domingo, 26 de julho de 2009

“Caritas in Veritate”

Por tendência natural, desde criança, não sou religioso, embora prestigiando sempre aqueles que, sinceramente — friso a palavra — acreditam em um Ser superior impregnado de bondade, justiça e sabedoria. “Qualidades, por sinal, bem humanas” — insistem, maliciosamente, os ateus mais impiedosos, sugerindo que Deus é uma invenção do homem. Quanto aos religiosos insinceros — para não dizer mentirosos — não é possível respeitá-los porque só interessados em lucrar, transformando suas fingidas crenças em máquinas de arrecadação. Tais “comerciantes da fé” são, no fundo, mais ateus que os próprios agnósticos pois, convictos da inexistência de um julgamento final, não temem qualquer tipo de castigo ao deturparem o que está no Livro. Os agnósticos sempre guardam algum resquício de dúvida sobre o invencível e supremo mistério e tentam ganhar a vida com atividades mais terrenas.

Por sinal, até agora não sei porque o Estado se absteve de formalizar, com leis, limites quanto à audácia dos auto-proclamados religiosos no “arrancarem” — a palavra é essa — dinheiro, carros, terrenos, e tudo o mais, de seus indefesos adeptos, geralmente pessoas de baixíssima escolaridade e desconfiança. Esta característica psicológica, quando presente entre pessoas cultas, é considerada mesquinhez, mas nas pessoas sem instrução é a única defesa possível, “orgânica”, contra seus predadores mais espertos. Citações, fora de contexto, de livros sagrados, funcionam como bloqueadores do único anticorpo psicológico à disposição dos mais humildes.

É verdade que cada crente pode dar o que quiser, até sua única casa, ao orientador religioso, seja qual for o nome que ostente. Nenhuma religião pode subsistir sem apoio financeiro de seus adeptos. Ao Estado não cabe interferir em área tão íntima. Mas pode e deveria interferir na “técnica” utilizada para angariar recursos. Se o “orientador” — para não usar aqui qualquer palavra que signifique prevenção contra tal ou qual religião ou seita —, diz, ou “sugere explicitamente”, em pregação, que o crente não será salvo se não der bastante dinheiro, porque Deus ficará ressentido — o apavorado fiel já se vê queimando no inferno — , não há dúvida que estamos frente a uma verdadeira chantagem ou ameaça; que não deixa de ser chantagem só porque é espiritual. Assuntos espirituais podem assumir feições bem concretas, bastando lembrar as pessoas que se despedaçam em atentados terroristas de motivação religiosa. Há algo mais “concreto” do que miolos e membros espalhados?

Em suma: se o Estado tem a obrigação de proteger os mais fracos de seus cidadãos — faz isso na área trabalhista, acidentária, de consumo e outras — não há porque cruzar os braços e assistir passivamente formas explícitas de saquear os mais indefesos culturalmente. Insisto que a eventual lei que, poderia cuidar do assunto, só se limitaria a restringir a técnica, — não o valor da quantia doada —, o “estilo” ameaçador dos “incentivos” ou “convites” daqueles que abusam da credulidade pública. Fitas de gravadores portáteis registrando tais “solicitações” — “ou dá ou vai pro inferno!” — serviriam como prova criminal. Na pior das hipóteses, o saque seria minimizado. E a mesma lei poderia também criminalizar a exigência, contra os fiéis, de passar por um detector de metais, antes da reunião religiosa, detector que acusaria a presença do gravador. Se os espertalhões argumentarem, durante a discussão do projeto de lei, que os detectores de metais tornaram-se “agora’ necessários por causa dos assaltos, que fique constando na lei que gravadores não podem ser retirados dos fiéis quando entrarem no recinto das pregações. Essa subtração autorizaria, per se, a prisão em flagrante.

Desvie-me do assunto principal provavelmente influenciado pela feliz ênfase da encíclica na necessidade de se buscar e respeitar a verdade (“veritate”). Falei sobre a deturpação da fé e acrescento que ela pode ocorrer em qualquer religião, para desespero daqueles fiéis — a vasta maioria —, que não compactuam com abusos mas temem uma denúncia pública que afastaria grande número de irmãos.

Focalizando a “Caritas in Veritate”, sobre ela só posso tecer rasgados e sinceros elogios. Bento XVI, que por vezes critico, reservadamente, por insistir no celibato dos sacerdotes — com a Igreja perdendo anualmente centenas de futuros padres; jovens de caráter superior, retilíneos, querendo mas não podendo ingressar no sacerdócio porque temem que, provavelmente, não terão forças para cumprir, à risca, a penosa abstinência sexual —, comprovou — ele, Bento XVI —, na encíclica, que em assuntos políticos e econômicos argumenta com arguta e caridosa visão dos problemas do mundo. Mesmo que fosse chefe de qualquer outra religião, continuaria a merecer parabéns porque o que diz na sua Carta, na área política, econômica e social, serve para toda a humanidade.

Como a encíclica “Caritas in Veritate” é extensa, ficarei com aquilo que mais me identifica com as idéias de Sua Santidade: a necessidade de uma “Autoridade Política Mundial”, conforme suas palavras. A mera verbalização dessa idéia comprova sua coragem moral.

Como demonstra a encíclica, o mundo tornou-se globalizado e como tal, exige uma nova ordem, compatível, em sua nova formatação funcional. Hoje essa idéia já é, por muitos estadistas e pensadores políticos, encarada como inescapável na área econômico-financeira. Poucos, porém, se atrevem — como o Papa, na sua Encíclica — a estender o conceito à área política, temendo arreganhos pomposos dos habituados a uma soberania sem limites. Ocorre que, sem uma governança política democrática — é essencial que seja democrática —, os problemas continuarão insolúveis, ou “solucionáveis” pela força, seja ela política, militar ou econômica. Em séculos passados, a longa passagem do tempo consolidava injustiças. Após duas, três, quatro gerações, a injustiça original era uma vaga idéia, que não mais interessava aos jovens se estes passavam a viver bem. Hoje, porém, o metabolismo social é muito mais rápido e os injustiçados não querem deixar o assunto ser esquecido. Daí a insistência dos judeus quanto ao Holocausto e dos palestinos expulsos no uso do colete de dinamite.

Em matéria de subsídios, por exemplo, que tanto ocupa a OMC, a dura experiência mostra que os países não estão dispostos a sacrificar permanentemente seus trabalhadores e empresários pensando no bem-estar dos trabalhadores dos outros países, que tentam exportar seus produtos. Políticos do país importador que privilegiarem interesses de outras nações, com desemprego de seus próprios eleitores, simplesmente serão punidos nas urnas. Tais políticos acham, razoavelmente — não havendo uma governança global — que devem lealdade, primeiramente, àqueles que os elegeram. Havendo um governo global, suas obrigações já serão outras, mais amplas. Improvisar-se-iam compensações vindas de qualquer ou todas as partes do planeta.

Os gastos atuais com armamentos, de trilhões de dólares — não há exagero nesse número, se somados os gastos de quase duzentos países inscritos na ONU — seriam muito mais úteis se aplicados em educação, saneamento básico, infra-estrutura, saúde, geração de emprego e aposentadorias decentes.

Na luta contra o efeito estufa, pouco adianta um país se sacrificar por um benefício geral se os demais países não fizerem igual. Por vezes prometem, mas não cumprem e não há como policiar e punir eficazmente, sempre, tais descumprimentos. Alguns países nem se dão ao trabalho de aderir aos tratados.

Na luta contra o crime organizado, que esconde seus ganhos ilícitos em variados paraísos fiscais — ou bancos em geral, com direito ao sigilo bancário —, é atualmente quase impossível ao governo prejudicado pegar o dinheiro de volta porque terá que requerer judicialmente, banco por banco, país por país, a apreensão do depósito. E cada país tem sua legislação particular. A conseqüência usual é que quando terminam as formalidades legais o dinheiro sumiu há muito tempo. Há ainda, por parte dos bancos estrangeiros, a exigência do “trânsito em julgado da condenação”, para reter o dinheiro do depositante. E, em certos países, a coisa julgada é quase um mito. Não entremos em detalhes.

Quanto ao atormentador problema do desemprego, quase mundial, o assunto está intimamente ligado ao desequilíbrio entre o número de bebês que nascem e a crescente dispensabilidade deles quando chegarem à idade adulta. Cada vez mais o homem está se tornando desnecessário. Máquinas, robôs e computadores marginalizam músculos e cérebros. Máquinas não dormem nem sentem fome, sede ou cansaço. Não fazem greves nem se associam em sindicatos. Um computador faz o trabalho de milhares ou milhões de funcionários. Assim, o que fazer com o excesso de mão de obra? A solução “lógica” estaria em todos os países diminuírem, obrigatoriamente, a carga horária semanal de trabalho. Mas como obrigar todos os países a fazer isso sendo eles soberanos? Não é possível. Quando um país, por liberalidade, faz tal redução, acaba se arrependendo, como ocorreu com a França. Isso porque com essa redução — e conseqüente maior contratação de novos trabalhadores — seu produto se torna mais caro. Conseqüência: perde competitividade no aguerrido comércio mundial. O “tiro” bondoso que sai pela culatra.

Por que existem tantos pobres no mundo? Porque são pobres. Não é jogo de palavras. Mães pobres geram muitos filhos. Quando chegam à idade de trabalhar, máquinas e informática já tomaram o lugar deles nas fábricas e escritórios. Aí a impiedosa “lei da oferta e da procura” desfere, nessa mocidade desesperançada, a bordoada final: um salário baixíssimo. Se não aceito, não tem importância, porque há uma fila ansiosa de candidatos que aceitarão o emprego com qualquer remuneração. Professoras de línguas, por exemplo, não obstante o seu relevante valor, acabam se sujeitando a salários muito aquém do merecido. E nem me falem em melhoria de qualificação para escapar do desemprego. Alguns indivíduos se salvam com esse esforço extra, mas é preciso pensar na grande massa dos prejudicados. Se, por hipótese, todos se tornassem profissionais geniais continuariam ainda ganhando pouco, ou nada, em razão da concorrência igualmente qualificada.

Tudo que existe em excesso passa a valer pouco. Técnicos em informática, hoje, também não ganham quanto merecem. Por que? Porque já são muitos, demais, e a informática — meritoriamente, procurando facilitar a vida dos clientes — empenha-se em facilitar o trabalho daqueles que passam a utilizar computadores. Não há saída, meus caros, fora de uma política — global, global — de incentivo à limitação da natalidade. Isso interessa também à segurança pública: tendo que escolher entre o desemprego (com quase mendicância) ou uma remuneração vergonhosa, o jovem mais impaciente escolhe a “terceira via”, a criminalidade. Ele pensa: “Pode dar certo...E o êxito financeiro compra tudo... Conseguindo dinheiro, serei rei, fora ou dentro da cadeia, mas sempre rei!”

Somente no item “população” é que discordo da encíclica “Caritas in Veritate”. Sua Santidade não acha errado um aumento da população mundial. Aparentemente, há muitas áreas não povoadas. Ocorre que o planeta precisa de florestas. Gado e agricultura ocupam espaço e, com o aumento do padrão de vida geral, haverá uma natural tendência para o maior consumo de comida e tudo o mais que caracteriza o conforto da vida moderna. Quem puder, vai querer dois carros ou mais: um para o marido, outro para a mulher, outro para o júnior e outro para contornar o rodízio. E carros poluem.

Como a pobreza gera mais filhos e estes desejam uma vida melhor, naturalmente pensam em migrar, legal ou ilegalmente, para países mais ricos. Ocorre que nestes o emprego também está sob ameaça. Seus naturais querem se defender da “invasão”. Para agradar seus eleitores, os políticos de países mais ricos elaboram leis restritivas à imigração, cada vez mais duras, como ocorre na Itália. Do contrário, ruas suíças, francesas, belgas, espanholas, alemãs, inglesas e italianas se transformarão em ruas indianas, haitianas, africanas, etc, com pessoas dormindo nas calçadas. Todos gritam e ninguém tem inteira razão.

A “razão” está no uso honesto da própria razão: se o planeta quiser funcionar com um mínimo de atritos e desespero individual precisa pensar e agir, com urgência, no problema do excesso populacional, sempre de forma global. Não adianta um país controlar o excesso na produção de bebês se países vizinhos não fazem o mesmo. E, não o fazendo, continua a imigração ilegal, com desesperados morrendo em “containers”, desertos, rios ou barcos à deriva.

Há, claro, um outro método, “natural”, de “podar” o excesso populacional: guerras, matanças tribais, e epidemias, como a AIDS. Só que tais métodos são primitivos. E não podemos, com total eficácia, impedir a proliferação nuclear porque a “madame soberania” nem sempre aceita palpites de fora. Se os pobres do mundo se unissem no sentido de cada casal ter apenas um e dois filhos, daqui a 18 anos a carência de mão de obra seria tal que até mesmo aleijados seriam requisitados por empregadores. O computador pode muito, mas depende de um operador. Se houver racionalidade, o mundo está “condenado” a uma futura e feliz meia-ociosidade. Feriados “emendados”, bem aceitos, comprovam que vasta maioria da população não se opõe a que as máquinas trabalhem por eles.

Enfim, renovo — com a ressalva acima — meus parabéns à encíclica em referência, e seu erudito autor. Embora um cético por tendência natural — com “recaídas” vexatórias, em termos de coerência, quando uma desgraça se aproxima de mim e de meus familiares —, tenho grande respeito pelo Cristianismo, sua ética e, principalmente sua brandura. Se não é seguido à risca por seus adeptos é porque o homem vale muito mais pelo que pretende do que pelo que é, um animal melhorado. É visando domesticar o bicho que, presumo, esforçam-se os religiosos bem intencionados.

(10-7-09)

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