terça-feira, 28 de julho de 2009

A amarga necessidade de se desculpar

Ela pode ser amarga, azeda, indigesta — e às vezes politicamente contraproducente —, mas, como muitos remédios amargos, é o único capaz de solucionar um problema. Barack Obama deu, recentemente, um bom exemplo disso. Teve a coragem de voltar atrás, em público, em um pequeno incidente que, não medicado a tempo, assumiria proporções inimagináveis. Todos se lembram da quase revolução que ocorreu nos EUA, poucos anos atrás, quando alguns policiais brancos foram absolvidos na justiça mesmo tendo sido filmados espancando um negro — o sobrenome era King — que, no solo, não reagia. Raça e dinamite são politicamente sinônimos. Pontos, no caso, para a apurada sensibilidade presidencial.

No dia 16-7-09, na cidade de Cambridge, Massachusetts, por volta das treze horas, Henry Louis Gates — professor negro da Universidade de Harvard, amigo de Obama e conhecido especialista de questões raciais —, ao voltar de uma viagem percebeu que a porta de sua casa tinha sido arrombada.

Para poder entrar, Gates forçou a porta. Um vizinha, que certamente não conhecia o professor, pensou que se tratava de um ladrão. Telefonou para a polícia. Quem atendeu foi um sargento, James Crowley, que é branco. Ele mesmo foi de viatura ao local e ao chegar o referido professor estava dentro da casa, telefonando para a empresa responsável pela segurança da propriedade.

As versões do mesmo fato não coincidem rigorosamente, mas dá para se saber o que ocorreu. O dono da casa estava nervoso e não gostou de ser encarado como um possível ladrão, sendo apenas vítima. O policial, por sua vez, exigiu que o homem negro se identificasse. Não seria obrigado a acreditar na versão de um possível bandido, porque alguns marginais são dotados de muito sangue-frio. Não poderia dizer simplesmente: “Ah! Você disse que mora aqui? Mil perdões! Vou embora”. Havia uma porta arrobada e um chamado da vizinha.

Seguiu-se uma discussão sobre a necessidade, ou não, do professor se identificar. Pelo que disse o policial, o professor recusou-se e ainda gritou, acusando-o de racista: “Assim é que os negros são tratados nos Estados Unidos”. Acabou sendo autuado por perturbar a ordem pública. O professor alega que se identificou e exigiu um pedido de desculpa. O policial disse que não tinha porque se desculpar pois teria seguido o protocolo.

O incidente chegou aos ouvidos de Barack Obama, amigo do professor. Baseado na versão de uma pessoa em quem confiava, classificou a ação policial de “estúpida”. Aí a coisa pegou fogo. Os policiais da cidade se revoltaram porque o sargento apenas seguira os regulamentos, não havendo porque se desculpar. Negam, no caso, qualquer conotação racista.

Como o pequeno incidente poderia se converter em uma “questão nacional”, Obama, melhor informado, retratou-se, pedindo desculpa pelo uso da expressão “estúpida” e convidando “os brigões” para uma cerveja na Casa Branca.

Ao que tudo indica, quem esteve errado foi o professor. Naquelas circunstâncias, era um suspeito, fosse ele branco, pardo, negro, amarelo ou verde (as tolices televisivas dizem que há marcianos entre nós). O policial teria todo o direito, e até a obrigação, de exigir um documento de identidade, e até algum outro, comprovando que morava no local. Mesmo ladrões têm documento de identidade. O professor não mencionou, depois, ter sofrido qualquer agressão, nem física nem verbal. Tivesse se colocado na posição do policial — simulação psicológica que poucos praticam, mas deveriam sempre praticar — teria mostrado, sem discussão, sua identidade.

O policial agiu com a altivez necessária, recusando-se a pedir desculpa. E seus colegas também agiram certo, apoiando-o em bloco. E mais certo ainda agiu Obama, retirando publicamente o termo pesado, “stupid”, que, ao contrário do que aparenta em português (“grosseiro, rude”), significa “burro”, sem inteligência. Podendo escolher, qualquer ofendido prefere ser chamado de “grosseirão” do que de “asno”. A inteligência é mais valorizada que as boas maneiras.

Obama certamente aprendeu a, doravante, não mais seguir o primeiro impulso, mesmo pressionado por algum amigo habitualmente veraz. Habitualmente, frise-se, porque emoções, principalmente de sentido racial, travam nossa sensatez e senso de proporção. Perguntem a um judeu e a um palestino o que eles acham do velho conflito.

O problema de “voltar atrás”, para os homens públicos, está na perda de prestígio que isso pode acarretar, e sempre acarreta, entre seus apoiadores. Alguns — felizmente os mais ignorantes, embora talvez em maior número — encaram qualquer “recuo” como sinal de fraqueza. Os não-brancos americanos que não gostam da polícia certamente resmungaram ante a desculpa presidencial. A eles não interessa se foi ou não justa. O senso de justiça, em assuntos raciais, é o que menos pesa.

Voltar atrás é sempre problemático. Dou um minúsculo exemplo. Um juiz, no Brasil, foi solicitado, por uma funcionária que trabalhava na sala de audiência, a indicar, por escrito, ao Tribunal, qual a funcionária que, doravante, trabalharia no recinto (datilografando os depoimentos das testemunhas e sentenças do juiz). Com essa formalização, referida funcionária ganharia um pouco mais que seus colegas, que permaneceriam no cartório atendendo advogados, etc. Assinado o ato, mas ainda não publicado, uma outra funcionária do mesmo cartório veio a sua presença e alegou que tinha sido injustiçada. Explicou que vinha trabalhando na sala há alguns anos — ao contrário da colega que fora agora indicada mas exercia essa função ha pouco tempo — e que em razão da antiguidade mereceria ser a escolhida para a função. Explicou que estivera afastada por estar de férias ou por questão de saúde, mas já estava boa e gostaria de ser ela a nomeada, não a outra. Acrescentou que a diferença de remuneração, embora pequena, seria muito importante para ela. O juiz constatou que se equivocara — as duas funcionárias eram igualmente capazes mas a reclamante, de fato, tinha muito mais antiguidade na função. Tornou sem efeito a indicação anterior, indicando a funcionária que fora esquecida. Fez justiça, mas depois se arrependeu: a “desnomeada” ficou ressentida com o “recuo” e a nomeada, em lugar de mostrar-se grata ficou é muito arrogante. O juiz ficou “sem cartaz” com duas, em vez de uma. “Quem sabe” — cogitava o juiz — “a finalmente nomeada até se gabou no cartório, entre os colegas, dizendo que “Obriguei o juiz a voltar atrás!”. Enfim, ser minuciosamente justo tem seus inconvenientes.

Não foi o caso de Obama, na situação acima referida. E ele certamente sabe que pedidos de desculpa não podem ser freqüentes. Daí a necessidade de não falar muito. Mil inimigos espreitam um presidente. Ouvidos malévolos, cobiçosos de sua posição, arquitetam mil contorções interpretativas. Há o risco da desmoralização. Por vezes, mormente na política, é melhor manter a “cara dura’ e fingir que está convicto do que diz, do que externar vacilações interiores. Até mesmo, paradoxalmente, na justiça, onde a busca incessante da verdade deveria ser um norte absoluto.

Imaginemos que um ministro, ou desembargador, após adiantar o seu voto a favor de uma das partes, mude de idéia depois de ouvir o voto brilhante de outro magistrado. Até aí, muito bem, mostrou amor à justiça e coragem moral. Se, entretanto, em nova sessão de julgamento, no mesmo caso, ele, ouvindo outros colegas, queira mudar outra vez de posição, é bom saber que corre o risco de ser alcunhado de “biruta” (aquele dispositivo que, nos aeroportos, mostra a direção dos ventos). E se mudar novamente de ponto de vista, pela terceira vez , arrisca-se a ser convidado a umas férias em sanatório, com direito a camisa de força. No entanto, ele pode estar sendo verdadeiramente justo, embora infindavelmente justo.

“Doentiamente justo”, dirão seus críticos, com alguma razão, porque, vivemos entre homens “práticos”, de carne e osso e os negócios não podem ficar travados por causa de infindáveis dúvidas filosóficas. Filósofos são filósofos, juízes são juízes. Nem sempre fazem boa mistura. Tanto que cedo ou tarde acabam trocando palavras ásperas em plena sessão de julgamento. Podem fazer as pazes mas o desconforto permanecerá, pipocando aqui e ali. É que suas bússolas mentais apontam para nortes diferentes. A virtude do filósofo e do cientista é sempre reexaminar a tese, pouco lidando para o próprio “cartaz”. A do juiz é fixar uma posição, dizer apenas o que é “humana e praticamente justo”, mesmo acotovelando um tanto a realidade. Sabe que a justiça deve aparentar uma certa “firmeza”. No final das contas, ambos se completam, porque a justiça precisa evoluir, como tudo o mais, esporeada pelos incômodos “filósofos”.

(27-7-09)

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