Ao sentar-me para escrever estas mal digitadas linhas estou trinta por cento triste e setenta por cento alegre. O percentual de tristeza decorre do fato de Gordon Brown, o primeiro-ministro do Reino Unido, ter antecipado “minha idéia” — ou pelo menos sua verbalização — porque muita gente, no Brasil e no resto do mundo, já vinha intuindo isso — : para males globais, soluções globais. Daí a um governo mundial é um salto. Pelo menos, inicialmente, como tema de conversação.
Meu percentual de alegria vem de saber que um primeiro-ministro de país importante se conscientizou de que a reação à atual crise tem que ser global. Seu artigo termina dizendo que (...) “no momento em que os Estados Unidos se erguem em sua aurora de esperança, é meu desejo que essa esperança seja realizada com todos nós reunidos para moldar o século 21 como o primeiro século de uma sociedade verdadeiramente global”.
Isso cabe como uma luva para quem acredita que é preciso começar, já, amigavelmente, a conversar sobre como construir um governo mundial democrático. Com a devida vênia, não existe sociedade — global ou não —, sem um governo equivalente.
Em artigo do jornal “O Estado de S. Paulo” (B4, Economia), desta manhã (3-3-09), quando me preparava para redigir minha crônica, li que Gordon Brown afirmou que para solucionar a presente crise econômica mundial é preciso um “new deal” global. Era exatamente sobre isso que eu ia escrever. Todos, eu inclusive, gostam de se imaginar “descobrindo a pólvora” e, no caso, Brown externou primeiro aquela síntese verbal que resume uma idéia ainda não usualmente “concretizada” em frase. Queiramos ou não, os povos “pensam” com chavões e frases feitas. Inexistente a frase, não existiria, talvez, a coisa que ela representa. O homem pensa muito mais com palavras do que com idéias. Se não existissem os termos “infinito”, “subconsciente”, “incongruência”, quantas centenas de palavras teríamos que usar para dizer algo próximo desses substantivos? Na linguagem dos surdos certamente existem movimentos de mãos com tais significados, mas creio que os gestos só poderão ser compreendidos perfeitamente pelos deficientes auditivos que já conheçam tais conceitos.
Voltando ao “new deal” global, o que eu ia dizer, antes de espiar o jornal, é que com a globalização irreversível — fruto da internet, da intensa troca de informações, mercadorias e serviços entre todos os países — , um “new deal number two”, se apenas norte-americano, não resolveria nem mesmo as dificuldades americanas, ao contrário do que aconteceu com a política de Franklin D. Roosevelt. Ao tempo de seu governo — foi eleito quatro vezes —, na década de trinta do século passado, os EUA viviam politicamente isolados, algo que não mais ocorre. O americano tornou-se um exagerado consumidor e o mundo inteiro necessita desse rico comprador. Quando este se retrai nos negócios, todos sofrem, inclusive quem mora nos EUA.
Penso que a maioria dos historiadores concorda que Franklin Roosevelt era, em Economia, um pragmático. Assumindo o governo em um dos piores momentos da história de seu país, precisava, com urgência, de soluções, não de teorias. Após ouvir as propostas das melhores cabeças que o rodeavam, decidia por tal ou qual caminho. Em vez da “problemática”, a “solucionática”. Se não desse certo — em certos assuntos só o tempo dá a última palavra — mudava de orientação, sem traumas ideológicos. A Economia é uma ciência (hum...) muito impregnada de Filosofia e Psicologia. Quem lê, mesmo fragmentariamente, livros e artigos de Economia espanta-se com a grande quantidade de subjetivismo que impregna um ramo de conhecimento que só com alguma boa-vontade pode se chamar de “Ciência”. A menos que dela se exclua a previsibilidade, um dos pontos de honra de toda ciência. Se Economia é ciência, o é em menor escala, embora útil porque algumas de suas poucas verdades resistem ao fluir das décadas. O que avacalha a ciência é o seu objeto de estudo, a sua cobaia gananciosa: o rato de laboratório, digo, o homem.
Qual foi a brilhante intuição que norteou o “new deal”? A idéia de que em tempo de crise econômica, é melhor fazer, construir algo de útil, do que ficar em casa, deprimido, inútil, ruminando a infelicidade de seu desemprego ou a falta de perspectiva de seus negócios. Assim, Roosevelt resolveu fazer, construir. Investiu pesadamente em obras públicas. Com isso deu emprego a milhões e desenvolveu uma infra-estrutura que, passadas as dificuldades, tornou o país muito mais rico e poderoso. Se isso gerou inflação, não sei, mas o certo é que se um governo, qualquer governo, emite dinheiro mas, ao mesmo tempo, aumenta o produto interno bruto, esse aumento neutraliza, cedo ou tarde, o efeito inflacionário das emissões. Inflação é um excesso de dinheiro em relação aos bens. Se os bens crescem na mesma proporção das emissões, o equilíbrio continua. Não há inflação. É, por exemplo, o que o Brasil promete fazer: construir e reparar estradas, ampliar portos e aeroportos, construir estradas de ferro, açudes, redes de esgotos, escolas, etc. Se o Brasil possuísse portos funcionando de forma ideal, o quanto esse detalhe beneficiaria o país quando passasse a crise global? Enfim, é melhor utilizar as mãos em um trabalho útil do que deixá-lo roendo unhas. Trabalho, frise-se, não emprego público em que não haja trabalho.
Mesmo em regimes ditatoriais o pleno, ou quase pleno emprego faz maravilhas na área econômica. Hitler, um ditador algo ignorante — sua oratória, aos berros, mais excitava e hipnotizava que incentivava o pensamento racional — conseguiu erguer economicamente a Alemanha. Graças ao investimento maciço do Estado. Basta dizer que em 1933 havia 6.000,000 de desempregados. Em 1939 esse número baixou para 300.000, uma redução considerável.
Alguns estudiosos do “milagre econômico” alemão, preocupados — desnecessariamente — com um possível elogio a uma figura moralmente execrável, procuram invalidar esse bom resultado econômico alegando que a partir de 1933 as mulheres deixaram de ser contadas como desempregadas. Além disso, depois de 1935 os judeus perderam a condição de cidadãos, não constando como tais nas estatísticas. Acresce que aumentaram as convocações para as forças armadas, tudo isso para explica que o tal “milagre” alemão não pode, em mínino grau que seja, ser atribuído a Hitler.
Na verdade, parece óbvio que a Alemanha, partindo de uma hiperinflação, chegou a ser uma grande potência em 1939. Não, propriamente, um mérito de Hitler, mas da idéia elementar de que qualquer país, para crescer, precisa produzir bens, seja por iniciativa privada, seja por impulso governamental. Estados Unidos e Alemanha nazista, embora com filosofias políticas opostas, livraram-se da depressão e do desemprego seguindo a mesma receita: “construindo coisas”. Algo assim como um pedreiro desempregado que, para ocupar as mãos, resolve construir quartos no fundo do seu quintal. Com o tempo, esse “hobby” pode se tornar uma fonte de rendimentos, com a locação de dormitórios.
O diferencial entre Roosevelt e Hitler estava no “tipo de coisas” que faziam durante a depressão. A Alemanha hitlerista direcionou sua energia produtiva no sentido armamentista, porque estava em seus planos expandir o “espaço vital”, sem escrúpulo, nem piedade. Armada, a Alemanha, até os dentes, o que fazer com tanto poder? Só podia ser declarando guerras, invadindo e escravizando países vizinhos. Submarinos, tanques, couraçados e aviões de combate não servem para turismo.
Já os Estados Unidos fizeram outro tipo de “coisas”: aplicaram seus recursos em melhorar sua infra-estrutura. Só investiram pesadamente na indústria bélica bem depois, após o ataque de Pearl Harbor. Essa boa e pacífica infra-estrutura, criada com o “new deal”, permitiu, depois que os EUA entraram na guerra contra as potências do Eixo, fabricar aviões bombardeiros cobrindo os céus da Alemanha por horas e horas, em uma única missão. Um poder bélico avassalador. Não tivesse havido o “new deal” teria sido isso possível?
Retornando ao artigo de Gordon Brown, todo o seu texto é no sentido de reconhecer que sem uma reação global, e não apenas dos EUA, o planeta não sairá tão cedo do buraco em que se meteu. Frases suas, pinçadas ao acaso, revelam o sentido de seu artigo: “...embora possamos fazer muita coisa nacionalmente, podemos fazer ainda mais trabalhando juntos internacionalmente”; “Um novo conjunto de desafios se coloca para o mundo todo, impondo uma parceria de propósitos que deve envolver o mundo inteiro. Reconstruir a estabilidade financeira mundial é um desafio global, que exige soluções globais”; “É por isso que o presidente Obama e eu discutiremos nesta semana um novo acordo global”; “Vejo esse novo acordo global como um acordo em que cada continente injetará recursos em sua economia”. E por aí afora. Mesmo mencionando especificamente o país de Obama, que visitará brevemente a Inglaterra, está explícita sua opinião de que todos os países com algum grau de riqueza devem continuar a trabalhar, a produzir, sem pensar apenas nos problemas internos, notadamente na reserva de mercado.
Quem sabe, a presente crise mundial ainda ajudará os países a compreender algo que ainda é visto como uma utopia, e assim mesmo muito discutível. O homem é um paradoxo no campo das idéias: inteligente no exame do detalhe mas bronco no manejo dos conjuntos. Só isso, mais que a maldade, explica tanto sofrimento espalhado pelo mundo.
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