sábado, 9 de março de 2013

"Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos"


Um grande advogado de São Paulo, não mais advogando em razão da idade, lamentava, pelo telefone, a pouca renovação dos nossos parlamentos:

 — “São sempre os mesmos! E há tanta gente, jovem ou madura, idealista, correta, ansiosa de fazer algo pelo país mas sem chance de se tornar senador, deputado ou mesmo vereador, nas capitais, porque a maior parte das cadeiras “já tem dono”, sempre “eles”. Não seria o caso de a lei estabelecer um limite de reeleições?”

Desligado o aparelho, a sugestão do limite de reeleições ficou dançando em minha cabeça. Realmente, como se explicam algumas “cadeiras cativas”, em alguns casos durante décadas? Principalmente quando o “luminar” não demostra qualquer ‘luz’ perceptível a olho nu? Haveria uma espécie de brilho oculto, só captado pelos fieis eleitores? Se, pelo menos, esses eternos reeleitos se destacassem como oradores, ou redatores, ou por notável visão política, coragem e cultura,  ainda poder-se-ia compreender o infatigável apoio de tantos eleitores. Frequentemente, não é isso que ocorre. As urnas apenas os confirmam, e ponto final.

Por outro lado, pensei, a democracia só pode se realizar através de eleições livres, ou pelo menos formalmente livres. Se o eleitorado “gosta”, “identifica-se” com determinado candidato, como negar a ambos — eleitores e candidato — o direito de reeleição, seja por vinte, trinta, quarenta anos? Negar a recondução seria negar a própria democracia, algo impensável. Não há como restringir o desejo dos “fieis eleitores”, mesmo com a “boa intenção” de renovação política da nação.

Nesse ponto de reflexão alguns neurônios, erguendo a mão, pediram licença para “uma ponderação”: — “Se a reeleição é limitada a uma única vez para o cargo de presidente da república — função muito mais importante que a de um deputado ou senador —, por que permiti-la, sem qualquer limite, para uma função menor, como é o caso individual de deputado e senador? Essa possibilidade de transformar uma primeira eleição em um emprego vitalício não teria uma explicação mais objetiva que a de mera admiração por um determinado parlamentar, que ‘quando entra nunca mais sai?”

Algo impressionado com a objeção desses neurônios mais excêntricos, reuni a totalidade “neurônica” — não excede a média de seus colegas da espécie humana... — e depois de longos debates cheguei à conclusão que se segue:

A explicação mais próxima da verdade tem duas realidades: uma é que algumas parlamentares atuam bem e de modo visível, merecendo admiração dos eleitores, os antigos e os novos. Morrem os eleitores velhos mas surgem os novos. Poderíamos, aqui, mencionar inúmeros deputados e senadores que são merecedores de mais de uma reeleição, funcionando como atentos representantes do povo. Mostram-se, nos momentos certos, alertas, firmes, pronunciando-se com responsabilidade, comprovando que levam a sério seus papeis. Podem não falar muito, mas quando falam mostram que examinaram bem o tema em debate. Não menciono, aqui, seus nomes, realmente ilustres, porque se omitidos alguns essa omissão poderia ser interpretada como crítica à sua longa permanência no Parlamento.

Há outros, porém, que nunca despertam a atenção. Nem da mídia nem de observadores isolados. Mesmo nas grandes crises, dizem apenas chavões. Nada propõem de importante, ou interessante. Não “conduzem” coisa alguma, permanecendo como que “na surdina”. Mas sempre são reeleitos, sem fraude eleitoral. Qual a explicação para esse fenômeno.

A explicação — certamente já bem conhecida dos que acompanham a política — está no controle da “máquina” governamental, com nomeação de fiéis amigos para posições chaves. Tais amigos, parentes e amigos dos amigos estão bem conscientes do alerta do “padrinho”: —“Se eu cair — não for reeleito — você também cai!, perdendo o emprego”. Emprego não preenchido por concurso público. E cada nomeado fica devendo um favor, ou obrigação, com seu destino pessoal e familiar vinculado ao futuro político de quem o nomeou, ou indicou à nomeação.

Tais vínculos de lealdade (forçada) são especialmente úteis ao político em época de eleição. Os nomeados tornam-se cabos eleitorais “grátis” e especialmente ativos, porque caso o “padrinho” não se reeleja terão que arranjar um “desconfortável” emprego na concorrida iniciativa privada, cujo salário é bem inferior, na média, àquele desfrutado quando o padrinho estava no poder. Portanto, quanto mais cargos um parlamentar puder preencher, maior a chance de ser reeleito. Com o decorrer dos anos, a rede de dedicados protegidos vai se ampliando de tal forma que o parlamentar pode dar como certo que dificilmente deixará de ser reeleito, tal o número de amigos nomeados, parentes desses amigos e também os eventuais sócios desses amigos em negócios particulares ligados à administração pública. Em síntese: o candidato que ainda não entrou na política precisa apenas ser eleito uma primeira vez. Conseguido isso, o que precisa é criar seu particular comitê de automático apoio em futuras eleições.

A mídia, quase diariamente, descreve a luta sem disfarce dos partidos para abocanhar o máximo possível de cargos públicos. Essa é a atividade preponderante em muitos parlamentos. Em troca de apoio nas votações de interesse do governo, este sente-se forçado a criar novos ministérios e departamentos. Enfim, é a luta — dos nomeados sem concurso —  pela manutenção de uma “subsistência tranquila” que explica a contínua reeleição de alguns parlamentares, bastante aliviados de despesas pessoais com propaganda eleitoral boca a boca. O esforço para convencimento de novos eleitores — por parte dos funcionários não concursados — é muito mais motivado que o trabalho atribuído aos cabos eleitorais profissionais, contratados pouco antes das eleições. Estes últimos sabem que precisarão trabalhar apenas alguns meses, serão pagos e ponto final. Já o funcionário não concursado luta com duplo afinco porque seu futuro inteiro e o de sua família dependem da reeleição do padrinho. A luta transforma-se em causa própria. E não há estímulo maior para todo combate, inclusive o eleitoral, que a necessidade da autopreservação.

Todos os minimamente conhecedores da revolução russa de 1917 sabem do “duelo” entre Trotsky e Stálin na luta pelo poder, principalmente após o derrame (AVC) de Lenine. Trotsky era um brilhante intelectual e orador, enquanto Stálin era um caladão soturno, astuto, calculista, tenaz e absolutamente adepto de que “os fins justificam os meios”. Chegou a dizer que “A morte resolve todos os problemas; nenhum homem, nenhum problema”, e que “É suficiente que o povo saiba que houve uma eleição. As pessoas que votam não decidem nada. As pessoas que contam os votos é que decidem tudo.”

Não podendo competir com o rival Trotsky no embate de ideias — nem por escrito nem oralmente —, Stálin escolheu o caminho que lhe parecia mais eficaz e realista: dominar o “aparelho”. Nomeava pessoas de sua confiança para posições-chave e que, a partir daí, teriam que obedecer caninamente o que lhes ditava Stalin. Caso mostrassem alguma rebeldia, a KGB bateria à porta de sua casa, alta madrugada, levando-o para um “passeiozinho” sem volta. Todos conhecem os famosos “Julgamentos de Moscou”, com liquidação de opositores e controle absoluto do Judiciário. Essa estratégia permitiu a Stalin permanecer no poder até a sua morte, por derrame, aos 73 anos. Seu único e reconhecido mérito foi derrotar Hitler, com a ajuda do inverno e de sua tremenda determinação, mandando seus soldados lutar até a morte. É provável que se ele mesmo estivesse na trincheira, lutaria com igual bravura, porque era um homem nascido para a rinha, verdade seja dita.

Essa política de parlamentares criarem “dependentes” — não “químicos”, mas “eleitorais” —, certamente explica a longeva vida parlamentar de alguns representantes do povo que nunca se interessaram por fazer discursos ou propor soluções criativas. “Para que perder tempo com tais firulas se o que vale, mesmo é o resultado das urnas?”

Essa distorcida sistemática — que retarda demais a renovação dos parlamentos — tem óbvia ligação com uma grande omissão da nossa legislação: a inexistência de um “teto” no número de assessores , cargos de confiança e designações que tais. Não havendo esse teto, é previsível o contínuo inchaço da máquina pública. Com óbvio sacrifício do contribuinte.

Com a angustiosa luta pela sobrevivência na área privada, é compreensível que a maior parte da população deseje a tranquilidade de um emprego público, mas que o país pagará um alto preço por isso, não há dúvida. Quanto mais pesada a “máquina”, maior a carga dos “burros’ da atividade privada, puxando a imensa carroça. O dinheiro que seria aplicado na melhoria da infraestrutura desvia-se, levando o país à uma progressiva estagnação.

John Adams, que foi o segundo presidente dos EUA, sucedendo George Washington (foi seu vice-presidente), chegou a dizer que “Lembrem-se, a democracia nunca dura muito. Ela se esgarça, se exaure e mata ela mesma. Nunca houve uma democracia que não cometesse suicídio” ("Remember, democracy never lasts long. It soon wastes, exhausts, and murders itself. There is never a democracy that did not commit suicide”).

Por que isso aconteceu, com tanta, frequência no passado? Por que os governantes só se preocupavam com a permanência no poder. Os imperadores romanos, para agradar o povo, recorriam ao clássico “pão e circo” — hoje a versão seria a de conceder benesses (o “pão”) e prestigiar o futebol (o “circo”). O esporte, claro, faz bem à saúde, quando praticado, mas uma ênfase excessiva nele desvia a juventude do caminho árduo do estudo. Sabendo que um craque — Neymar, por exemplo — ganha mais de dois “Prêmio Nobel” por mês, qual o estímulo para cansar os olhos estudando e subindo penosamente na vida?

Talvez eu esteja desinformado, mas pelo que sei, não existe esse “teto” no número de cargos de confiança, etc., nos três níveis de governo. Essa falta de limite tem ainda o seu lado injusto, no que se refere ao direito de todo cidadão de, sem precisar de “pistolão”, disputar um cargo público, mediante concurso.

Penso que na sempre mencionada “reforma política” seria pertinente — embora quase irrealizável — a fixação dos dois “tetos”, acima referidos. A atividade política, teoricamente, visa o bem público, não a criação de feudos que garantam a manutenção no poder até o fim da vida. Exercidos dois mandatos consecutivos, o parlamentar voltaria para sua profissão. Sentindo-se ainda cheio de ideias e ideais poderia mais adiante se candidatar para um terceiro mandato, como ocorre com o presidente da república.

Democracias podem, sim, “apodrecer” aos poucos, à medida que a nação se convence de que a maioria dos políticos só representam eles mesmos. Aí começam a ansiar por um homem ou regime forte, Um Hércules capaz de “limpar as estrebarias”. Esquecidos de que, mais adiante, o homem forte também revelará suas fraquezas, reiniciando-se o ciclo perverso. Daí a necessidade das duas “amargas” alterações legislativas, que serão combatidas com unhas, dentes e muita língua.



“Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo”. (Eça de Queiróz).

                                    Francisco Pinheiro Rodrigues  (9-3-2013)





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