O bom senso — a
capacidade natural e intuitiva de ver os fenômenos na correta proporção —
sempre foi encarada como uma espécie de “prima pobre” na avaliação da
inteligência. Falta-lhe o “brilho”, a “novidade”, o “frisson” capaz de
despertar a atenção geral. Ninguém fica famoso usando apenas o bom senso, mesmo
quando mais refinado. O máximo que dirão dele é que “Fulano de Tal, coitado,
não é capaz de grandes voos, mas até que nisso ele tinha razão...’.
Mencionei, acima,
o “refinado” porque, como qualquer qualidade, há gradações dentro do próprio bom
senso. Há o bom senso do culto e o do ignorante. Do mais e do menos
inteligente. Do mais e do menos corajoso no externar o que realmente pensa,
quando a audiência é hostil. De qualquer forma, a humanidade nunca estará em
condições de dispensar o uso dessa qualidade tão modesta mas que serve como
freio ou equilíbrio no uso das brilhantes inovações teóricas ou tecnológicas.
Dificilmente veremos, mesmo em futuro distante, o computador travar a digitação
enquanto adverte o usuário: — “Para! Agora o amigo está delirando!”.
Enfim: as mentes
“brilhantes”, inovadoras, inventam coisas novas mas antes de pô-las em prática
é bom consultar antes o “Departamento de Bom Senso”, ou de “Controle de
qualidade”. Mesmo porque às vezes o brilho é enganador, se melhor examinado.
Poderíamos ficar conversando horas sobre isso.
O presente artigo
abordará alguns tópicos do atual conflito entre teorias jurídicas, leis,
decisões judiciais e o mais elementar bom senso. A exposição será despojada de
erudição. Será direta, acessível à compreensão de qualquer leitor preocupado
com o que vem ocorrendo na área da justiça e suas consequências inquietantes.
Todo cidadão de bem sente-se hoje vagamente ameaçado por inimigos
desconhecidos, portando armas mortais ou desonestas lábias visando enganá-lo na
alma ou no bolso. Todos exigem o fim da impunidade (a alheia...) mas protestam,
com indignação, contra qualquer tentativa de acabar com a própria. E o texto
lembra que a falta de bom senso pode se apresentar também na forma de omissão.
Comecemos pela
“teoria do domínio do fato”, que se discutiu muito no julgamento do “mensalão”.
Defensores dos acusados, de modo geral, foram hostis a essa teoria, insistindo
que a presunção de inocência e as garantias individuais foram violadas pelo STF
quando ele condenou réus apenas com base na presunção de que eles seguramente
sabiam do que ocorria de ilícito na área que chefiavam. Entendem que, no
Direito Penal, nunca se pode presumir dolo ou culpa, cabendo apenas à acusação
o ônus de tudo provar, como se o promotor estivesse presente na cena do crime,
algo impossível de ocorrer.
A “teoria do
domínio do fato”, no entanto, representou um grande avanço, imprescindível, no
Direito Penal, considerando a imensa complexidade da vida moderna e o fato de
que os magistrados não são ingênuos, incapazes de deduzir o óbvio. No entanto,
sem muito bom senso e equilíbrio na utilização dessa teoria, o resultado pode
ser tanto a impunidade dos criminosos mais astutos, que não deixam rastros,
quanto uma tremenda injustiça individual.
Exigir, a defesa,
que a acusação “prove” sempre, em todos os processos — com testemunhas ou
documentos — que o superior hierárquico sabia dos “malfeitos” de seus
subordinados, é incentivar a criminalidade especializada nos crimes de grande
significado financeiro. Mesmo o mais avoado — porém doloso —, “cabeça” de
empresa, partido, ministério, ou órgão governamental, jamais deixará sua
assinatura dando a ordem ou aprovação de algo que, futuramente, poderá resultar
em seu encarceramento. Se falar, não será por telefone, sempre “grampeável”,
nem na presença de pessoas que possam um dia depor contra ele. Daí a
necessidade da criação da “teoria do domínio do fato’(leia-se: “quem manda no
‘pedaço’ está ciente das grandes jogadas”).
Por outro lado,
não se pode presumir que só porque Fulano de Tal é chefe, ou diretor, ou
presidente, ele sabia, ou deveria saber, o que ocorria entre dezenas, centenas
ou milhares de seus subordinados. O diretor de uma grande fábrica de veículos,
por exemplo, com mil funcionários, não pode ser condenado porque dois ou três
automóveis saíram da fábrica com compartimentos capazes de esconder drogas
ilícitas. Ou porque dois ou três empregados traficavam cocaína, reservadamente,
no ambiente de trabalho. Afinal, o diretor não tem o dom da ubiquidade. Nesses
casos a acusação tem que provar que o grande — e amalucado — diretor sabia e,
portanto, aprovava tais irregularidades que só prejudicavam seu próprio
negócio.
Em contrapartida,
há certas ilicitudes que não podem existir sem o conhecimento e apoio do chefe,
diretor e posições equivalentes. A menos que o réu prove, convincentemente, sua
inocência — alegando, por exemplo, um bem arquitetado complô para incriminá-lo
— será justa sua condenação com base na presunção de que conhecia e mesmo
ordenava a conduta delituosa que o beneficiava. O ônus da prova criminal, em
sua totalidade, não é encargo, sempre, da acusação. Esta tem apenas o dever de
provar os fatos que incriminam o réu. Se a evidência produzida pela acusação é forte, crível, cabe
ao réu fazer prova contrária; ou demonstrar, de forma convincente, com fortes
argumentos, que ela é falsa, ou inconfiável. O que não pode é levantar algumas
generalidades, ou dúvidas, que beneficiariam o réu e exigir que a acusação
“prove” que tais generalidades não ocorreram. O acusado não é um mero
observador do que acontece na esfera probatória.
Se a acusação
consegue comprovar o crime de evasão de divisas, em valores significativos, é
de se presumir que a direção da empresa conhecia o fato, mesmo sem outras
provas da responsabilidade do “chefe”. Isso porque se a evasão de divisas fosse
resultado da apropriação indébita de um
funcionário da empresa, em proveito próprio, ele enviaria o dinheiro
para sua conta particular, ou de um comparsa. Nunca para a conta da empresa em
que trabalha. Vale, no caso, a usual pergunta: “A quem interessa?”.
Enfim, a teoria
do domínio do fato é bastante inteligente, necessária e oportuna, mas não será
aplicada “automaticamente” contra o réu, só porque ele é o responsável máximo
da área em que ocorreu o ilícito. A se aceitar a responsabilidade penal
automática do “chefe”, nenhum presidente, governador, prefeito ou diretor de
empresa escaparia da prisão porque, afinal, seus subordinados não foram
recrutados no céu.
E por falar em
crime financeiro, é incrível, até mesmo “obsceno” — segundo alguns juristas —,
o que se está tentando fazer no Congresso Nacional. Quem mostrou isso foi o
jornal “O Estado de S. Paulo’, em editorial, ou artigo de fundo, da pág. A3 da
edição de 5-2-13, “A reforma dos Códigos”. Na verdade, o fato é tão
impressionante, para o lado negativo, que não se trata apenas de ausência de
bom senso: aí se cuida de evidente má-fé de algum legislador.
Trata-se do
seguinte: na Reforma do Código Penal, na parte de crimes financeiros a comissão
que, no Senado, redigiu o projeto, segundo o jornal, “... deixa de listar, como
delito, o funcionamento de instituição financeira não autorizada e a adoção de
contabilidade paralela pelos bancos. Além disso, limita o conceito jurídico de
“evasão de divisas” apenas à saída física do dinheiro. Isso significa que um
doleiro que fizer uma remessa por meios eletrônicos ficaria livre de punição”.
E todo mundo sabe que tais remessas são feitas, quase sempre, via computador, por
ser mais cômodo, rápido, e livre de roubos.
Não fosse a
vigilância do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) essa
barbaridade tornar-se-ia lei. E talvez se torne, se não houver reação.
Está ainda em
gestão outro “Bebê de Rosemary”— filme que mostra um menino, filhote de diabo,
com poderes sobrenaturais — nesse projeto: a criminalização de eventuais
violações das prerrogativas dos advogados. Segundo a proposta legislativa, se o
juiz indefere um pedido apresentado por um advogado e este considera que,
direta ou indiretamente, esse indeferimento viola alguma prerrogativa do
advogado, a decisão do juiz seria um crime. E sendo crime — diz o art.301 do
Código de Processo Penal —, “qualquer do
povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer
que seja encontrado em flagrante delito”.
Considerando a
grande variação de temperamento entre os seres humanos, o advogado poderá — com
base nessa perigosa legislação proposta — fazer queixa num Distrito Policial,
ou, quem sabe, solicitar, no ato, a prisão em flagrante do magistrado. Ou, talvez, ele mesmo dominar fisicamente o
juiz. Teríamos folclóricos confrontos físicos entre juiz e advogado, ambos
rolando pelo chão, na sala de audiências, cada um tentando prender o outro. O juiz
dizendo-se vítima de desacato e o advogado alegando violação das prerrogativas
profissionais.
Se há, eventualmente, algum desrespeito do
advogado, por parte de algum magistrado grosseiro e pouco inteligente, o normal
seria o advogado fazer uma representação à Corregedoria da Magistratura, para
uma eventual punição, como é usual. Se a Corregedoria entender que o abuso do
juiz chegou ao ponto de caracterizar um crime, poderá tomar providências
criminais a respeito. É obrigação de todo magistrado tratar com respeito não só
advogados como também partes, testemunhas, funcionários e qualquer pessoa com quem
entre em contato. Se não procede assim, a solução é o advogado fazer uma
representação. Mesmo que considere, eventualmente, que a Corregedoria não age
com o rigor recomendável, se houver repetidas queixas contra a grosseria do
juiz certamente a Corregedoria tomará providências. O que não tem cabimento é
transformar todos os advogados do Brasil em autoridades que possam prender, ou
mandar prender, delegados, policiais, porteiros, oficiais de justiça,
escreventes, testemunhas ou quem lhes pareçam violadores de suas prerrogativas.
Cabe também lembrar que a arrogância tanto pode existir em um juiz quanto em um
advogado, ou qualquer ser humano.
Um outro exemplo
— em fase de germinação no Congresso — de falta de bom senso está na tentativa
legislativa da Polícia de impedir que membros do Ministério Público possam
fazer uma investigação por conta própria. Os delegados alegam que a
Constituição Federal diz que cabe à polícia investigar, e ponto final. Mas,
pergunta-se: quando o M. Público sabe, ou desconfia, que o crime está sendo
praticado por um policial de alta posição, ou por um político de enorme
prestígio? O poder, ou influência, do réu, ou de figura acima dele, desvirtuará
toda a investigação. Poucos terão a coragem de depor contra poderosos que
poderão fazê-los perder o emprego ou mesmo a própria vida. É evidente que o M.
Público, até por questão de comodismo, não ficará desperdiçando tempo brincando
de Sherlock Holmes. Não obstante, o absurdo da pretensão da Polícia poderá
transformar-se em lei, porque qualquer coisa pode passar no Congresso Nacional,
pouco interessado em examinar minuciosamente os projetos.
Finalmente, um
caso de falta de bom senso, desta vez na forma de omissão judicial. Talvez
explicável porque até recentemente — antes do “mensalão” —, não havia necessidade de medidas mais severas
estabelecendo limites e deveres para advogados e magistrados. Refiro-me ao
Supremo Tribunal Federal.
O STF sempre foi
um Tribunal muito respeitado. Merecidamente respeitado. Nunca foi acusado, até
recentemente, de abusar da circunstância de “dar a última palavra”. Por isso,
certamente, não precisou incluir no seu Regimento Interno, algumas disposições
mais enérgicas, afetando os próprios Ministros, evitando demoras que impedirão
o trânsito em julgado das condenações impostas no “mensalão”.
No entanto, com a
referida Ação Penal 470 —, uma quase “Revolução Francesa judicial” — surgiu uma
nova realidade. E, se não houver — urgentemente — providência da Corte Máxima,
corrigindo duas omissões do seu Regimento Interno, o STF sofrerá uma
avassaladora perda de prestígio, pois nenhum dos condenados do mensalão
cumprirá pena alguma. E o país, perplexo, se indagará: — “Para que serviu tanto
esforço, tantas sessões de julgamento, se não foi possível executar a decisão por
omissões do Regimento Interno?”.
Digo isso não
porque me alegre ver políticos na cadeia, mas porque não me agradaria
presenciar a desmoralização de um Poder que — quando bem exercido — só melhoraria o dia-a-dia de todos nós, com
menos criminalidade, mais honestidade — até mesmo nos negócios —, menos
desigualdade, mais rapidez na solução dos conflitos e tudo o mais que existe de
bom e necessário para a vida em sociedade. Quando o Judiciário funciona, em
qualquer país, menos “malfeitos” ocorrem, porque o infrator prevê que não vale
a pena por em risco sua liberdade.
O que precisa ser
modificado no Regimento Interno do STF? Primeiro: estabelecer um limite
quantitativo para apresentação de embargos de declaração. Um só. Ou nenhum.
Atualmente, não há limites previstos. Em tese, um réu pode apresentar
infindáveis embargos de declaração, sempre insistindo que o último acórdão
omitiu ou foi contraditório. Com isso o réu impede o trânsito em julgado da
decisão. Imagine-se cerca de trinta condenados apresentando sucessivos embargos
de declaração, com necessidade de julgamento em plenário. Será um nunca acabar,
com prescrição total ou quase isso. Há países, por sinal, em que nem está
previsto o “recurso” de embargos de declaração. Quando há algum erro na decisão
o próprio tribunal corrige — uma quantia, ou nome, por exemplo. Note-se, ainda,
que se os embargos de declaração não podem alterar o resultado do julgamento,
tem havido casos em que a retificação de um detalhe repercute na integridade da
decisão, provocando reação em cadeia.
Essa modificação
do R. Interno do STF precisa ser feita já, antes que sejam redigidos e
apresentados todos os votos dos dignos Ministros. Modificar o Reg. Int. depois
de apresentados os previsíveis embargos será interpretada como uma parcialidade
impensável.
Um outro ponto
que precisa, data vênia, ser alterado com urgência é a omissão do Rg. Interno
no estabelecer um prazo para os Ministros apresentarem seus votos. Em tese, hoje, um Ministro pode demorar tanto
tempo quanto quiser para redigir seu voto. Não poderá ser “pressionado”
regimentalmente para apresentar seu voto, mesmo sabendo do risco da prescrição,
porque o Regimento, tal como se encontra, não menciona prazo algum. Ressalte-se
que nenhum Ministro pode alegar que “não pode ser forçado a julgar com pressa”
porque ele já deu sua opinião. Trata-se apenas de retocar, se for o caso, o que
já consta de seu voto, lido no julgamento.
Finalmente, seria
talvez aconselhável um reexame do Reg. Interno no que se refere aos “embargos
infringentes” (utilizáveis quando a decisão não é unânime). Bastam, no caso,
quatro votos a favor do réu, para se conhecer e julgar tais embargos.
Dependendo do voto dos dois Ministros a serem proximamente nomeados, não será
difícil chegar a um empate, nos casos individuais mais polêmicos, empate que
implicaria em absolvição.
Com a devida
vênia, caso o Reg. Int. do STF não seja logo modificado, serão necessárias
terríveis piruetas interpretativas para tornar exequíveis as condenações
impostas no “mensalão.
Se as condenações
prescreverem — depois do famoso julgamento — a população não conseguirá
entender o que aconteceu. Ocorrerá uma tal decepção popular que será menos
daninho ao prestígio da Justiça se a Presidente da República anistiar todos os
réus. Pelo menos, a Justiça poderá dizer: “A culpa não foi nossa. Foi a
Presidente que assim quis e isso está previsto na Constituição Federal”.
Há quem pense que
alguns condenados do mensalão apenas tiveram o azar de serem descobertos,
porque a prática política “é assim mesmo”. Para essas almas benevolentes já
houve suficiente punição no “susto” que tiveram. Entendem que seria tolerável a
prescrição. Além do susto ocorreu uma tremenda punição, mesmo sem cadeia: o
desmoronamento de suas vidas, em termos políticos, profissionais, financeiros e
até familiar. O que não sei é se o povo brasileiro também pensará com tanta
benignidade.
Como já disse no
início, a falta de bom senso pode ser apresentar também em forma de omissão. Se
o honrado e audaz Min. Joaquim Barbosa e seus colegas já anteviram os problemas
e estão tomando providências redacionais no Regimento Interno — sem anunciar
isso na mídia —, peço desculpa pela pretensão do alerta desnecessário.
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