não pôs em dúvida a integridade pessoal do presidente do tribunal máximo estadual, na questão que deu margem à importante decisão. Poderia, o Justice Kennedy, no caso, invocar a conhecida advertência da “mulher de César”, que não basta ser honesta, é preciso também parecer honesta.
Resumidamente, o caso é o seguinte: no estado de Virgínia Ocidental, uma poderosa companhia que extrai e comercializa carvão, a “Massey Energy”, foi condenada, pelo júri local — lá o júri decide também causas cíveis — a pagar uma indenização de cinqüenta milhões de dólares a supostos, ou reais, prejudicados. A “Massey” apelou e o tribunal máximo do Estado da Virgínia Ocidental cancelou a condenação, isto é, decidiu pela improcedência da ação de indenização. Como a decisão foi apertada, 3 a 2, e o presidente — “Chief Justice” — do referido tribunal, Brent D. Benjamin, completou a maioria, aqueles que perderam o recurso por um voto recorreram à Suprema Corte Federal. Alegaram que o referido magistrado não poderia ter votado naquele caso. Estaria impedido porque a “Massey” contribuiu com três milhões de dólares para a campanha em que ele foi eleito. Por outras palavras, o juiz poderia, em tese, ter sido influenciado pelo sentimento de gratidão ao votar pelo cancelamento da indenização. Não sei se as palavras usadas no recurso foram exatamente essas, respeitosas, mas se a boa educação prevaleceu, deveriam ter sido.
Esclareça-se que, segundo a notícia, o executivo-chefe, ou CEO, da “Massey” teria contribuído apenas com mil dólares, quantia máxima permitida para contribuição de pessoa física. O restante, completando os três milhões de dólares, foi utilizado com os gastos de propaganda do candidato a juiz.
Diz ainda o jornal americano que na última década, nas eleições para as “Supreme Courts” locais — o equivalente de nossos Tribunais de Justiça — as doações para campanhas de juízes alcançaram duzentos milhões de dólares. Esse montante seria excessivo, inconveniente. O relator do acórdão vencedor ponderou que a “Massey”, sozinha, contribuiu com mais dinheiro que a soma de todas as outras contribuições de apoio ao candidato em referência. A quantia também seria três vezes superior ao gasto do próprio comitê de apoio ao candidato. A despesa ocorreu com propaganda pela televisão. Em resumo, essa decisão majoritária levou em conta o exagero, a desproporção do investimento da Massey na eleição de um juiz que, por cautela, depois, deveria ter se dado como suspeito para, julgar ação envolvendo ação vultosa contra a Massey.
Os juízes (“Justices) da Suprema Corte Federal minoritários nessa decisão — o próprio presidente John G. Roberts Júnior; Antonin Scalia; Clarence Thomas, e Samuel Alito Júnior argumentaram, em seus votos discordantes, não haver prova de que o voto do juiz em exame tenha sido influenciado pelas doações. Além do mais — prosseguem —, tal decisão provocará uma avalanche de pedidos de litigantes que perderam demandas em circunstâncias semelhantes e invocarão, de má-fé, o precedente para tentar invalidar condenações perfeitamente justas. Finalmente, alegam, essa situação de incerteza abalará a confiança do povo americano na sua justiça.
Realmente, como a importante decisão baseou-se no “exagero”, no vulto desproporcional do apoio financeiro em uma campanha eleitoral e considerando que não há um critério rígido — valor “x” — para dizer o que é, ou não, “excessivo”, a Suprema Corte passará por dificuldades para administrar o problema do excesso de recursos tentando subir à corte máxima do aparelho judicial. Examinar caso por caso será uma tarefa hercúlea. Mesmo os assessores do “justices” terão dúvidas no rotular, subjetivamente, a quantia como “razoável” ou “desproporcional” quando auxiliarem os juízes máximos no lidar com a imensa carga de trabalho acrescido. Por outro lado — felizmente, a meu ver —, os juízes da Suprema Corte Federal dos EUA dispõem de um poder de “decisão interna e sem fundamentação” que provavelmente desperta inveja aos equivalentes brasileiros, obrigados a fundamentar detalhadamente suas decisões.
Nosso sistema é muito mais transparente que o americano, no que se refere ao trabalho do tribunal máximo do país. É possível que, para não ficar atolada em processos, a “Supreme Court” americana apenas comunicará, aos que a ela recorrem alegando excesso de doações, que seu recurso “não foi conhecido”, ou expressão semelhante, e ponto final. Tal como ocorre em todos os pedidos de “writ of certiorari”, o equivalente do nosso recurso extraordinário. Certamente, muitos brasileiros ficarão curiosos sobre o que acontecerá na justiça americana depois da controversa decisão.
Talvez, e desejavelmente, os EUA cheguem à convicção de que o melhor sistema de escolha de juízes é o do concurso público de títulos e de provas — mais estas do que aqueles, porque sempre há o perigo do “ghostwriter” da área jurídica. Sem esquecer que, nas provas, os concursos devem ser bem fiscalizados, coibindo “recomendações” ou “pistolões” de qualquer natureza em favor de alguns candidatos.
Política e justiça são óleo e água. Não se misturam. Juiz eleito graças a bondosos doadores sente-se inconscientemente propenso a agradecer pelo cargo que ocupa. Paradoxalmente, a gratidão — rara qualidade que nem todos têm —, é, na função judicial, mais perigosa que a ingratidão. O ingrato típico, com seu egoísmo leviano, pouco está preocupado em retribuir qualquer benefício. Já o grato sente o impulso de dar algo em troca. É aí, na virtude, que mora o perigo, porque a função judicial é peculiar. Até mesmo nas nomeações por livre escolha do Executivo isso pode ocorrer. O belo sentimento de gratidão ainda pesa na almas, sejam elas cultas ou incultas. Como a função judicial exige frieza — ou pelo menos distanciamento —, o melhor sistema judiciário é aquele que livre seus magistrados da tentação de “serem agradecidos”. E não esquecer que quando as grandes empresas fazem generosas doações para eleição de juiz devem estar de olho em uma possível vantagem futura. Enfim, é um sistema que deve ser abolido o mais rápido possível.
Sempre me impressionou o fato de Al Capone só ter sido condenado por sonegação do imposto de renda. Todos sabiam, inclusive a polícia, que ele era um chefe mafioso que vivia do ilícito, mandando matar, aleijar e ameaçar com desenvoltura e quase total impunidade. Será que o fato de os juízes americanos serem escolhidos em eleições não tinha alguma relação com a relativa impunidade do crime organizado?
Em livros e filmes eram comuns as alusões a “juízes e senadores” que compareciam às festas dos chefões do crime organizado porque lhes deviam favores. E o mesmo ocorria com outros mafiosos. Quando tais “chavões” aparecem em filmes e livros americanos sobre o crime organizado é porque alguma realidade “autoriza” o autor ou roteirista a assim construir o enredo. É um “sintoma”, tal como ocorre hoje, no Brasil, na sensação de impunidade, quando, em filmes policiais, os casais — infratores, mas bonitos e simpáticos —, fazem projetos de fugir para o Brasil com o dinheiro arrancado de bandidos feios e perversos.
Esperemos que os EUA venha a abolir totalmente o uso de eleições na escolha de seus juízes. Pelo menos nisso estamos à frente deles. Um pequeno consolo. Aliás, estamos na frente também no que se refere à presidência do tribunal máximo. Aqui pelo menos há o rodízio na presidência. Lá, absurdamente, o presidente da Suprema Corte é nomeado pelo presidente da república para permanecer como, presidente enquanto vivo for, sem limite de idade. Seus pares não podem opinar quanto a esse privilégio. Uma espécie de monarca no país que mais prega a democracia. Estranho mundo, o jurídico.
(11-6-09)
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