domingo, 28 de fevereiro de 2016

O STF acertou. Não afrontou a Constituição.

Após condenação na segunda instância não desaparece, juridicamente, a presunção de inocência — ainda que abalada sob o ângulo apenas psicológico —, e o réu não é ainda “culpado”, como proíbe a CF. Leiam com cuidado o que diz nossa Lei Maior:

Inciso LVII do art. 5º da CF: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Para ser considerado “culpado” — infringindo a Constituição — seria necessário o trânsito em julgado da condenação, como todos sabem. E, pela recente decisão do STF, esse “trânsito” inexiste, tanto assim que o réu pode ainda recorrer ao STJ e/ou ao STF, sem precisar da via mais difícil da revisão criminal. É o que diz o voto do Relator no H.C. n,126.292, do STF, seguido pela maioria dos julgadores, não negando o direito de recorrer aos tribunais superiores.

 Se o réu pode recorrer, mesmo preso, não é ainda culpado, insista-se. Estará preso cautelarmente. Se conseguir invalidar, no STJ ou no STF, suas duas condenações, será libertado. A “culpa”, pela letra da Constituição, depende incondicionalmente do trânsito em julgado, e trânsito em julgado só existe quando não há mais recurso disponível. E na decisão do STF não está dito que o réu não mais pode recorrer. Está dito que pode. Nada, portanto, de afrontoso à Carta Magna. 

O recolhimento obrigatório do réu à prisão, no caso, é tão constitucional quanto qualquer prisão preventiva, ou em flagrante, enquanto não revogada. Trata-se de cautela de natureza apenas processual, de melhor política criminal, prevenindo fugas, uso abusivo de recursos protelatórios e preservando o inato sentimento de justiça dos cidadãos cumpridores da lei. É salutar, politicamente, que legislação e moral caminhem juntas.

Os bons cidadãos não entendem, com razão, como pode um réu já condenado duas vezes, pelo mesmo fato, estar passeando despreocupadamente em seu carrão importado, sorrindo no seu iate, ou na revista “Caras”, mesmo tendo cometido, eventualmente, crimes bárbaros ou desvios milionários de dinheiro público. O homem comum conclui, resignado: —“Que estranha presunção de inocência, a de nossos tribunais... Com duas condenações a presunção seria em sentido contrário”.

  Nesse ponto, o bondoso Brasil, ao exigir o trânsito em julgado para iniciar o cumprimento da pena, destoa da sistemática dos países mais evoluídos que determinam prisão já na decisão de primeira instância, ou após a confirmação dela na apelação, como veremos mais adiante, orientação que gera mais respeito pelos tribunais.

Nesse detalhe, a justiça brasileira, antes de 17-02-16 era vista, por outros países, como um tanto excêntrica, justiça “jabuticaba”, “coisa só de brasileiros, sempre alegres, meio irresponsáveis...”, não obstante a reconhecida capacidade intelectual, individual, de nossos magistrados, em todas as instâncias.

Será o nosso país o único certo, mantendo a exigência de quatro julgamentos para enviar à prisão criminosos de crimes de grande repercussão? Talvez seja, daqui a um século, se conseguirmos evoluir para uma justiça perfeita, rápida, país bem governado, com escassa criminalidade, situação totalmente oposta à atual.

Alega-se que seria aconselhável permitir infindáveis recursos porque nossas cadeias são péssimas e superlotadas.
 Em parte essa desídia existe porque os políticos nunca imaginaram que, um dia, poderiam estar cumprindo pena.  Sabendo, doravante, que isso pode ocorrer, certamente insistirão para os presídios sejam mais numerosos, humanos e confortáveis. Quanto à meta de “recuperação”, só o desconforto ou sofrimento psicológico gera arrependimento. A sensação de impunidade apenas incentiva a ampliação do crime. Principalmente o do colarinho branco.

 Repetindo. Com a nova orientação do STF, no h.c. 126.292, julgado no dia 17-2-16 não há ofensa ao inciso LVII do art. 5º da CF. Nos registros criminais, a qualificação do réu como “condenado” pelo crime “x” não poderá constar de qualquer registro ou certidão enquanto não comprovado o trânsito em julgado da decisão. Essa qualificação de “culpado” só ocorrerá se o réu se conformar com a condenação em segundo grau.

Essa disposição de cautela, será até benéfica para o réu que se sabe vítima de uma injustiça porque, estando preso, seu processo terá prioridade de julgamento. Sendo julgado mais depressa, mostrará à sociedade que era inocente. Sana uma dúvida sobre sua reputação. Sairá livre, sem necessidade de uma revisão criminal sempre mais difícil, processualmente.

Se absolvido no STJ, seu futuro imediato dependerá de futura jurisprudência, ainda não definida para esses casos. Prevalecendo a concepção mais severa de justiça, só será solto não havendo recurso do M. Público. Se prevalecer, no Supremo, a orientação mais branda, será solto, considerando a existência de uma dúvida, embora estritamente jurídica, porque os tribunais superiores não examinam questões de fato, detalhes probatórios. Sem esquecer, aqui, que erros “teratológicos”, em matéria de fato, possibilitam, excepcionalmente, a reforma de uma condenação, no STJ.  

Milhões de brasileiros, os mais esclarecidos, sabendo distinguir o certo do errado, viviam revoltados e desiludidas com o “produto final” de nossa justiça que, após infindáveis anos de trabalho, encerravam a longa epopeia julgadora com o reconhecimento da prescrição, ou mandando o condenado poderoso cumprir pena em casa, porque — convenientemente — não há suficientes casas de albergados. Mesmo evitando, com total razão, pensar em subornos, tais pessoas se perguntavam: “Nossos magistrados, tão inteligentes e cultos, não percebem o óbvio?”

Um mero exemplo do abusivo de recursos para evitar o término de um processo está no caso do jornalista Pimenta Neves, autor de um crime passional cometido sem a preocupação de disfarce, talvez considerando-se inalcançável pela lei por ser chefe de redação de um importante jornal. Inconformado com a decisão da namorada de não prosseguir o relacionamento secreto, matou-a a tiros, em agosto de 2000, no haras do pai dela. Confessou o crime e conseguiu, com sucessivos recursos, permanecer solto por mais de dez anos, adiando o trânsito em julgado de sua condenação até maio de 2011. E, se quisesse adiar ainda mais não haveria empecilho técnico-jurídico porque nossa imprevidente legislação não impede que qualquer litigante apresente “n”, infinitos, embargos de declaração — para os leigos, um recurso previsto em lei para aclarar omissões, dúvidas ou contradições em acórdãos prolatados no mesmo caso e tribunal.

 Mesmo não havendo, verdadeiramente, dúvida, contradição ou omissão no acórdão — inclusive do STF —, o interessado em protelar alega que, a seu ver, há. Recorre e, com isso, a decisão não transita em julgado. Perdendo o recurso, apresenta outro, e assim vai. Fácil, não?

 Houve um caso, no Supremo, vários anos atrás — por razões óbvias isso não ficou registrado —, em que os ministros — por evidente dever ético —, tiveram que recorrer à uma “ilegalidade”: ordenaram que a Secretaria do tribunal simplesmente não mais recebesse tais embargos, repetidamente apresentados por um ousado e repetitivo litigante — não me lembro se em ação cível ou criminal.

É preciso, claro, muita ousadia profissional para um advogado fazer isso, agravando cinco, dez, “n” vezes, considerando que, com essa conduta abusiva, seus recursos futuramente não serão bem encaradas pelos ministros. Todavia, um advogado rancoroso — talvez, até, intimamente convicto que houve alguma injustiça que não conseguiu provar —, decidido a abandonar a profissão, pode bem chegar a esse ponto em uma causa de enorme valor econômico, principalmente em causa cível.

Lembrei-me desse caso, mencionado, em off por um grande ministro, aposentado, do STF — não sei se estaria autorizado, por ele, por mencionar seu nome — porque a lei, qualquer lei, inclusive a constitucional, nem sempre pode ser interpretada pela sua aparente e enganosa “literalidade”, como é o caso do inciso LVII do art. 5º da CF. Algumas vezes, a chamada “interpretação literal” nem mesmo é literal.

No caso do Pimenta Neves, ressalte-se que ele era réu confesso. Outro caso, bem sucedido, de “drible” de punição está na condenação do ex-senador Luiz Estêvão que permaneceu vários anos “cumprindo pena” em liberdade. Hein?

A discutida decisão do STF só merece aplausos. Palmas, em especial, para o Min. Teori Zavaski, que ousou nadar contra a corrente comodista e teve a pachorra de pesquisar como as nações mais cultas tratam o delicado problema de conciliar a necessidade de fazer uma justiça verdadeira, igualitária, e o natural e humano desejo de todo réu — que se sabe culpado —, em jogar para um vago futuro, o mais distante possível, o momento do castigo pelos seus erros.

Segundo o relato de Zavaski, nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Canadá, no México e na Argentina o condenado em primeira instância já é recolhido à prisão, embora possa apelar. Em alguns casos, a justiça pode fixar fiança — geralmente muito alta — para que ele apele em liberdade. Em outros países, menos severos, essa obrigação de prender o réu condenado só existe após a confirmação da condenação na segunda instância, como ocorre na Alemanha, França e Portugal.

No Brasil, o efeito imediato da primeira condenação vigorava no Código de Processo Penal de 1940, no art. 393, inciso I. Todavia, por causa da condenação do delegado Sérgio Fleury, apoiador da Revolução de 1964, o presidente Médici sancionou a Lei 5.941/73, que permitia ao réu, primário e de bons antecedentes, apelar em liberdade. Essa lei ficou conhecida como “lei Fleury”. Foi, portanto, uma lei pensando numa situação individual, mas acabou ficando por agradar a aguerrida e inteligente advocacia criminal, hábil o suficiente para “tirar leite das pedras”. Talvez convicta de que a maior punição de qualquer crime está no próprio fato de tê-lo cometido, sendo desnecessária uma punição estatal.

Uma filosofia avançada demais para o sofrido povo brasileiro.


(27-02-2016)

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