Mario Vagas Llosa é um notável escritor. Por dentro e por fora, isto é, pela fluidez inteligente e sensata de sua prosa e pela retidão moral. Alguém já disse que por trás de um grande escritor deve existir “um homem”, isto é, um caráter. Como admirar, sem um gosto amargo — na alma e até mesmo na boca —, um escritor inteligentíssimo mas falso, enganador, tremendamente egoísta, indiferente ao sofrimento alheio? Na verdade, um “monstro”. Aborto moral, diarréia cintilante da natureza, interessado apenas em ganhar dinheiro e tapear aqueles leitores mais ingênuos — aos milhares — que pensam integrar a tal “intelligentsia” — elegante termo! — só porque compraram e talvez leram parcialmente o recente “best seller”? Por sinal, nem tanto vendidos. Se alguém se der ao trabalho de, numa grande livraria, examinar as capas de “pocketbooks” e for somando os “milhões de exemplares vendidos” — conforme exageram os editores nas “orelhas” — a conclusão seria a de que o planeta se afoga em livros. O grande inimigo do meio ambiente não seria o petróleo, mas a indústria do livro, devastadora de florestas.
Se a inteligência superior fosse um dom concedido por Deus para uso estritamente pessoal e egoísta — não o é porque alguns nascem sem ela e não se pode presumir nepotismo no Criador — este deve estar pensando: “Por favor, não interpretem mal a Minha obra...” Como diz o velho ditado, “errar é humano”. Jamais divino.
Voltando ao grande escritor peruano, o jornal “O Estado de S. Paulo”, pág. A-11, publicou ontem, segunda-feira — haveria maior acesso ao artigo se publicado no domingo — um seu artigo, “O fim moral da política israelense”. O texto é uma avaliação, equilibrada, sincera e eloqüente, da incursão aérea e terrestre do bem equipado e treinadíssimo exército israelense na Faixa de Gaza, com a alegada intenção de apenas fazer cessar o disparo de foguetes e morteiros contra áreas de Israel próximas das fronteiras. Como diz o autor — secundando a vasta maioria dos comentaristas internacionais, de sobrenome não judeu —, se a intenção de Israel é reduzir o Hamas à total passividade, esse objetivo não será alcançado porque qualquer pessoa, isenta, que tenha percorrido as cidades da faixa de Gaza constatou que essa região tornou-se uma espécie de “gueto” em razão do “cerco” israelense, burocrático e militar. De pouco adiantou a retirada de colonos judeus se continuou em Gaza, nas palavras de Vargas Llosa, a “quarentena implacável – proibindo que exportasse e importasse, fechando-lhe o uso do ar e do mar, permitindo que seus habitantes só saíssem desse gueto de maneira muito limitada e depois de trâmites opressivos e humilhantes”. A finalidade dessa política era a de “provar” a “incompetência dos palestinos para governar a si mesmos”.
Não é difícil prever qual a conseqüência — a curto, médio e longo prazos — dessa política vesga, pouco inteligente — e finalmente brutal, mais pensando em eleição —, contrária à reconhecida cultura do povo israelita que, paradoxalmente, se beneficiou intelectualmente com a segunda diáspora, não provocada pelos palestinos, mas pelos romanos.
Pelo que sei da História, alguns países europeus proibiam aos judeus a compra de terras. Não podendo ser agricultores, voltaram-se para aquelas atividades que não lhes eram proibidas: finanças, comércio, ourivesaria, filosofia, ciência, artes e conhecimento de línguas estrangeiras. Espalhados pelo mundo, notadamente nos EUA, o “know how” comercial e financeiro lhes trouxe riqueza e poder, inclusive na mídia. É essa força, esse apoio de judeus residentes no exterior — livres do perigo individual imediato — que estimula a agressividade dos atuais dirigentes de Israel, interessados em proteger sua nação mas também seus próprios interesses individuais na disputa política com outras lideranças.
Não esquecer que a opinião pública de qualquer país é moldada pela mídia. Se esta é parcial e agressiva, tais características se transferem aos cidadãos, que não têm tempo para ficar lendo e analisando o que realmente acontece por trás das notícias. Comem prato feito.
Recomendada, aqui, a leitura do texto de Vargas Llosa, uma síntese corajosa do que acontece na Palestina, mais espantosa ainda — quase inacreditável — é a bravura demonstrada por um jornalista israelita, Gideon Levy, que, mesmo vivendo e trabalhando em Israel, tem a coragem de proclamar a amarga e incontornável verdade sobre o que ocorre na Faixa de Gaza. Consegue ser justo mesmo quando a grande maioria de seus irmãos de raça e país — inquietos sobre o futuro — pensa ou sente o contrário. Mais sente do que pensa.
Lendo, na internet, a biografia desse jornalista — que no físico moreno mais parece um árabe que um judeu, apesar de ser um judeu “da gema” — a primeira e reconfortante impressão de qualquer leitor, se realmente justo, é que o gênero humano ainda merece credibilidade e esperança. Levy, bem compreendido, merece um Nobel da Paz.
Gideon Levy, filho de emigrantes europeus, hoje com 54 anos, é um importante jornalista do jornal israelense “Haaretz”. Trabalhou para Shimon Peres, de 1978 a 1972 — portanto conhece a política por dentro — e já ganhou um prêmio por sua defesa dos direitos humanos. Não obstante judeu e grande patriota — no sentido mais inteligente e ético do termo — não se contentou em formar uma imagem mental da vida dos palestinos conforme descrição da mídia israelense. Resolveu investigar, pessoalmente, como os palestinos estavam sendo tratados pelo poderoso Estado de Israel. Com essa intenção, percorria as áreas inacessíveis aos cidadãos comuns de Israel. E o que viu causou horror ao seu inegável senso de justiça.
Essa constatação da realidade quase lhe custou a vida. Certa vez, pretendendo visitar uma cidade palestina de nome Tukarem, pediu todas as autorizações possíveis ao exército israelense. Depois de obtê-las, após longa espera e averiguações, dirigiu-se, em um taxi israelense — de cor branca, com placas amarelas — até um posto militar de seu país, certamente para outras autorizações, mas quando estava distante uns 150 metros de seu destino foi surpreendido com cinco tiros — três no vidro frontal e dois em outras partes do carro. O jornalista e o taxista só não morreram porque o parabrisa era a prova de balas.
Entrevistado — vide Wikipédia, na internet — algum tempo depois desse incidente, Levy não manifestou dúvida sobre a real intenção desse “engano” quando ele já havia dado todos os esclarecimentos às autoridades militares, obtendo autorização para visitar a área. Além disso, estava dentro de um taxi evidentemente israelense. O exército depois se desculpou pelo ataque e puniu o soldado que fez os disparos, mesmo porque a mídia deu alarde ao fato, pedindo explicações.
Os artigos de Gideon Levy não desviam, por conveniência — para ser “querido’ por seus concidadãos — os olhos da grande ferida política que é a expulsão, pura e simples, pela força, ameaça, ou astúcia, dos palestinos de terras que ocupavam por quase dois mil anos. O que explica a revolta de muitos árabes que se sentem injustiçados.
Quase tão espantosa quanto a bravura do referido jornalista é a coragem moral — e até mesmo “financeira” — do editor do Haaretz, Amos Schockem, que perde assinaturas do seu jornal por publicar os artigos de Levy. Editores de periódicos geralmente são subservientes à opinião das maiorias, mesmo quando acreditam que estas estão equivocadas, incompletas. O que lhes interessam, geralmente, é a vendagem dos jornais. Com tal submissão espiritual, fortalecem os erros do país em que atuam, contribuindo futuramente para sua eventual ruína. Com a ruína do país segue-se a própria. Se a fonte seca, o jornal também cambaleia. Jornais realmente independentes, sem censura interna, certamente têm mais longa duração. São mais confiáveis.
Uma romancista israelense, Irit Linur, cancelou sua assinatura alegando que Levy havia adotado a ideologia dos inimigos de Israel. Não conheço a obra dessa romancista, mas mesmo a desconhecendo posso profetizar que — a menos que mude sua posição —, jamais será uma grande escritora. Ou por lhe faltar o espírito de justiça — essencial para a sobrevivência de um prestígio literário — ou por não ter a coragem de dizer o que pensa, mesmo com o preço de perder leitores.
Por que digo que a opinião pública israelense tem estado errada no que se refere a Gaza? Porque tem evitado encarar o fato básico, primeiro, essencial, desagradável e inescondível que estimula o arremesso — obviamente abestalhado porque “autoriza’ revides massacrantes — de foguetes: os palestinos foram expulsos, sem consulta prévia e sem indenização, de uma área que ocupavam por quase dois séculos. Se os judeus foram injustiçados, pelos romanos, com a destruição de Jerusalém, obrigados a se espalhar pelo mundo, sofrendo ainda perseguições e massacres, não foram os palestinos os autores dessa injustiça. Assim, a comunidade internacional deveria ter se preocupado também com eles, quando os judeus queriam um “lar”. Este foi concedido aos perseguidos filhos de Israel mas a ferida do deslocamento forçado permaneceu latejando e infectada de ódio. E intelectuais judeus, como Gideon Levy não conseguem “não ver” esse lado básico do conflito.
Claramente, não é possível voltar atrás na História. Israel é um país com cerca de sete milhões de habitantes. Não tem qualquer sentido moral, econômico, ou o que seja, “varrê-lo do mapa”, arroubo tolo de valentão. E se os dois povos vizinhos não conseguirem logo chegar a um acordo, criando dois estados soberanos — não tenho qualquer esperança nisso — a única solução racional, que tarda demais!, está na comunidade internacional dar um passo à frente — afinal, não é uma entrevada incurável — atribuindo a um órgão isento a solução das fronteiras. Quem perder, em área, ganhará o equivalente em dinheiro, bem como a possibilidade de iniciar a vida, decentemente, em outros países.Não mais em campos de refugiados ou guetos. O peso das indenizações será bem inferior ao gasto com os conflitos bélicos, ajuda humanitária, muros altíssimos, e inquietação de espírito.
As regras internacionais de hoje não são mais as mesmas de mil anos atrás. Podem ser modificadas. Se não o forem, que o Banco Mundial trate de financiar, em larga escala, a construção de abrigos anti-nucleares, porque uma pergunta lateja, irrespondida, na cabeça dos países mais fracos: “Por que alguns países podem, e outros não, possuir armas atômicas?”
Barack Obama será visto, na História, como um predestinado se conseguir convencer seu país a concordar com algumas modificações na Carta das Nações Unidas, e textos correlatos, atribuindo a um órgão internacional isento a missão de solucionar conflitos com potencial para incendiar o mundo. Grandes incêndios começam quase sempre em pequenas áreas.
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