terça-feira, 24 de março de 2009

Manchetes com segundas Intenções

Não raramente, leitores mais atentos de jornais estranham determinada manchete. “Será que esse político teve a coragem de dizer tal barbaridade!?”, o leitor se pergunta. Aí, se dispõe de tempo, lendo a matéria verifica que há uma certa dissintonia entre o título e o conteúdo. Percebe que, verificado o contexto da declaração, não há “barbaridade” alguma na fala do político. Se o leitor for instruído, inteligente e habituado a ler criticamente — algo não muito comum —, murmura apenas uma leve censura ao redator desconhecido: “Esses jornais são mesmo malandros no envenenamento da opinião pública...” O seu conceito sobre o tal político permanece o mesmo, nem sobre nem desce. Não ocorreu, no final das contas, desinformação pela imprensa. Tal desinformação, porém, só não ocorreu para aquele específico leitor que leu atentamente a matéria, neutralizando a malícia ou descuido do redator do título. Cumpre enfatizar que a função da mídia — pelo menos na teoria — é informar bem, inclusive nas manchetes. Repita-se: inclusive nas manchetes. Isso porque a democracia, para se aperfeiçoar, depende de boas informações.

Muitos que compram jornais nas bancas, ou os recebem em casa, dispõem de tempo mínimo para ler jornais. Para quem tem uma vida muito ocupada, é mínimo o tempo disponível para saber o que ocorre na sua cidade, no seu Estado, no país, no mundo e até fora do planeta — porque há crescente interesse pela Cosmologia, vida extraterrestre, etc. Lê apenas as manchetes e, se estas são tendenciosas, seu julgamento também será tendencioso.

Por que digo tudo isso? Porque na primeira página do jornal “O Estado de S. Paulo”, de 20-3-09, está a manchete “Lula avisa Supremo que não vai extraditar Battisti”. Só faltou o sinal de exclamação. E no subtítulo acrescenta que “Emissário do Planalto ainda sugere saída jurídica para evitar conflito com STF”.

A primeira reação, perfeitamente natural — e emocional —, de quem lê apenas a manchete e o subtítulo é: “Mas esse Lula é mesmo atrevido! Ou ignorante! Já diz, de antemão, antes do julgamento sobre a extradição de Cesare Battisti, que vai afrontar, não cumprir uma decisão do Supremo? Está se tornando um ditador, igual ao Chávez! E ainda sugere uma “saída” legal, como se fosse um grande jurista, quando não passa de um operário que conseguiu chegar à presidência.”

No entanto, lida a matéria, na capa e na página interna, A4, verifica-se que a intenção do presidente, enviando um recado por mensageiro — algo que certamente era para permanecer confidencial — foi a de evitar futuros desconfortos políticos: com seu próprio partido, o PT, e com o Poder Judiciário. Com o bom efeito colateral de corrigir uma falha de nosso ordenamento legal. Se o “meio” , o recado, foi um tanto inábil — porque a tradição, nessa área, é esperar o desastre acontecer e depois tentar cuidar dos feridos —, a intenção foi boa, o que não ocorreu depois, na redação da manchete.

Como sabem os medianamente informados, em casos como o de Cesare Battisti o STF apenas verifica a legalidade do pedido de extradição feito pelo governo estrangeiro. Se tal pedido é tecnicamente ilegal, a extradição é negada, dispensando a opinião do presidente da república. Não há mais o que discutir, pelo menos no Brasil, restando apenas à Itália, no caso em questão, o direito de, eventualmente, discutir o assunto na Corte Internacional de Justiça.

Se, entretanto, o STF decide que o pedido de extradição atende às formalidades legais, tal decisão assemelha-se mais a um “parecer”, porque a palavra final de efetiva entrega, ou não, do refugiado transfere-se às mãos do Presidente da República, que decide soberanamente, seguindo critérios políticos de oportunidade, ideologia, etc.

O Presidente Lula, no caso, adiantou, através de emissário — garanto que não fará, futuramente, coisa parecida... —, que não concederia a extradição, caso o STF autorizasse a extradição, isto é, deixasse ao Executivo a decisão final. Isso porque não pretende desautorizar o ato do presidente de seu Partido, que já concedera o asilo. Adiantou qual seria sua palavra final sobre o rumoroso caso, mas deixou bem expresso que também não gostaria de “desprestigiar” o STF. Para evitar, de alguma forma, “contrariar” o STF, sugeriu que este alterasse a jurisprudência seguida até agora e que realmente contém uma incoerência, como reconhecem os juristas sem preferências políticas apaixonadas .

Caso o STF altere a sua jurisprudência — dispensando a manifestação do Presidente da República após o julgamento do pedido de extradição —, o Brasil dará um passo acima no tratar desse tipo de problema. Acabará com a dubiedade, a incoerência atual de, no mesmo assunto, o STF dar — e não dar — a última palavra, conforme o que decidiu. Isso porque a função essencial do Judiciário é decidir os conflitos, não emitir uma espécie de “parecer”, como vem ocorrendo até o momento, conseqüência de uma certa dubiedade na legislação.

Ao contrário do que possa superficialmente parecer, há, no caso, opiniões concordantes entre o presidente Lula e o presidente do STF. Ambos querem que ao Tribunal caiba, sempre, a palavra final em conflitos levados ao STF, como é inerente ao Poder Judiciário. Não houve, no “recado”, um “desafio” ou provocação do Executivo. Apenas disse que faria aquilo que a lei lhe permite fazer: entregar ou não o refugiado.

A única censura que se poderia fazer ao Executivo, no caso, teria sido a falta de “diplomacia”, externando uma opinião que só teria obrigação de externar depois da decisão judicial, criando um “mal estar” que alimentaria dois apetites: o de alguns homens públicos buscando notoriedade, e a gula da mídia mais voraz, que necessita de querosene para nutrir o fogo, o “thriller” da novela política.

Espera-se que, modificada a atual jurisprudência — conjunto de decisões judiciais num determinado sentido — desapareça o atual duplo critério, acima apontado, que só tumultua uma situação já suficientemente tumultuada, o caso Cesare Battisti.

Estou aqui fazendo apologia do Presidente Lula? Não. Não fui seu eleitor. Apenas procuro, do “alto” de minha insignificância, fazer justiça ao pernambucano de origem humilde que, sem fingir o que não é — um homem culto, refinado — tem agido com boa intenção, tem bom discernimento, é paciente, pensa com independência e contorna conflitos desnecessários. Quem se revolta contra o fato de um operário ter chegado à presidência deveria, por coerência, revoltar-se também contra o próprio regime democrático, que permite a “barbaridade” do critério “um homem, um voto”, sem exigir formação superior. Aqueles que censuram a distribuição de dinheiro à população pobre não podem esquecer que essa política permitiu um aumento do mercado interna, agora útil porque o Brasil está sendo menos afetado, proporcionalmente, que os países mais dependentes da exportação.

Quem se revoltou lendo as linhas acima precisa lembrar-se que a justiça – não me refiro à estatal — é a rainha das virtudes e obrigação não apenas dos juízes profissionais. É dever individual, de cada cidadão, em todas as profissões. O mundo seria imensamente melhor se todo cidadão se conscientizasse da obrigação moral de ser justo com o próximo. Amigo ou inimigo. O “amar nosso inimigo”, pregado pelo Cristianismo, é exigente demais. Violenta nosso íntimo. Exige algo que não está em nós. Já ser apenas justo com o inimigo é algo mais tolerável e factível. E pode até nos beneficiar materialmente, porque pode ocorrer futura reciprocidade.

Finalmente, deixo expresso que sou assinante do jornal “O Estado de S. Paulo”, há vários anos, e assim pretendo continuar, porque o considero o jornal mais completo do Brasil na área internacional, área de meu particular interesse. Não poupa despesa publicando traduções de grandes comentaristas estrangeiros. Se parece manter uma certa simpatia por Israel, no conflito com os palestinos, nem por isso deixa de publicar textos que revelam solidariedade com os árabes, quando o governo israelense comete suas barbaridades. O “mal” nunca está nos povos — alemão, judeu, árabe, chinês, americano, venezuelano, o que for. O “mal” está nos governantes e nos formadores de opinião pública. O ser humano é mais ou menos o mesmo, intimamente, em toda parte. Dança conforme a música que agrada mais a seu ouvido. E o que não falta é músico habilidoso.

(24-3-09)

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