Após condenação na segunda instância não desaparece,
juridicamente, a presunção de inocência — ainda que abalada sob o ângulo apenas
psicológico —, e o réu não é ainda “culpado”, como proíbe a CF. Leiam com cuidado
o que diz nossa Lei Maior:
Inciso LVII do art. 5º da CF: “Ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
Para ser considerado “culpado” — infringindo a Constituição
— seria necessário o trânsito em julgado da condenação, como todos sabem. E,
pela recente decisão do STF, esse “trânsito” inexiste, tanto assim que o réu pode
ainda recorrer ao STJ e/ou ao STF, sem precisar da via mais difícil da revisão
criminal. É o que diz o voto do Relator no H.C. n,126.292, do STF, seguido pela
maioria dos julgadores, não negando o direito de recorrer aos tribunais
superiores.
Se o réu pode
recorrer, mesmo preso, não é ainda culpado, insista-se. Estará preso cautelarmente.
Se conseguir invalidar, no STJ ou no STF, suas duas condenações, será
libertado. A “culpa”, pela letra da Constituição, depende incondicionalmente do
trânsito em julgado, e trânsito em julgado só existe quando não há mais recurso
disponível. E na decisão do STF não está dito que o réu não mais pode recorrer.
Está dito que pode. Nada, portanto, de afrontoso à Carta Magna.
O recolhimento obrigatório do réu à prisão, no caso, é tão
constitucional quanto qualquer prisão preventiva, ou em flagrante, enquanto não
revogada. Trata-se de cautela de natureza apenas processual, de melhor política
criminal, prevenindo fugas, uso abusivo de recursos protelatórios e preservando
o inato sentimento de justiça dos cidadãos cumpridores da lei. É salutar,
politicamente, que legislação e moral caminhem juntas.
Os bons cidadãos não entendem, com razão, como pode um réu
já condenado duas vezes, pelo mesmo fato, estar passeando despreocupadamente em
seu carrão importado, sorrindo no seu iate, ou na revista “Caras”, mesmo tendo
cometido, eventualmente, crimes bárbaros ou desvios milionários de dinheiro
público. O homem comum conclui, resignado: —“Que estranha presunção de
inocência, a de nossos tribunais... Com duas condenações a presunção seria em
sentido contrário”.
Nesse ponto, o bondoso Brasil, ao exigir o
trânsito em julgado para iniciar o cumprimento da pena, destoa da sistemática
dos países mais evoluídos que determinam prisão já na decisão de primeira
instância, ou após a confirmação dela na apelação, como veremos mais adiante, orientação
que gera mais respeito pelos tribunais.
Nesse detalhe, a justiça brasileira, antes de 17-02-16 era
vista, por outros países, como um tanto excêntrica, justiça “jabuticaba”,
“coisa só de brasileiros, sempre alegres, meio irresponsáveis...”, não obstante
a reconhecida capacidade intelectual, individual, de nossos magistrados, em
todas as instâncias.
Será o nosso país o único certo, mantendo a exigência de
quatro julgamentos para enviar à prisão criminosos de crimes de grande
repercussão? Talvez seja, daqui a um século, se conseguirmos evoluir para uma justiça
perfeita, rápida, país bem governado, com escassa criminalidade, situação totalmente
oposta à atual.
Alega-se que seria aconselhável permitir infindáveis
recursos porque nossas cadeias são péssimas e superlotadas.
Em parte essa desídia
existe porque os políticos nunca imaginaram que, um dia, poderiam estar
cumprindo pena. Sabendo, doravante, que
isso pode ocorrer, certamente insistirão para os presídios sejam mais
numerosos, humanos e confortáveis. Quanto à meta de “recuperação”, só o
desconforto ou sofrimento psicológico gera arrependimento. A sensação de impunidade
apenas incentiva a ampliação do crime. Principalmente o do colarinho branco.
Repetindo. Com a nova
orientação do STF, no h.c. 126.292, julgado no dia 17-2-16 não há ofensa ao
inciso LVII do art. 5º da CF. Nos registros criminais, a qualificação do réu
como “condenado” pelo crime “x” não poderá constar de qualquer registro ou
certidão enquanto não comprovado o trânsito em julgado da decisão. Essa
qualificação de “culpado” só ocorrerá se o réu se conformar com a condenação em
segundo grau.
Essa disposição de cautela, será até benéfica para o réu que
se sabe vítima de uma injustiça porque, estando preso, seu processo terá
prioridade de julgamento. Sendo julgado mais depressa, mostrará à sociedade que
era inocente. Sana uma dúvida sobre sua reputação. Sairá livre, sem necessidade
de uma revisão criminal sempre mais difícil, processualmente.
Se absolvido no STJ, seu futuro imediato dependerá de futura
jurisprudência, ainda não definida para esses casos. Prevalecendo a concepção
mais severa de justiça, só será solto não havendo recurso do M. Público. Se prevalecer,
no Supremo, a orientação mais branda, será solto, considerando a existência de
uma dúvida, embora estritamente jurídica, porque os tribunais superiores não
examinam questões de fato, detalhes probatórios. Sem esquecer, aqui, que erros
“teratológicos”, em matéria de fato, possibilitam, excepcionalmente, a reforma
de uma condenação, no STJ.
Milhões de brasileiros, os mais esclarecidos, sabendo
distinguir o certo do errado, viviam revoltados e desiludidas com o “produto
final” de nossa justiça que, após infindáveis anos de trabalho, encerravam a longa
epopeia julgadora com o reconhecimento da prescrição, ou mandando o condenado poderoso
cumprir pena em casa, porque — convenientemente — não há suficientes casas de
albergados. Mesmo evitando, com total razão, pensar em subornos, tais pessoas
se perguntavam: “Nossos magistrados, tão inteligentes e cultos, não percebem o óbvio?”
Um mero exemplo do abusivo de recursos para evitar o término
de um processo está no caso do jornalista Pimenta Neves, autor de um crime
passional cometido sem a preocupação de disfarce, talvez considerando-se
inalcançável pela lei por ser chefe de redação de um importante jornal. Inconformado
com a decisão da namorada de não prosseguir o relacionamento secreto, matou-a a
tiros, em agosto de 2000, no haras do pai dela. Confessou o crime e conseguiu,
com sucessivos recursos, permanecer solto por mais de dez anos, adiando o
trânsito em julgado de sua condenação até maio de 2011. E, se quisesse adiar ainda
mais não haveria empecilho técnico-jurídico porque nossa imprevidente legislação
não impede que qualquer litigante apresente “n”, infinitos, embargos de
declaração — para os leigos, um recurso previsto em lei para aclarar omissões, dúvidas
ou contradições em acórdãos prolatados no mesmo caso e tribunal.
Mesmo não havendo,
verdadeiramente, dúvida, contradição ou omissão no acórdão — inclusive do STF
—, o interessado em protelar alega que, a seu ver, há. Recorre e, com isso, a
decisão não transita em julgado. Perdendo o recurso, apresenta outro, e assim
vai. Fácil, não?
Houve um caso, no
Supremo, vários anos atrás — por razões óbvias isso não ficou registrado —, em
que os ministros — por evidente dever ético —, tiveram que recorrer à uma
“ilegalidade”: ordenaram que a Secretaria do tribunal simplesmente não mais
recebesse tais embargos, repetidamente apresentados por um ousado e repetitivo
litigante — não me lembro se em ação cível ou criminal.
É preciso, claro, muita ousadia profissional para um
advogado fazer isso, agravando cinco, dez, “n” vezes, considerando que, com
essa conduta abusiva, seus recursos futuramente não serão bem encaradas pelos ministros.
Todavia, um advogado rancoroso — talvez, até, intimamente convicto que houve
alguma injustiça que não conseguiu provar —, decidido a abandonar a profissão,
pode bem chegar a esse ponto em uma causa de enorme valor econômico,
principalmente em causa cível.
Lembrei-me desse caso, mencionado, em off por um grande
ministro, aposentado, do STF — não sei se estaria autorizado, por ele, por mencionar
seu nome — porque a lei, qualquer lei, inclusive a constitucional, nem sempre pode
ser interpretada pela sua aparente e enganosa “literalidade”, como é o caso do
inciso LVII do art. 5º da CF. Algumas vezes, a chamada “interpretação literal”
nem mesmo é literal.
No caso do Pimenta Neves, ressalte-se que ele era réu
confesso. Outro caso, bem sucedido, de “drible” de punição está na condenação
do ex-senador Luiz Estêvão que permaneceu vários anos “cumprindo pena” em
liberdade. Hein?
A discutida decisão do STF só merece aplausos. Palmas, em
especial, para o Min. Teori Zavaski, que ousou nadar contra a corrente comodista
e teve a pachorra de pesquisar como as nações mais cultas tratam o delicado problema
de conciliar a necessidade de fazer uma justiça verdadeira, igualitária, e o natural
e humano desejo de todo réu — que se sabe culpado —, em jogar para um vago futuro,
o mais distante possível, o momento do castigo pelos seus erros.
Segundo o relato de Zavaski, nos Estados Unidos, no Reino
Unido, no Canadá, no México e na Argentina o condenado em primeira instância já
é recolhido à prisão, embora possa apelar. Em alguns casos, a justiça pode
fixar fiança — geralmente muito alta — para que ele apele em liberdade. Em
outros países, menos severos, essa obrigação de prender o réu condenado só
existe após a confirmação da condenação na segunda instância, como ocorre na
Alemanha, França e Portugal.
No Brasil, o efeito imediato da primeira condenação vigorava
no Código de Processo Penal de 1940, no art. 393, inciso I. Todavia, por causa
da condenação do delegado Sérgio Fleury, apoiador da Revolução de 1964, o
presidente Médici sancionou a Lei 5.941/73, que permitia ao réu, primário e de
bons antecedentes, apelar em liberdade. Essa lei ficou conhecida como “lei
Fleury”. Foi, portanto, uma lei pensando numa situação individual, mas acabou
ficando por agradar a aguerrida e inteligente advocacia criminal, hábil o
suficiente para “tirar leite das pedras”. Talvez convicta de que a maior
punição de qualquer crime está no próprio fato de tê-lo cometido, sendo desnecessária
uma punição estatal.
Uma filosofia avançada demais para o sofrido povo
brasileiro.
(27-02-2016)
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