Não
existe sentimento mais digno e nobre que a gratidão. Se consultado algum livro,
ou site, de citações famosas na internet sobre essa bela virtude, a grande
maioria delas esmera-se em por nas alturas esse fenômeno psicológico e moral que
praticamente nos obriga, com paradoxal
prazer — toda obrigação é meio desagradável... — a agradecer e retribuir quem
nos estendeu a mão. Mão que provavelmente nos foi negada, anteriormente, por
várias pessoas que, da boca pra fora, davam a entender, ou mesmo garantiam, que
poderíamos sempre contar com elas.
Os
moralistas, frequentemente, insistem na comparação entre o homem e o cão, pois
este, se tratado com bondade, mesmo sendo mal alimentado, pode ficar dias perto
do túmulo do dono; talvez uivando, o equivalente canino do choro humano. Alegam
que homem nenhum passará longo tempo chorando pelos cantos a morte de seu cão.
A comparação é obviamente desproporcional porque o “horizonte” mental do cão é
tremendamente restrito enquanto que o pensamento do homem sofre miríades de
interferências diárias exigindo contínua atenção sobre variados assuntos,
práticos e teóricos. E talvez alguns cães sejam mais “sentimentais” que
outros...
Há,
também, os pensadores “cínicos”, ou “céticos”, que tudo encaram com desconfiança,
sempre propensos a investigar o possível “lucro”, financeiro ou social, de todo
agir humano.Um grande moralista do passado, François de La Rochefoucauld, dizia
que a gratidão pode significar apenas o desejo de novos favores. É claro que há
gente dessa laia, mas presumo que representem minoria. O leitor, certamente —
se chegou a ler este artigo até aqui é porque tem preocupações morais —, já
sentiu algum sentimento de gratidão e ao externar esse sentimento ao benfeitor
não teve a mais remota intenção de pedir novo favor, consciente de que gratidão
com olho em nova vantagem é “negócio”, ou abuso da bondade alheia.
A
gratidão, porém, tem um ferrenho e, no fundo, biológico inimigo: o
amor-próprio, o orgulho, a necessidade de preservar o próprio valor. Pessoas
que se consideram “especiais” — poucos não se consideram — não gostam de dever
favores. Recebê-los é uma admissão de que estão em posição algo inferior,
dependente; tanto assim que precisaram “pedir” algo. E, mais vexatório: pedir
temendo um “não”. Pedir um favor não é o mesmo que pedir uma informação na rua.
Fossem “fortes”, pensam, não pediriam nada: — “Odeio que sintam pena de mim!”.
E frequentemente é mesmo a comum compaixão que leva pessoas a atender pedido de
amigo, parente, ou mesmo do simples conhecido. Foi pensando nisso, no orgulho
ferido, que o “Marquês de Maricá” — pseudônimo de Mariano José Pereira da
Fonseca, um carioca falecido em 1848,
que foi senador e Ministro da Fazenda de D. Pedro I,—, chegou a mencionar, em
suas “Máximas”, que algumas pessoas “vingam-se dos benefícios recebidos”.
Realmente,
“dever favor a um sujeito antipático e que está, talvez, se pavoneando por aí
dizendo que me ajudou, é carregar uma ferida que exigiria certa vingançazinha:
uma futura posição trocada, ele me pedindo algo que eu talvez negasse de
início, só para vê-lo implorando, de joelhos, como me senti quando pedi a ele
aquele favor”.
Para
evitar a ingratidão por orgulho ferido recomendam, os entendidos em venenos
d’alma, que o benfeitor não fique muito tempo perto do ajudado e nunca mencione
— em público ou em particular — o favor prestado. Isso cutuca a velha ferida.
Um outro fenômeno mental — até mesmo inconsciente — relacionado com a
ingratidão é que o orgulho magoado torna seu portador, quando beneficiado por
favor em dinheiro, tremendamente sensível a qualquer palavra, gesto, sorriso ou
olhar que possa, mesmo remotamente, significar alguma forma de desprezo. O
inconsciente do devedor orgulhoso fica o tempo todo em alerta máximo para
detectar e valorizar um detalhe que se tornará pretexto para não pagar o que
deve: — “ O desgraçado me ofendeu com aquele olhar! Ele pensa que se tornou meu
dono só porque me fez um favor?! Vou ensinar a esse camarada! Pagarei quando
puder, ou quiser...”
É
por isso, evidentemente, que favor em dinheiro vem sempre garantido com um
título de crédito. Do contrário, qualquer ligeira demora em responder a um
aceno, ou outro ritual de cortesia pode “justificar” o não pagamento de uma
dívida sem comprovação documental. E quando o pagamento da dívida for feito com
trabalho futuro, o problema será o mesmo. Sair de casa para trabalhar e receber
logo a paga é muito mais estimulante do que sair de casa para trabalhar e
voltar com as mãos vazias, embora com a velha dívida ligeiramente menor. Sei,
porém, de alguns casos em que o devedor de serviço cumpriu direitinho seu dever
de pagar dívida de dinheiro com serviço pontual, mas isso é raro.
A
frase mais brutal que encontrei entre os pensamentos sobre a gratidão veio da
boca de um ditador notório por sua grosseria, tenacidade e impiedade. Ninguém
menos que Joseph Stálin, que preferiu trocar seu sobrenome verdadeiro, Djugashivilli, por “Stálin”, que significa
“homem de aço”,”durão”. Referindo-se ao sentimento da gratidão, Stálin assim se
expressou, segundo citação, em inglês, constante da internet (BrainyQuote):
“Gratitude is a sickness suffered by dogs” ( “Gratidão é uma doença que ataca
os cães”). Transcrevi como está na internet porque alguém poderia duvidar do
que eu escrevi, contrariando o universal elogio de uma virtude mundialmente
admiradíssima.
No
mesmo site consta que Stalin também disse: “Death is the solution to all
problems. No man - no problem”( “A morte é a solução de todos os problemas.
Nenhum homem, nenhum problema”). Ainda tenho alguma dúvida sobre a veracidade
dessa citação. Stálin nunca diria isso em público. Se alguém duvida que o
Socialismo mundial — ideal concebido para tornar o mundo melhor — esteve sob o
mau comando de uma vocação de gangster, essas duas frases tirariam qualquer
dúvida. Ou será que um certo grau de “gangsterismo” é indispensável na área
internacional, onde impera a força, de braço dado com a mentira?
Voltando ao tema mencionado
no título, o lado negativo da gratidão, quis me referir à gratidão
indevidamente aplicada na política, quando lesiva ao bem comum. Uma ingratidão
política pode, às vezes, ser melhor, para a coletividade, do que a gratidão.
Cito, a seguir, um exemplo concreto. Omito nomes para evitar problemas com
possíveis herdeiros, zelosos em manter a reputação de um ancestral incapaz de
se defender, porque já não mais entre os vivos.
Contaram-me,
décadas atrás, que um grande político brasileiro, quando candidato a
governador, foi muito bajulado por um cidadão que dispunha de uma frota de
peruas para sua atividade comercial. Perto da eleição, esse indivíduo teria
oferecido os préstimos de seus veículos para fazer a propaganda desse
candidato, percorrendo cidades com aparelhos de som. O político venceu as
eleições, elegeu-se governador e o indivíduo em questão — conhecido por seu
amor ao dinheiro e falta de escrúpulos — passou a assediá-lo, na sede do
governo estadual. Queria, a todo custo, ser nomeado para determinado cargo de
grande significado financeiro. O então governador instruía seu secretário a
dizer sempre que ele, governador, estava em reunião, ou dando outra desculpa.
Imaginava que, com o tempo o pretendente acabaria desistindo, o que não
ocorreu. O secretário, cansado de tourear, convenceu o governador a receber o
ganancioso. Cara a cara, o dono das peruas alegou que o governador, quando
candidato, lhe prometera esse tal cargo, se eleito. Argumentou que com a
propaganda das peruas, teria, influído na sua eleição. Exigia, portanto, o
cumprimento da palavra. Aí o governador lhe teria dito: — “Se cheguei,
eventualmente, a prometer, quem lhe prometeu foi o candidato Fulano de Tal” —
disse seu nome —, “mas o governador Fulano de Tal” — repetiu o nome — “nega o
pedido!” E negou, de fato.
Se
houve, realmente, uma promessa formal, ou uma vaga promessa, não sei — por isso
não mencionei nomes envolvendo pessoas já falecidas — mas o fato é que a
provável ingratidão do político foi muito mais virtuosa que a gratidão.
Outro
potencial perigo relacionado com a gratidão está no critério para a escolha de
Ministros de Tribunais Superiores, principalmente do STF. Como todos sabem, os
Ministros do STF são nomeados após indicação do Presidente da República.
Incidentemente, até hoje não compreendi a justificação lógica para tal
critério, copiado dos Estados Unidos da América do Norte. Lá com a agravante de
que o jurista é nomeado não para ser um dos
membro da Suprema Corte. É nomeado para ser dela presidente, e por toda
a vida. Algo que evoca a monarquia, incompreensível em uma nação que pretende
espalhar a democracia em todo o planeta, com periódico revezamento do poder.
Uma
total independência de Poderes proibiria qualquer Presidente da República, de
qualquer país, “escolher”, à vontade, quem vai votar em julgamentos
importantíssimos, inclusive das suas próprias decisões presidenciais. Será que
o Ministro nomeado, por mais idôneo que seja — e uma grande idoneidade tende,
até mesmo inconscientemente, a valorizar a gratidão — não teria dificuldade em
livrar-se da obrigação moral de retribuir quem tanto o ajudou? Principalmente
quando a matéria sob julgamento for especialmente delicada, comportando
decisões opostas e defensáveis em matéria constitucional. Dizer que nesses
casos o Ministro “grato” deve dar-se por impedido não é uma saída prática
porque pode ocorrer que largo percentual dos Ministros tenha sido nomeado pelo
mesmo Presidente da República.
A
faceta perigosa, porém, da gratidão em assuntos públicos não está apenas na
nomeação dos Ministros pelo Chefe do Executivo. Maior perigo está na gratidão
do nomeado para com algum figurão, não magistrado, que se empenhou para a
transformação do jurista em um juiz do
mais alto tribunal do país. Assim como forma-se espontaneamente um lobby de admiradores em favor de
candidatos a cadeiras nas Academias de Letras e nas vagas dos Tribunais
Internacionais, presume-se — agora com razões bem mais concretas —, que o
próprio Presidente da República seja pressionado para escolher tal ou qual
jurista para preencher as vagas no STF,
onde são disputados interesses econômicos e pessoais bem mais concretos que
pendências em tribunais internacionais. Nestes últimos será remotíssimo, ou
nenhum, o interesse pessoal dos admiradores de tal ou qual especialista de
Direito Internacional. “Torcem” por um ou outro candidato ao cargo porque
simpatizam e admiram sua competência e personalidade.
Na batalha de bastidores dos tribunais locais
alguns pressionam o chefe do Executivo apenas por admiração pessoal pela
capacidade do amigo. Outros, porém, pressionam por motivos estratégicos,
prevendo que um dia poderão precisar da boa-vontade desse amigo. Grandes
financistas e empresários, principalmente aqueles em constante perigo de serem
acusados de infringir a lei — cada vez mais sutilizada e amplificada com
preocupações de “crime organizado”, “tráfico de influência”, “enriquecimento
ilícito”, “evasão de divisas”, “fraudes em licitações”, “fraude fiscal”, etc. —
certamente veem em cada vaga no STF uma conveniência de preencher essa vaga com
um “amigo do peito”. Lutarão seriamente para “emplacar” esse amigo e este, se
escolhido para o cargo, terá que — quando surgir uma demanda envolvendo
interesse, mesmo indireto, desse amigo — lutar para resistir ao próprio impulso
de retribuir, por gratidão, o favor recebido quando for possível fazer isso com
um voto bem fundamentado. E todos sabem como o Direito não é uma ciência exata.
Acredito
e espero, porém, que o paradoxal dever moral da “ingratidão cívica” esteja
sempre presente na formação da futura jurisprudência brasileira.
As
considerações acima não contêm indiretas à situação brasileira. Têm apenas a
intenção de analisar, genericamente, uma virtude que, como todas as demais, não
pode ser vista de forma rígida, carimbada como calculada “obrigação de
retribuir”. Uma espécie de compra e
venda moral. Traficantes, em favelas, costumam “ajudar”, com dinheiro, alguns
moradores, já contando com sua futura colaboração, avisando a proximidade da
polícia. Ser grato, nessas circunstâncias, é apenas colaboração com o crime.
Mesmo as virtudes podem ser desvirtuadas, na sua manipulação. Se o benfeitor
agiu apenas por malícia, não é malicioso ser ingrato quando cobrado o
benefício.
Estou
hoje com a veia moralista, mas espero que isso passe logo, porque assuntos
dessa natureza em geral apenas enfadam os leitores.
Francisco Pinheiro Rodrigues (20-5-2012)
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