Refiro-me, claro, ao “grave” — conversa mole da mídia, porque
não foi grave — incidente entre um ministro de Temer, Geddel Vieira, e o
Ministro da Cultura, Marcelo Calero, a respeito da construção de um prédio de
apartamento — “La Vue” — no centro histórico de Salvador.
A construção desse
prédio tinha sido autorizada pelo Iphan da Bahia, mas como o Iphan nacional,
com sede no Rio de Janeiro, depois discordou da autorização — e nesses casos
prevalece a decisão do Iphan nacional — a construção foi embargada. Como Geddel
tinha interesse pessoal no caso, alegando ter comprado uma unidade, ele teria pressionado
Calero para que este, como Ministro da Cultura, autorizasse o prosseguimento da
obra segundo a planta original, aprovada localmente. Calero negou a pretensão
de Geddel e este procurou ajuda do seu amigo político de longa data, Michel
Temer, que apoiou a pretensão de Geddel.
Ainda segundo Calero, Temer sugeriu lhe que enviasse o problema à AGU para uma decisão e minimizou
o incidente dizendo que “na política há dessas coisas”. Sentindo-se moralmente decepcionado
com seu chefe e pessoalmente desprestigiado, Calero voltou a conversar
novamente com Temer, em outra oportunidade, desta vez utilizando, escondido, um
gravador. Gravada a conversa com o presidente, Calero pediu demissão do cargo e
procurou polícia e imprensa para relatar o ocorrido, acusando Geddel de
pressioná-lo fortemente. Com o estardalhaço, Calero colocou o presidente em
posição moralmente difícil. Para não prejudicar o presidente, Geddel
voluntariamente deixou a Secretaria de Governo e seu sucessor, o Dep. Roberto
Freire, decidiu que prevaleceria a decisão do Iphan nacional, considerando que
a decisão baseou-se no seu parecer técnico .
Resumido o essencial de um desnecessário falso “escândalo” que estimulou a desconfiança
de potenciais investidores estrangeiros — justamente no momento em que o
governo mais precisa dessa confiança para apressar a “saída do buraco”, cavado
pelo modo petista de governar — direi algumas palavras alertando para algo que
todo profissional da área jurídica já sabe mas convém difundir: que “decisões técnicas”
muitas vezes não são estritamente técnicas. Pode haver muita política por trás
das conclusões. Técnicos, seres humanos, também têm preconceitos, aversões e paixões
políticas. Assim como os juristas — “técnicos” do Direito — eles também
divergem em suas opiniões conforme o interesse que patrocinam. Não sei se foi o
caso dos técnicos que opinaram sobre o projeto do “La Vue” de Salvador. Uns
aprovando, na Bahia, e outros desaprovando, no Rio de Janeiro. A mídia não
sabe, nem procurou saber, qual a coloração política dos técnicos do Iphan-Rio
que concluiram pelo embargo da obra.
Quem já foi juiz ou advogado, por alguns anos, em ações de
desapropriações de imóveis, sabe quão relativas e contraditórias são as
conclusões apresentadas pelos engenheiros “assistentes técnicos” apresentadas pelo expropriantes e pelo
expropriado. O juiz, no momento processual certo, nomeia um perito de sua
confiança. Esse “perito do juiz” apresenta seu laudo afirmando que o imóvel
vale “x”. As partes usualmente discordam e indicam, separadamente, seus
“assistentes técnicos”, que quase sempre divergem. O assistente técnico do
expropriante diz que o imóvel vale “y”, menos, e o assistente do expropriado
diz que o mesmo imóvel vale “z”, mais. O juiz lê as três opiniões divergentes e
tenta, na medida do possível, fixar o valor eu lhe pareça mais próximo da
realidade. Digo assim porque é humanamente impossível garantir qual o valo
exato de qualquer bem, tal a quantidade de fatores que pesam na avaliação.
Mesmo em perícias médicas há, por vezes, divergências totais, embora sempre argumentando
tecnicamente.
Antes de George W. Bush invadir o Iraque, após o 11 de
setembro, havia dúvida — de boa-fé — se Saddam Hussein possuía, ou não, “armas
de destruição em massa”. Apesar dos mais confiáveis peritos, contratados pela
ONU, afirmarem que não havia. George W. Bush disse que havia e por isso invadiu
o Iraque e enforcou Saddam. Após a invasão ficou provado que no Iraque não existiam
tais armas.
Digo tudo isso para sugerir que a divergência entre o
Iphan-Bahia e o Iphan-Rio possivelmente não estava isenta de motivação tanto
política quanto moral. De qualquer forma, Temer não aparecia, no conflito, como
pessoalmente envolvido na construção do prédio. E o Ministério da Cultura
poucos meses atrás reagiu fortemente contra Temer quando ele quis separar a Cultura
do Ministério da Educação.
Cabe ponderar, em favor de Temer, nesse episódio, que ele
agiu como agiria qualquer presidente de longa experiência política, interessado
essencialmente em um assunto urgente e da máxima importância: a PEC do teto das
despesas públicas.
Essa PEC é tema espinhoso, exigindo um contato pessoal do
ministro-chefe da Secretaria de Governo com muitos parlamentares ainda em
dúvida sobre como votar. Convém que esse ministro-chefe seja o mais simpático
possível, porque — certo ou errado —, antipatias e simpatias influem bastante nas
votações, em todas as áreas. Quando Kennedy derrotou Nixon na sua eleição,
parte da mídia americana explicou que Kennedy “venceu” o debate porque era
jovem, limpo, mais bonito que Nixon, que aparecia, na televisão, suado, feio, e
sem ter feito a barba (ele tinha que se barbear duas vezes ao dia). Geddel,
informa a mídia, tem muitos aliados na Câmara dos Deputados. Conviria, por
isso, a Temer, manter Geddel como elemento de persuasão para obtenção dos votos
necessários para a aprovação da PEC.
A luta política guarda muita semelhança com o jogo de
xadrez. Às vezes, para conseguir uma vantagem no tabuleiro é preciso sacrificar
algumas peças. Por isso, Temer, em vez demitir Geddel, de imediato, com base na
acusação de Calero — negada por Geddel — ou abrir uma demorada investigação
sobre a divergência relacionada com a altura de um prédio em Salvador, preferiu
algo mil vezes mais importante: a aprovação de um plano a duras penas elaborado
pelo seu prestigiado Ministro da Fazenda. O que era mais importante, naquele
grave momento? Saber das reais motivações de Geddel? Demitir, de imediato
Geddel? Investigar demoradamente quem tinha mais razão, ou recuperar a
economia?
Caberia, data venia,
ao Ministro da Cultura, quando pressionado por Geddel, negar o seu pedido e
ponto final. Afinal, não estava sob a mira de um revolver. Se se sentisse
desconfortado para permanecer no cargo, poderia pedir demissão, alegando razões
pessoais, ou até mesmo dar explicações técnicas para sua saída. Se temesse ser
acusado, futuramente, de estar envolvido em alguma ilegalidade — relacionada
com o referido prédio —, poderia até gravar a conversa que teve com o
presidente, guardando essa prova a sete chaves, para uma eventual necessidade
de defesa de sua honestidade quando ainda fazia parte do governo. Nunca, porém,
gravando uma conversa com quem o nomeou e procurando polícia e mídia para
prejudicar diretamente o presidente e, indiretamente o seu país.
Se o investidor estrangeiro já duvidava sobre investir no
confuso Brasil, essa dúvida aumentou com o alvoroço sobre a altura do prédio. E
que “a política tem dessas coisas” — frase que Temer teria proferido — é
verdade muito conhecida. Cabe a cada ministro dizer “não!”, e ponto final, quando
outro político lhe pede algo com que não concorda.
Felizmente, o incidente não chegou a ponto de impedir a
aprovação da referida PEC, embora tenha prejudicado o país na área econômica.
Depois do hercúleo esforço, de meses, tentando colocar as
finanças em ordem, o atual governo seria irresponsável se congelasse as
reformas por causa de alguns pavimentos, a mais ou a menos, de um prédio de
apartamento em que o presidente não tinha qualquer interesse. Faltou senso de
proporção, ou maturidade, na gritaria.
(11/12/2016)
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