domingo, 29 de dezembro de 2013

Considerações sobre biografias não autorizadas


                   Para poupar o precioso tempo do leitor, esclareço que este artigo conclui que não existe  direito absoluto nesse tema. Nem do autor publicar biografias devastadoras, nem da pessoa famosa proibir totalmente sua biografia, sem fundamentar razoavelmente, em juízo, o porque da sua proibição. Somente a Justiça, caso por caso, pode decidir a respeito, inclusive em sede de liminar. Isso porque há proteção constitucional de dois direitos antagônicos. Quando dois direitos, de força igual, colidem, somente o Judiciário está autorizado a “dosar”, os interesse em disputa, visando o bem comum. E não se alegue que tal solução irá sobrecarregar o Judiciário porque são raras as demandas relacionadas com biografias de pessoas famosas. As não-famosas não atraem biógrafos.

Essa “dosagem” legal na convivência de direitos opostos é sugerida no presente texto, com os necessários retoques e complementos que o legislador, ou a jurisprudência, entender mais conveniente, após maduro debate. E já esclareço, de antemão, que é absurda a sugestão de que o autor pode publicar qualquer biografia, com o conteúdo que quiser, respondendo depois, em juízo, pelas eventuais deformações da verdade. Isso equivale à permissão de esfolar vivo, moralmente, um biografado e conceder a ele o vago direito de — muitos anos depois —, receber, talvez metaforicamente, do “esfolador”, a indenização para a recuperação da antiga reputação. Todos conhecem a impossibilidade de recolher  as plumas espalhadas pelo vento. 

O dilema tem sido muito discutido na mídia recente e parece impossível de ser solucionado, juridicamente, de modo a conciliar tanto a liberdade de expressão e informação quanto o direito de preservar a intimidade. Mas para tudo, na Justiça, existe, se não uma “solução”, pelo menos uma “decisão”: “procedente” ou “improcedente”. Não existe “empate” na justiça. O problema das biografias não autorizadas é que por trás dos argumentos verbalizados — estritamente lógicos, jurídicos e morais —, existem os interesses pessoais, bem mais atuantes das pessoas envolvidas. Uma coisa é opinar, em tese. Outra, muito diferente, é decidir quando o caso fere a sensibilidade de uns e os variados interesses de outros.

 Os biografados, principalmente quando artistas famosos — os preferidos por autores de best-sellers — querem ser conhecidos pelo lado excitante, atraente, brilhante, de suas vidas; não pelo lado desagradável, vergonhoso, ou até mesmo eventualmente ilegal.                           

Por outro lado, o biógrafo está — ou pode estar —, quase exclusivamente interessado em explorar o lado desfavorável do biografado, principalmente na sua vida romântica, sentimental e sexual. Relatos “demolidores” atraem mais leitores que a descrição de vidas “certinhas”. Isso porque os leitores, por melhores que sejam, sempre têm dentro de si aquele velho instinto das antigas “comadres” — antes da televisão —, que passavam horas atrás das cortinas de suas casas vigiando o comportamento das vizinhas mais “faladas” para depois compartilharem suas estimulantes “descobertas” com as amigas. Compensavam a falta de aventura e excitação de suas disciplinadas vidas com o doce prazer oriundo da desmoralização das “sem-vergonhas”. Compreende-se essa tendência, porque o sofrimento causado por certas abstinências precisa ser recompensado com alguma forma de satisfação. 

Sobre essa forma de recompensa peço licença para uma digressão, gaiata e quase involuntária, neste ensaio — juridicamente sério —, aproveitando o descontraído espírito natalino. Trata-se de uma anedota, de fundo psicanalítico, que bem retrata a indignação de algumas raras — “raras!”, ouviram bem? — mulheres de mais idade que, na dúvida quanto à utilidade, ou recompensa, de um passado irrepreensível, se perguntam se não exageraram nas próprias restrições. Como ex-juiz adianto que fizeram bem em se dominar porque a violação agradável de certas regras morais só dão certo, quando dão, com pessoas famosas.   

Todos conhecem a fábula de Jean de La Fontaine, “A cigarra e a formiga”. Segundo esse poeta francês — falecido em 1695, autor de “Fábulas de Esopo” —, a formiga vivia só para trabalhar e economizar, enquanto a cigarra, sua vizinha, só tocava viola e cantava. Como agora os tempos são outros, peço licença para atualizar e “humanizar” a moral da história dizendo que a formiga varria, lavava, passava, cozinhava, fazia horas extras no trabalho, cuidava da sua hortinha e economizava cada centavo ganho visando uma velhice sem privações. Ficara viúva ainda jovem, era atraente, mas rejeitava aproximações de formigões mal intencionados. 

Dona Formiga tinha uma vizinha, a Srta. Cigarra, que era o oposto. Passava a vida cantando e tocando violão, despreocupada com o futuro. Namoradeira, fazia o que lhe dava na telha. Ouvindo a leviana cantando, horas e horas, a formiga sempre pensava: “ — Essa cabeça de vento ainda vai se arrepender... Chegará o triste dia em que vai me procurar, pedindo um prato de comida. Aí eu lhe direi: — “Você passou a vida cantando e tocando violão, enquanto eu só trabalhava e economizava. Agora que chegou o inverno da vida, vem me pedir ajuda? Já que você tocava violão tão bem, agora dance! E fecharei a porta na cara dela!”

Ainda segundo a fábula — adaptada aos tempos modernos  —, passado um longo tempo sem ver a cigarra, a formiga, cada vez mais cansada e envelhecida, varria, no meio da tarde, a frente de sua humilde casinha. Subitamente, um  reluzente Mercedes estacionou em frente. O motorista desceu, solícito, para abrir a porta da nobre passageira. E quem é que sai do automóvel? A Srta. Cigarra, a própria. Bronzeada, corpo sarado, conservado com vitaminas, cremes caros e exercícios na academia.  Seus dedos estão cheios de anéis e alguns colares de ouro confirmam a riqueza da portadora.

Vendo a Sra. Formiga tão desgastada pelo trabalho, a Srta. Cigarra disfarça o susto e exclama: — “Que prazer revê-la, minha velha amiga! Você está ótima! E sempre trabalhando, manejando, com arte, a fiel vassoura... Parei somente para lhe dar um abraço, fiz questão... Mas não posso me demorar porque estou indo agora para o aeroporto. Vou a Paris, em primeira classe. Cantarei no Théâtre des Champs-Elysées, na Ópera de Paris, no Palais Garnier... e nem mais lembro onde, porque isso é com meu marido, que é também meu empresário. Um “gato” de olhos verdes. A cara do Alain Delon aos 25 anos. Ele é vinte anos mais novo e me adora! E não é por interesse, não, porque ele é puro fogo! Mas nem tudo são flores! Há o lado horrível, as operações plásticas, os ensaios, as viagens, as dúvidas na escolha das joias, a guerrilha jurídica com a insaciável Receita Federal. Mas vou lhe contar um segredo: há dias em que sinto inveja dessas vidas simples como a sua... A nobreza da sua humildade, manejando a vassoura, o vestido desbotado, as rugas corajosas, sem disfarce. Isso é moralmente lindo, mas cada qual com seu destino... Bem, estou abusando de teu tempo... Preciso ir. Quer alguma coisa de Paris?” 

— Sim, quero... Já que você vai pra França, procure lá um tal de La Fontaine e diga-lhe que o mandei à p. que o pariu”. 

Encerrada essa digressão, que reconheço fora de lugar — talvez meio autorizada pelo tema jurídico-literário das biografias —, eu dizia que autores e editores de biografias podem, eventualmente, se sentir mais interessados nos detalhes apimentados de um artista, ou político, do que no retrato fiel de uma vida inteira. Em suma: nem todo biógrafo é santo. É um ser humano — isso diz tudo —, com todos os riscos implícitos nessa condição. Por exemplo, considero Fernando Morais um biógrafo sério e responsável, porque já li algumas coisas dele. E sei que, tão sérios como ele devem ser vários outros autores. Mas sei também que a tentação do “tcham!”— visando o aumento da vendagem dos livros — pode distorcer a exatidão de alguns autores na descrição de qualquer vida. 

O biógrafo de uma pessoa viva deve respeitar os sentimentos de seu biografado mais do que o faria descrevendo a vida de uma pessoa morta. O biografado morto nada sofrerá, “na carne” — já não a tem —, com eventual difamação ou calúnia.  Seus parentes, claro, podem sofrer, mas a dor moral resultando da má biografia será menor que a dor sentida por um ser vivo, vendo-se desmoralizado.

Há coisas que, reveladas, podem desencadear um “envenenamento” ou dissolução de laços familiares. Digamos — essa hipótese me foi lembrada por um jornalista muito equilibrado, o Delci Lima — que um biógrafo, esmiuçando a vida de uma cantora famosa, conclua, até com razoável lógica, que a biografada deve ter tido “um caso” secreto com o sócio de seu marido, no ano tal. Digamos que uma filha adolescente dessa artista tenha sido concebida no período do suposto romance extraconjugal. Surgirá, na cabeça da mocinha, uma dúvida que pode levá-la a confrontar a cantora, após ler o livro: — “Minha mãe... Gostaria que a senhora me dissesse com toda sinceridade: eu sou realmente filha de meu pai”? 

Mesmo que a mãe diga que não houve nada, a moça pode ficar com essa dúvida martelando na cabeça, envenenando a desejável harmonia de um lar. E o marido, talvez traído mas sem certeza disso, já não verá a esposa com os mesmos olhos. Mesmo que, no fundo de sua cabeça tenha lhe ocorrido alguma suspeita, depois de publicado o livro já não poderá encarar seus amigos e conhecidos com o desembaraço de antes. Em detalhes desse tipo, um biógrafo de peso  — capaz de escrever uma ótima biografia sem procurar o escândalo — provavelmente se absterá de relatar suas “deduções” sobre determinados fatos íntimos. Ou indagará de seu biografado se ele autoriza ou não publicar específicos detalhes vexatórios, principalmente aqueles que envolvam terceiros. Afinal, a obrigação de um bom biógrafo é descrever uma vida, em todas as suas dimensões, sem especial ênfase em mostrar o lado vergonhoso do biografado.

 Li, recentemente, na imprensa, que no nordeste um autor escreveu uma biografia de Lampião dizendo que o mesmo era gay. Uma neta do famoso fora-da-lei entrou na justiça requerendo a proibição da distribuição, provavelmente dizendo que isso não era verdade. Não li os autos, e desconheço detalhes, mas a neta conseguiu liminar. Não sei se essa decisão foi revertida, mas se à neta do notório cangaceiro essa “característica” — alguns anos atrás vexatória entre os nordestinos — lhe parecia  inverídica, era seu direito reagir. Mas somente com a leitura do livro, ou longos trechos — certamente feita pelo juiz — é que seria possível chegar a uma conclusão mais segura sobre a intenção do autor.

A mídia, recentemente, exibiu uma lista de acadêmicos, artistas, ex-magistrados e intelectuais opinando que os autores e editores podem publicar biografias sem qualquer consideração pelo que acontecerá com a reputação do biografado. A justificativa é que, se o autor mentiu, ele poderá ser depois responsabilizado. Usualmente na área cível. Pagará uma indenização, se falseou os fatos.

Esse ponto de vista, totalmente permissivo,  desconhece dois fatos elementares. O primeiro é que o biógrafo tanto pode ser um admirador quanto um inimigo, ou invejoso, do biografado. Se há empatia, a biografia será favorável. Se houver antipatia, ou mesmo ódio, a vida será descrita de modo oposto. Mesmo as coisas boas, realizadas pelo biografado odiado, são descritas como “interesseiras”, demagógicas, apenas visando enganar e obter votos. Já li biografias de uma mesma pessoa em que ele é anjo, ou demônio, conforme a disposição do escritor. Quando o biografado está morto, a liberdade do escritor, como já disse, é bem maior. E nada impede que, nestes tempos de cérebros à venda, um bom redator seja pago para escrever uma biografia direcionada para desmoralizar um desafeto ainda vivo. 

O segundo fato, a aconselhar a intromissão do dedo do juiz — liminarmente, por solicitação do biografado —, está na longa demora do trânsito em julgado de uma decisão judicial em pedidos de indenização por dano moral. Como nosso sistema recursal permite infindáveis recursos, as ações podem demorar vários anos, nos quais a reputação do biografado poderá ser corroída injustamente. 

Alguém poderá dizer que não cabe a qualquer juiz o direito de decidir, liminarmente, se uma biografia é ou não “bem intencionada”, algo muito subjetivo. Queiramos, ou não, a Justiça é a única solução, nessas difíceis questões, em que confrontam-se direitos opostos, de igual hierarquia. Por exemplo, a liberdade é um importante direito humano, mas não impede a prisão de uma pessoa que afrontou a lei e foi julgada e condenada por isso. Nas condenações por dano estritamente moral ninguém pode negar a atuação do subjetivismo do julgador. “Alguém”, no caso um profissional, um juiz, deve decidir a respeito.

Como já disse, é fácil opinar, em tese, pela irrestrita liberdade de biografar, quando o problema não é com ele. Se um ministro, agora aposentado, de qualquer prestigiado tribunal for descrito como fortemente suspeito de ter vendido decisões, quando em atividade, é “líquido e certo’ que entrará na justiça pedindo, urgente, uma liminar de apreensão da biografia alegadamente mentirosa. Nessa hora não vai sustentar que a liberdade de escrever é irrestrita. Obviamente não vai ajuizar uma ação ordinária por danos morais que demorarão anos para terminar. 

O mesmo acontece com qualquer acadêmico de entidade científica ou literária. Se um biógrafo aparece, em livro, dizendo que um acadêmico literário foi eleito porque bajulava, pressionava, presenteava e chantageava seus futuros pares, ou que pagava, regiamente, a um hábil e desconhecido redator para escrever “seus livros”, esse acadêmico não se absterá de “cercear a manifestação de pensamento”, pedindo a apreensão liminar dos exemplares, antes que sua reputação fique arruinada, talvez para sempre.  O mesmo ocorreria com um premiado cientista “Nobel”, dado pelo biógrafo como ladrão da descoberta de outro cientista mais obscuro.

Enfim, a única maneira, penso, de conciliar os referidos interesses conflitantes está no seguinte caminho: 1) o autor que pretende escrever uma biografia deve, de preferência, externar ao futuro biografado, seu interesse em escrever sua vida; 2) se o biografado não quiser conversa, o biógrafo escreverá seu livro como bem quiser, mas terá que, antes de imprimi-lo em grande escala, mandar um “boneco” do futuro livro, ou cópia dos originais, para exame do biografado, concedendo-lhe o prazo de um mês para leitura e contestações sobre pontos que considera inverídicos ou prejudiciais à reputação de terceiros; 3) se o autor concordar com o biografado, reduzirão esse acordo a escrito, que terá de ser obedecido pelo autor; 4) impresso o livro, o autor, antes de distribuí-lo comercialmente, enviará três exemplares ao biografado, para exame no prazo de 15 dias. Isso, porque o livro impresso poderia estar, eventualmente, em desacordo com o combinado; 5) decorridos os 15 dias, sem respostas, o autor pode publicar sua obra. 

As regras sugeridas acima, ou assemelhadas, diminuiriam demandas futuras, com gasto inútil das editoras quando edições inteiras são apreendidas e depois as ações se arrastam na justiça. O prejuízo pode ser considerável e tumultuado, com a busca de exemplares em livrarias e bancas de jornais. Essa “conversa” prévia entre biógrafos e biografados seria útil para ambas as partes e também para o público. O biografado pode ter praticado um ato aparentemente feio mas por um motivo nobre, desconhecido do biógrafo. Se publicado alguns fatos desse tipo, na biografia, o biógrafo não terá coragem de fazer, depois, declarações na imprensa pedindo desculpas pelo que escreveu. Isso levaria seu livro, e ele mesmo, ao descrédito. 

Se a utilidade maior das biografias é revelar a verdade ao público, essa verdade sairá mais limpa, pura, ouvindo-se também sua “fonte” maior, antes de publicado o livro: o biografado. Uma espécie de “contraditório”, ou “legítima defesa no campo moral” antes dos livros serem distribuídos.

Obviamente, o autor pode preferir publicar o que quiser, sem tentar consultar o biografado, mas não terá o direito, depois de impresso o livro, de reclamar quando a edição inteira for apreendida liminarmente, seguindo-se uma longa demanda discutindo indenizações. E o público leitor sofrerá o prejuízo da falta de informação de algo que o interessa muito: a vida dos famosos, nem sempre tão felizes, como se pensa. 

Renovando minhas desculpas pelo palavrão da Sra. Formiga, na fábula acima atualizada, fica aqui mais uma opinião, entre muitas, sobre o controvertido tema. 

Observo, finalmente — algo que deveria ter dito antes —, que o artigo 20 do Código Civil peca pela falta de clareza. Parece ser resultado de um esforço de conciliação entre posições bem opostas na Comissão encarregada de redigir o Código. Para conseguir a concordância das duas posições, restou um texto dúbio. A demonstração dessa dubiedade exigiria vários parágrafos, encompridando este já extenso artigo.
 

(28-12-2013)

 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sem o “reforço” J. Barbosa, impossível vencer Dilma em 2014



          Dias atrás, um arguto empresário paulista, do setor de alimentação, me demonstrou, em rápida conversa informal, mas com aritmética bem convincente, que nossa assertiva presidente será reeleita em 2014. Talvez por perceber isso, um inteligente político do principal político da oposição, o PSDB, desistiu de disputar sua candidatura na indicação para representar o partido na eleição que se aproxima. Mantida a situação atual, Dilma está eleita.

Não me lembro dos números exatos de votos previsíveis, mencionados pelo empresário. Por isso não os transcrevo aqui porque poderia cometer algum engano. Seu raciocínio levou em conta o número de eleitores pobres — milhões — que recebem as variadas “bolsas”; multiplicou por quatro ou cinco esse número, tendo em vista os familiares dos beneficiados; acrescentou os votos de milhares de funcionários nomeados sem concurso, transformados em aguerridos cabos eleitorais que tudo farão — bem como seus parentes e amigos —, para não perderem seus postos na administração federal, caso seus padrinhos não seja reeleitos. Somou ainda os eleitores fiéis e os  ideológicos do PT; acrescentou os empresários hoje beneficiados pelo governo federal, também convertidos em cabos eleitorais de alto gabarito e que alertarão seus milhares de empregados sobre o risco implícito na mudança do governo. Concluiu, o empresário, que a reeleição de Dilma é tranquila. A menos — acrescento eu — que surja algum fato político estrondoso.
O “estrondo” seria a candidatura do Min. Joaquim Barbosa que, mesmo não sendo oficialmente candidato, mesmo sem qualquer campanha, já conta com um número considerável de votos. Somados estes aos votos dos demais presidenciáveis da oposição, o PT teria, com toda certeza, um longo e não desejado período de reflexão, afastado do poder. Sem o “estrondo” nossa presidente será reeleita e poderá ser sucedida por Lula, a menos que este não queira, por cansaço e idade, o que é pouco provável.
Evidentemente, nenhum candidato de partido importante, hoje na oposição, aceitará ser substituído, como figura central, por um “alienígena” político, de fisionomia não muito amigável, fala direta — frequentemente rude, quando desafiado — e que “até agora mostrou sua experiência apenas na área jurídica”, como dirão também os inimigos declarados de J. Barbosa.
 Afirmarão, tais críticos, que o “mero detalhe” dele haver impressionado o Brasil inteiro na sua luta implacável, o “mensalão”, para punir  criminosos do colarinhos brancos — até ontem juridicamente blindados “de facto” — não o credencia para o vasto “resto” da complexa tarefa presidencial em um país como o Brasil, cada vez mais presente em reuniões de chefes de estado. Dirão que “o País é muito mais complexo que trinta “mensalões” e que J. Barbosa, com sua incontida franqueza, discursando nos fóruns internacionais, provocará, involuntariamente — ou até voluntariamente... — atritos ou desconfortos que exigirão do Itamaraty toneladas de panos quentes para evitar situações de beligerância explícita.
Prosseguindo nas críticas, como “golpe de misericórdia” dirão —, apenas em conversas reservadas  — que existe ainda  “o problema da cor, porque, queiramos ou não, o preconceito ainda não foi erradicado na natureza humana”. Insistirão que “muitos brasileiros brancos não se sentirão à vontade tendo um presidente com o visual de Joaquim Barbosa, que, infelizmente, não sente a ânsia de aceitação nem exibe o savoir faire de Barack Obama.
Não obstante a pertinência das críticas quanto ao “estilo duro” do Min. Joaquim Barbosa, penso que ele reúne, na “substância”, raras qualidades — mentais e morais — para modificações legislativas de vasto alcance, quase “revolucionárias” — no bom sentido, sem uso da força — de nosso ordenamento jurídico. De alto a baixo, a começar pelas regras na escolha dos Ministros do STF.
Essas altas qualidades — competência, coragem, bom senso e constância  — suplantam, com folga, as restrições oriundas de seu temperamento franco e retilíneo. Um “pavio curto” que poderá ser esticado por ele mesmo, bastando querer e se houver razão para esse pequeno sacrifício. E esse motivo será o benefício de seu país. Com essa fundamentação, ele se policiará, tenho certeza, e com todo prazer. Forçado, isso não aconteceria jamais.
 Sua atual franqueza verbal, numa função diferente, representando o país, seria certamente logo adaptada às etiquetas internacionais, porque é um homem inteligente. Além do mais, discordâncias em reuniões internacionais costumam ser muito mais amenas, verbalmente, que aqueles entreveros vistos no STF, em que os pontos de vistas dos ministros são atacados com absoluta franqueza e contundência pelos colegas, não obstante os data vênia e as alfinetadas irônicas de colegas de julgamento. Cenas internacionais mostrando Nikita Kruschev, na ONU, batendo com seu sapato na mesa, tentando chamar a atenção, hoje só interessam como revogadas curiosidades folclóricas.
Sem querer melindrar nossos realmente competentes constitucionalistas, não me ocorre, de momento, nenhum nome de jurista consagrado com desejo e ímpeto para “consertar” o Brasil jurídico de alto a baixo, enfrentando oposições tremendas. Por exemplo, a Justiça do Trabalho não deveria ser uma Justiça destinada a “proteger” o trabalhador. Este deve ser protegido — e já o é —, por uma legislação específica, mas no momento do julgamento das causas trabalhistas o juiz não pode sentir-se na obrigação de “proteger” uma das partes. Embora não frequente a Justiça do Trabalho, ouço frequentes queixas de patrões, ou ex-patrões, pessoas sensatas, e seus advogados, que dizem contestar ações trabalhistas apenas por contestar — dever profissional —, porque “não ganham uma!”. Juiz não existe para proteger ninguém, existe para julgar. Quem pode proteger, repita-se, é a lei.
Essa “proteção garantida” só não causa mais danos porque felizmente ainda existe, no coração de muita gente humilde, um senso inato de justiça. Não querem dizer, na frente de um juiz, que, por exemplo, seu ex-patrão não pagou uma quantia quando ele realmente pagou. Há, porém, um certo percentual de reclamantes que não resistem ao ganho fácil, pleiteando algo que sabe não ser devido mas que lhe propiciará algum lucro em um acordo na audiência inicial. E por que o reclamado concorda em fazer um acordo? Apenas por comodismo, para livrar-se de uma demanda, mesmo injusta. “Não havendo nada perder, por que não tentar?”, é o raciocínio do reclamante que está apenas pensando em dinheiro.
Na área penal e processual penal, a justiça fica desmoralizada quando, por exemplo, um cidadão sai bêbado de uma boate, pega seu carro, corre demais, sobe na calçada, mata algumas pessoas que ali estavam, foge do local e alguns dias depois apresenta-se com advogado. Paga uma leve fiança e passa a responder, em liberdade, por homicídio culposo, ou mesmo doloso.
Respondendo ao processo em liberdade, provavelmente nunca será realmente preso, porque só se pode prender alguém após o trânsito em julgado da condenação. A prisão preventiva só é decretada quando o réu já é um meliante contumaz. Péssima jurisprudência, por sinal. E digo mais: só por causa de um elogiável “pudor profissional” dos advogados é que os processos um dia terminam. Se não ligassem para a própria reputação, poderiam sempre obter a prescrição usando e abusando de recursos, todos eles seguidos de “n” embargos de declaração, porque a lei não proíbe que se apresentem tais embargos, sucessivamente, contra decisões em embargos anteriores. Não há, na lei, qualquer limite quantitativo contra essa prática que apenas exige uma ousada “cara de pau”, com perdão da expressão. Felizmente, a grande maioria dos advogados se abstém disso. Apenas por foro íntimo, não que a legislação os impeçam. 
A mídia está, diariamente, relatando casos de decisões que afrontam o senso comum, levando a população a concluir que, na prática, existem dois tipos de justiça, a do rico e a do pobre. O que explica a inércia dos governos em construir cadeias em número suficiente. Até recentemente, antes da atuação de Joaquim Barbosa, os políticos consideravam-se imunes à prisão. Consequentemente, perguntavam-se: — “Por que gastar dinheiro com cadeias, esses antros infectos, nos quais  nunca entraremos, como condenados?” E essa postura mental tinha um adicional experto: — “Se, um dia, tivermos o imenso azar de uma condenação em regime semiaberto, acabaremos em prisão domiciliar porque não há vagas suficientes no semiaberto. Assim, somente um político muito burro lembrará a construção de mais  semiabertos”.
Não dá para compreender, também, que colhida contundente prova de um crime grave  — prova filmada e gravada —, tudo seja anulado em um tribunal, anos depois, porque houve alguma falha técnica, administrativa, na colheita da prova. Seria o juiz “x” e não o “y”, que deveria autorizar o grampo, conforme o decreto ou lei tal. Assim terminam alguns casos de repercussão. Depois de tanto esforço da polícia, por anos e anos, já não haverá qualquer estímulo para recomeçar. Testemunhas podem ter morrido. — “Nada indica que, renovada a investigação e refeito o processo judicial, não ocorra nova anulação, por isso ou aquilo”, pensa o desanimado delegado.
Outro ponto, escolhido ao acaso. Não sei se nos EUA existem, em conversas privadas de advogados, muitas queixas contra o sistema de nomeação de Ministros da Suprema Corte. Para saber sobre as eventuais críticas seria preciso, quase, morar lá por algum tempo, fazendo amizade com alguns deles. Advogados muito conhecidos do público certamente sentirão receio de criticar, na mídia, a atuação dos reverenciados magistrados que decidirão seus casos. Acham mais prudente não provocar ressentimentos. É impossível avaliar, à distância, o que realmente pensam os advogados americanos sobre as escolhas dos Ministros.
Essa prática norte-americana de o presidente da república escolher, à vontade, determinado cidadão para chefiar, vitaliciamente, a Justiça do país — ele só deixa o cargo morto, ou por incapacidade física, ou mental, ou por impeachment — é algo quase inacreditável em termos de separação dos poderes. Isso porque o presidente da república só escolherá um jurista que pense como ele, nos temas mais importantes. Em suma, o presidente da república espera contar com um amigo e aliado. É também impossível ignorar que o nomeado aceitará a nomeação com um forte sentimento de gratidão. Além do mais, o nomeado é escolhido como “o chefe” do judiciário, desde sua posse até o momento de morrer ou se afastar por outro motivo. Não há um rodízio na presidência, como ocorre no Brasil.
Se o Poder Judiciário Norte-americano funcionou bem até agora — deve ter funcionado, porque não sou especialista no tema e não vejo queixas na mídia — isso só pode ter acontecido devido às peculiaridades culturais de uma nação muito influenciada pela leitura da Bíblia, em que as testemunhas juram, solenemente, realmente a sério, dizer a verdade com a mão pousada no Livro. Lá não há o “direito de mentir”. Pode-se calar, mas não mentir sem consequência.
  A forma de escolha dos ministros da Suprema Corte, pelo presidente da república, nos EUA, não deveria ser imitada, automaticamente, em escala mundial, como tem acontecido. Os “caldos de cultura” variam muito entre os países. Embora, em décadas passadas, no Brasil, os Ministros do STF tenham sido muito elogiados, com razão, algumas escolhas mais recentes têm despertado frequentes criticas na comunidade jurídica. Principalmente em julgamentos de políticos do mesmo partido do presidente que os nomeou.
Alega-se que se os três Poderes devem ser separados, a teoria manda também que os Poderes devem ser “harmônicos”, daí a fundamentação para a escolha exclusiva atribuída aos presidentes da república. Essa “fundamentação”, com o devido respeito, parece, cada vez mais, perder a legitimidade. Implica em “harmonia demais”. Em várias partes do mundo tornou-se rotina os presidentes escolherem, para ministros do tribunal máximo, pessoas apenas amigas, sem especial reputação como invulgares conhecedores do direito. Ditadores, mesmo com apoio popular, esvaziam, com uma só canetada, as cadeiras nos tribunais e colocam em seus lugares a “patota amiga” que sempre apoia, nas decisões mais difíceis, quem os nomeou. Na Venezuela, diz a mídia que é assim. Já não há qualquer pudor nem para disfarçar o motivo do preenchimento dos cargos. “Notório saber e reputação ilibada” seriam meras “perfumarias”, porque o que importa é a gratidão pela nomeação.
Uma das missões de Joaquim Barbosa, como político, seria a de propor modificações na forma de preenchimento dos cargos no STF. Tarefa hercúlea a exigir alguns anos de esforço de adequação do Brasil a uma justiça bem mais satisfatória que a atual. E com isso não estou criticando nem juízes, nem advogados, nem promotores nem delegados de polícia. Cada categoria faz o que pode — pouco — porque amarrados por duas necessidades: obediência a uma legislação que se tornou obsoleta e a necessidade de viver, de ganhar a vida.
Joaquim Barbosa reúne condições para fazer um saneamento de nosso direito, principalmente na área processual. Conhece todos os “macetes” hoje utilizados para impedir que a lei seja cumprida. Tem ojeriza ao “faz de conta legal”; coragem para revogar velhas tradições, mantidas apenas por inércia, e sintonia com os anseios de justiça da sociedade brasileira, que não é composta só de ignorantes e tolos. Às vezes, um semianalfabeto tem um sentimento de justiça mais refinado que um profissional do direito.
Acalento a esperança, não utópica, de que qualquer demanda, por mais complexa que seja, não possa durar mais que dois anos, entre a petição inicial e o arquivamento dos autos, porque tudo já terá sido decidido e executado.
Caso, por mero realismo político, Joaquim Barbosa não puder se candidatar para a próxima eleição e caso ele se aposente proximamente, seria um grande reforço, para os partidos de oposição dizerem que, se eleito o principal oponente de Dilma, Joaquim Barbosa será nomeado Ministro da Justiça, por um largo período, com a missão especial de fazer a já atrasada Reforma, com maiúscula, da legislação brasileira, nos itens rapidez, simplificação, eficácia, justiça e honradez. Como Ministro do STF ele ainda pode fazer muito, mas muito menos que um Ministro da Justiça, propondo as leis necessárias.
Quanto ao “estilo” duro demais, Joaquim Barbosa, por patriotismo, pelo bem comum, aceitará limar suas próprias arestas. Do contrário, terei perdido meu latim.

(19-12-2013)  

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

“Teste legislativo” visando Imposto Único


Certamente o leitor já ouviu falar no “Imposto Único” (IU), uma ousada proposta de reforma tributária pela qual muito tem lutado o  economista Marcos Cintra. Ele propõe que todos os tributos cobrados no Brasil — cerca de 90 —, sejam substituídos por apenas um, abrangente, cobrado em toda movimentação financeira (cartão de crédito, de débito, cheques e pagamentos por via eletrônica). Sua proposta é bastante atraente em termos de praticidade, simplicidade e moralidade.

Na verdade, o IU seria algo quase mágico, “bom demais para ser verdade”, tal o tormento representado pela imensa burocracia e papelada que hoje fustiga o bom contribuinte brasileiro. No plano lógico, nada mais racional. Tão bom que chega até a preservar a honestidade (forçada) de todos os funcionários de alguma forma ligados à arrecadação. Isso porque trata-se de um tributo praticamente insonegável.  

Entretanto, essa feliz iniciativa só poderá ser implantada por etapas, sem “saltos no escuro” — em termos de arrecadação —, funcionando a lei ( única forma legítima de imposição) como uma espécie de tubo de ensaio. Se o mundo da ciência — biologia, química, física, medicina, etc. — não pode dispensar a experimentação, os mundos da Ciência do Direito e da Ciência Política também não. A menos que admitam que o termo “ciência”, nessas duas áreas,  é simples metáfora. Nada como a vigência de uma lei — por tempo limitado, três ou quatro meses, por exemplo, no caso do Imposto Unico — para saber de suas vantagens e desvantagens.

Não adianta apenas conjeturar e palpitar sobre qual será a arrecadação do IU. Mas para funcionar como “teste” — com isso despertando menor rejeição dos contribuintes —, a “lei do IU” deve ser apresentada, explicitamente, como sendo provisória, por “x” meses (três ou quatro, a título de sugestão).  Se não der certo, volta-se ao que era antes e não se fala mais em IU.

Os tributos atualmente em vigor continuarão sendo pagos durante o prazo do “teste”. Teste amargo, claro, mas não é possível avaliar o extraordinário potencial reformador do IU  se aplicado de outra forma. Quando Thomas Edison conseguiu autorização para testar o uso da lâmpada elétrica incandescente na iluminação de uma cidade americana, o óleo de baleia, usado para o mesmo fim, não foi descartado durante a experiência. As lâmpadas elétricas poderiam não funcionar como esperado.

 Decorridos os meses mencionados na “lei experimental” do IU, o governo teria de publicar — exigência contida na própria lei — o total arrecadado apenas com o IU, e também os valores arrecadados com os tributos ora em vigor, individualizados e no total, sem o IU, para comparação. Feito isso, teria o governo federal que reduzir — no prazo “x”, de vigência provisória do IU —, a atual carga tributária tradicional, no mesmo montante arrecadado com o IU.

Uma alternativa mil vezes mais simpática aos contribuites seria a seguinte: nos três ou quatro meses de imposição do IU, o Imposto de Renda das pessoas físicas (e por que não também o das pessoas jurídicas?) seria reduzido em 50% de suas alíquotas. Se, no período do “teste legislativo”, o I. Renda arrecadou “x”, é evidente que o I. Renda atualmente cobrado proporciona uma arrecadação de duas vezes “x”. Isso permitiria comparar o que aconteceria com a arrecadação se o IU fosse incorporado, de vez, ao nosso sistema tributário. Resta ver se o governo federal teria coragem de fazer isso, embora perfeitamente justo. Com o percentual do “teste”, aqui sugerido — entre 1% e 2% de toda movimentação financedira —, não há dúvida que seu montante suplantaria folgadamente a metade do que é hoje arrecadado a título de I. Renda. Em suma, não haveria, certamente, risco do governo federal ficar parcialmente insolvente nos três ou quato meses em que receberia a totalidade do IU e somente a metade do I.Renda.           

Prossigamos na fundamenação do Imposto Único.

O IU pretende ser um tributo destinado a substituição de um complexo sistema por outro mais simples, não um mero acréscimo permanente de carga tributária. E a arrecadação total do país, livre de notórios desvios, será muito maior que a atual, em que muitos que podem pagar não pagam. Será um acréscimo, um acúmulo, apenas nos três ou quatro meses, previstos como “experiência”, porque, como já foi dito, não é possível trocar um vasto e antigo sistema tributário por outro, cujo volume de arrecadação é impossível prever.

Essa redução dos tributos vigentes (sem o IU) será feita ou com a extinção de alguns impostos, ou redução de alíquotas de tais ou quais tributos, sempre visando a simplificação da tributação. A finalidade do IU não é aumentar a tributação, mas substituir várias tributações por apenas uma, ou muito poucas, até chegarmos, futuramente, ao IU realmente único, ou algo próximo disso. É impossível saber, com certeza, hoje, sem um teste comfiável, se é factível um país ter realmente um único tributo.  Mas, que tal se no Brasil tivéssemos apenas três ou quatro? A União receberia a totalidade da arrecadação — do contrário não seria um imposto único —, reteria a sua parte e transferiria o restante aos Estados, que fariam a mesma coisa com seus Municípios. Como fariam isso, em detalhes? Não sabemos, no momento, mas depois dos governos pensarem no assunto, chegando a um acordo sobre a furura “divisão do bolo”, seria o momento de aplicar o teste legal do IU.

O Imposto Ùnico (IU), dispensaria a vasta e onerosa burocracia que tanto atormenta os bons contribuintes brasileiros e teria como principal virtude impedir, ou tornar imensamente difícil, a sonegação. Se, após adotado o IU, algum técnico de banco eventualmente pensasse em inventar artifícios eletrônicos permitindo o desvio do dinheiro público, seria muito mais fácil para o governoe vigiar atentamente algumas poucas dezenas de bancos do que policiar milhões de pessoas lidando com dinheiro, todas elas tentando — como é humano — escapar, ao máximo, da tributação, porque raríssimos são aqueles que “gostam” de pagar imposto.

A maior virtude do IU seria alcançar e tributar aquelas pessoas, físicas e jurídicas, que operam hoje na informalidade — meia ou inteira —, sonegando tributos e enriquecendo alguns funcionários públicos desonestos que cooperam com a sonegação. O IU, depois de implantado combateria a vigente injustiça fiscal do Imposto de Renda, que onera severamente os assalariados — tributados na fonte, sem escapatória — e também as empresas que preferem pagar os tributos e viver de cabeça erguida. Erguida, mas intimamente revoltada com a impunidade fiscal de concorrentes que só lucram com seus “artifícios sonegatórios” porque, sonegando, oferecem ao público seus produtos a preços mais acessíveis.  E caso autuados pela fiscalização, não há porque se preocupar demais porque, cobrados em juízo, sempre podem se defender com inúmeros recursos processuais, sem limites quantitativos. A fragilidade de nossa sistemática processual, na justiça, contribui muito para a manutenção da injustiça fiscal, em que os “certinhos” pagam a própria conta e a conta dos que optam por dever ao governo; ou devem porque não aguentam tanto imposto. O Imposto Único provará que com ele será menor o peso fiscal global, porque com ele praticamente todos pagarão.

Para involuntário incentivo à sonegação, o governo oferece periodicamente generosos “planos”, Refis, ou anistias, admitindo o parcelamento dos débitos com extensão de décadas. As falhas da legislação processual civil contribuem também, como disse, para a manutenção da alta carga tributária brasileira porque, conforme o montante da dívida tributária, é mais lucrativo não pagar e aguentar uma demanda judicial do que pagar. Para quem não sabe, só na justiça federal tramitam ações de cobrança fiscal que somam valor superior a um trilhão de reais. Mesmo o Fisco tendo razão somente em metade dessa vultosa cobrança no judiciário, esse meio trilhão pagaria, com folga, todos os precatórios do país.

Alcançando, o IU, a totalidade da riqueza circulante, tal como ela é, sem artifícios — e não apenas uma fatia dela (dos bons contribuintes), tal como ocorre hoje — , a carga fiscal, no seu conjunto legislado, poderia ser diminuída. Se todos pagassem, os que hoje pagam pagariam menos, insista-se. Os “ausentes” tributários, que lucram mas não contribuem, já não conseguiriam ficar tão “ausentes”, a menos que passassem a transportar grandes volumes de notas em malas, pastas, sacos, bolsos e cuecas. O maior inconveniente, para eles, estaria no risco de roubo. Bandidos armados funcionariam, involuntariamente — embora para proveito próprio —, como se fossem fiscais violentos, espancando, sequestrando e até mesmo baleando os portadores de elevadas somas para pagamentos com dinheiro vivo.  

Tenho lido que para substituir toda a arrecadação tributária nacional a alíquota “certa” para o IU seria de “x” ou de “y” por cento, no débito e no crédito de cada operação bancária. As propostas sobre percentual variam. Mas, de qualquer forma, nenhuma delas pode ser adotada no mesmo momento em que se cancelarem todos os demais tributos no Brasil. Isso seria uma loucura muito maior que o trágico confisco da poupança no início do governo Collor.

O Imposto Único (IU), se aplicado hoje, com base apenas em deduções e conjeturas de arrecadação — por mais competentes que sejam os opinantes — só serviria para desmoralizar a mais promissora reforma fiscal possível em países devastados pela burocracia, tributação extorsiva, desonestidade, e desestímulo para que os bons contribuintes assim continuem.

O IU — ou um sistema tributário próximo dele —, seria realmente a solução ideal para o Brasil. Dando certo, seria nosso melhor produto teórico de “exportação” para países até mais avançados do que o nosso, em outras áreas. Não existe solução mais simples, clara e objetiva para a quase impossível Reforma Tributária brasileira, até agora apoiada em uma guerra fiscal que pressupõe a permanência de uma vasta e algo conflituosa legislação. A meta, hoje, em todas as atividades, é facilitar tarefas, poupando tempo. Carros, computadores, aparelhos em geral, buscam constantemente a simplificação. Por que só com a tributação deveria ser diferente? 

O IU, insista-se, pretende ser um tributo apenas de substituição. Em vez de dezenas de tributos, apenas um (algo ainda remoto), ou pouco mais de um. Durante três ou quatro meses, atuando como uma “experiência legal”, o contribuinte brasileiro será, de fato, onerado com o pagamento dos impostos tradicionais vigentes, mais 1%, ou 1,5% ou 2% de IU, em cada operação financeira utilizando cheque, cartão de crédito, de débito ou transferência de via eletrônica. E se o governo federal cooperar com a experimentação, abrindo mão, durante o referido prazo, de metade da arrecadação do I. Renda, o sacrifício dos contribuintes já não será tão pesado.

Já tarda a hora de se utilizar, legislativamente, o método científico da experimentação — o “teste da verdade” — em alguns assuntos humanos de especial relevância.

Não é à-toa que nenhum governo, no nosso planeta, se atreveu até agora a editar uma lei criando um único tributo com o simultâneo cancelamento de todos os demais. Essa simultaneidade poderia deixar o governo sem meios de pagar seus vultosos encargos que não podem ser postergados. E o prazo do “teste legal” não poderia ser excessivamente curto, de um mês, por exemplo. Muitas empresas conseguiriam se abster de pagamentos durante esse período. Já com três ou quatro meses de IU essa longa abstenção de pagamentos por cheques, cartões de crédito e transferência eletrônica seria praticamente impossível.

O argumento, frequente, de que o IU é utopia — e isso estaria provado pelo fato dele não existir em país algum —, não passa de fraca dedução. Esse tributo ainda não existe porque a forma de sua implantação tem sido, data venia , mal concebida. Nenhum governo sensato arriscaria trocar o certo pelo duvidoso. Com o teste, não haveria mais dúvidas.

Há pessoas, mesmo de boa-fé, que se enervam à simples lembrança do “imposto do cheque”, a CPMF, que vigorou entre 1997 e 2007, destinado à melhoria da saúde. Como a saúde pública não melhorou e a CPMF foi um mero aumento de tributo, sem menção de qualquer compensação futura para o contribuinte, era esperável a revolta da população

Há, também, aqueles contribuintes que se posicionarão contra o IU alegando que não se pode confiar em nenhum governo federal, seja qual for o partido no poder. Dirão que não há qualquer garantia de que o governo federal — após o “banquete” de arrecadação do IU, por três ou quatro meses —, não ficará ‘enrolando”, sem reduzir os tributos tradicionais. E um Congresso de maioria submissa pouco poderá fazer para que o governo federal cumprisse o que foi “combinado” na lei do IU.

Para evitar um “cano oficial”, a mesma lei de experimentação do IU teria que inserir um artigo frisando que caso o governo federal não reduzisse, efetivamente — em determinado prazo —, a dispersa tributação em vigor — considerando o acréscimo obtido com o IU —, o contribuinte ficaria autorizado a não pagar determinados tributos diretos —, expressamente mencionados na mesma lei —,  até que o governo cumprisse a sua parte no “acordo tributário” implícito na lei de experimentação do IU.

Se esta sugestão soa como violenta demais, que se sugira algo que force o governo a cumprir a sua parte na lei de experimentação do IU. E a alternativa mencionada de início — de o governo reduzir à metade a cobrança das alíquotas do I. Renda das pessoas físicas e jurídicas durante o período da “experimentação tributária” — tranquilizaria a população. Ela pensaria: —“Se o governo, depois do teste, “esquecer” do assunto, pelo menos teremos lucrado pagando só metade do I. de Renda, durante três ou quatro meses”. Não mais, por a vigência do I.U. seria por tempo limitado, os três ou quatro meses já referidos.

É preciso lembrar que, na pureza doutrinária, desde a Magna Carta, todo o tributo representa um acordo de cavalheiros entre o “monarca” e seus súditos, no caso, representados pelos congressistas. O povo paga tributos e, em troca, o governo presta determinados serviços. Somente em caso de calamidade pública, com grande necessidade de urgência, é que o “rei”, hoje o Poder Executivo, pode tributar sem esperar resposta dos “súditos”. E não estamos em declarada calamidade pública, a não ser na metáfora política.

Provavelmente, economistas e tributaristas em contato diário com estatísticas de arrecadação dos variados tributos poderão levantar objeções de conteúdo quantitativo, apontando problemas com os percentuais sugeridos de alíquota para o IU, mas o que interessa, neste exato momento, é discutir uma “saída” prática e lógica para a tortura tributária brasileira. Que se corrija alguma coisa, no que eu disse, mas que se faça algo. É fácil criticar, sem nada propor.

(27-11-2013)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Lei “tubo de ensaio”, boa ideia na Segurança”


Na edição da revista Veja, de n. 2347, a reportagem “Estados Unidos da Maconha”, da inteligente jornalista Tatiana Gianini, contém uma observação que me agradou muito, principalmente por um motivo que não tem nenhuma relação com a legalização, ou não, do uso da maconha.

Refiro-me a uma frase da reportagem acentuando que “As leis liberalizantes do Estado de Washington e no Colorado não são definitivas. Se ficar evidente que elas acarretam mais prejuízos sociais do que os benefícios esperados, os eleitores podem votar para corrigir o erro cometido”. Isso porque a decisão de liberar o uso da droga para fins medicinais e recreativos foi precedida de consultas de opinião pública.

Pela reportagem, não dá para saber, salvo má leitura minha, se as leis que autorizaram o consumo lícito da droga nos dois Estados mencionaram expressamente que a autorização será uma espécie de teste — ou “tubo de ensaio” —, ou se a possibilidade de revogação da autorização é mero lembrete pessoal da jornalista informando que, como quaisquer leis, elas poderão ser revogadas, ou modificadas, caso se revelem mais maléficas do que benéficas nos seus efeitos.

A distinção entre figurar, ou não, na própria lei — ou na sua justificação —, a possibilidade de sua revogação — conforme o resultado prático de sua vigência —, é muito importante em termos psicológicos. Tranquiliza a opinião pública, quando o assunto desperta fortes reações instintivas. Se uma lei, autorizando o uso lícito da Cannabis, vier com a menção de que será modificada, ou revogada, “se não der certo”, os inimigos da droga sentem-se mais tranquilizados. Pensarão: — “ Não concordo, mas vá lá, é uma simples experiência. Até servirá para comprovar que a maconha é sempre ruim”. Se, porém, uma lei, desse tipo, não mencionar seu caráter experimental, os adversários ferrenhos da liberação sentir-se-ão na necessidade moral de partir para algum tipo de ação mais imediata e agressiva, o que não ajuda em nada o conhecimento sobre qual é a melhor política sobre o assunto: proibir ou regular o uso da maconha.

Esse tipo de “lei tubo-de-ensaio” bem que seria recomendável, no Brasil, no que se refere a uma reação da população ordeira contra a crescente, audaciosa, e quase impune criminalidade violenta.

Já há cidadãos que, aprontando-se para sair de casa, pela manhã,  pensam se não seria prudente enfiar no bolso da calça, duas ou três cédulas de cem reais, como uma espécie de seguro contra o risco de ser queimado vivo, caso seja assaltado. Se a vítima não dispuser de uma quantia “decente”, poderá receber uma esguichada de fluido de isqueiro e em seguida transformada em tocha humana. No fundo, essa prática é inspirada em filmes violentos e medíocres que estimulam formas “excitantes” de tortura e “dureza” que prestigiarão o “churrasqueiro” entre seus colegas de crime. A possibilidade de responder por esse crime bárbaro é remota, quando o bandido age encapuzado; ou risível, caso o incendiário seja preso mas tenha menos de 18 anos.

Bandidos, armados com revólveres, escopetas, granadas, metralhadoras e bazucas — só lhes faltam tanques de guerra, “mas chegaremos lá...”  — atacam supermercados, shoppings, bancos, apartamentos e condomínios com a maior tranquilidade. Destroem as câmaras de segurança e se dão ao luxo de “trabalhar” com coletes à prova de bala. Assim — eles se perguntam —, por que não aproveitar “essa covardia generalizada dos ‘burgueses’, que não dispõem sequer de uma velha garrucha enferrujada que poderia pelo menos impressionar, mesmo não conseguindo disparar?” 

Não obstante o enorme efetivo de policiais militares, não há possibilidade financeira para o poder estatal colocar uma viatura policial a cada trezentos metros em todas as rodovias do Brasil. Essa óbvia impossibilidade permite o “maravilhoso” florescimento do roubo de carretas e caminhões. Cada carreta dessas, transportando mercadorias valiosas, equivale a é um prêmio modesto de Mega-Sena. Quase sem riscos, porque motorista e ajudante estão desarmados, indefesos. — “É só chegar e pegar!” — explica o bandido chefe, convencendo os iniciantes do bando, caso ainda indecisos na avaliação do risco/benefício.

Poucos dias atrás, assisti, na TV, uma reportagem mostrando que algumas transportadoras de carga já não podem utilizar todos os seus veículos disponíveis porque há escassez de motoristas dispostos a arriscar suas vidas a troco de nada. Há suficiente número de  motoristas de caminhão mas boa parte deles resolveu mudar de profissão após sofrer, ou ouvir relatos de colegas que sofreram a traumatizante experiência de ver o caminhão  roubado, além de levar coronhadas, tapas, socos e outra humilhações. Como os meliantes escolhem hora e local, quando a polícia chega já é tarde.

Esses caminhoneiros sentem-se como lixo humano, “cordeiros, não de Deus, mas do Senhor bandido”, impossibilitados de qualquer reação porque não podem portar uma arma, enquanto que os bandidos podem tê-las à vontade. Não lhes faltam dinheiro, ou drogas funcionando como dinheiro. Se, na pior das hipóteses, forem presos, não há porque se preocupar com longas detenções, visto que a legislação e a jurisprudência são frouxas e não lhes falta dinheiro vivo para contratar bons defensores, que apenas exercem a profissão.

Não são apenas os caminhoneiros, claro, os prejudicados. O seguro torna-se cada vez mais caro, com toda razão. Um conhecido meu, que mantem pousadas no interior, quis fazer seguro de seus chalés mas o banco lhe disse que não mais aceita seguro de responsabilidade civil contra furtos e roubos, tal o prejuízo da seguradora tendo que indenizar os prejudicados que nem podem manter uma espingarda em casa. Se derem um tiro, defendendo-se de meliantes, que rezem para não acertar porque do contrário terão que amargar anos de sofrimento moral, defendendo-se no tribunal do júri.

Por que o poder público não toma uma providência qualquer, mais efetiva que apenas contratar mais e mais policiais? Porque tem medo do politicamente incorreto. Os governadores, de modo geral, têm pavor de parecerem “de direita”, alegadamente incapazes de “compreenderem” que o crime é apenas um “fenômeno social”, “fruto da desigualdade” e outras generalizações do gênero. Esquecidos de que o crime organizado violento já assumiu feição empresarial. Quadrilhas se armam cada vez melhor, até com metralhadoras, enquanto o policial usa um “revolvico” — conforme ouvi de uma senhora indignada com a desigualdade de armas. A moleza dos governos é de tal ordem que organizações criminosas já estão assumindo “funções jurisdicionais”, mandando punir criminoso, por exemplo, que matou criança. Chefões do tráfico gabam-se de que o crack foi por eles abolido nas cadeias, enquanto que na população livre os viciados se entregam ao vício dando suas cachimbadas e mudando de local quando a polícia está incomodando.

Quando, anos atrás, um conhecido político de esquerda —  ele chegou a chorar de emoção quando conheceu pessoalmente Fidel Castro —, comandava a companha do desarmamento, eu já me perguntava se não seria temerário tornar a banda “burguesa” do país totalmente indefesa, enquanto facões e machetes poderiam permanecer nas mãos dos cortadores de cana, por exemplo, tendo em vista que tais armas são instrumento de trabalho. Obviamente, minha suspeita  era excessiva porque no mundo inteiro difundiu-se a ideia de que a população civil não deve possuir armas de fogo. Mas, mesmo afastada a diabólica intenção de desarmar a população para a hipótese de uma revolução de esquerda, parecia-me perigosa a ideia de deixar a coletividade incapaz de se defender enquanto não chega o socorro público.

Minha intuição, hoje — igual a de milhares —, é a de que a certeza, pelo bandido, de que o cidadão pacífico não tem como reagir — porque está proibido de portar ou ter em casa, ou no trabalho, uma arma de fogo —, é um tremendo estímulo à criminalidade. O trabalho escassamente remunerado é “desestimulante”, monótono, desconfortável e estimula a rapaziada, sem formação moral, a tentar o enriquecimento rápido se o roubo for bem planejado e executado no momento propício.

Antes do desarmamento geral, os assaltantes raramente se atreviam a entrar em um prédio de apartamento para roubar os moradores. Por isso, era comum pessoas idosas venderem suas casas e mudarem para apartamentos. O assaltante tinha medo de, eventualmente, levar um tiro na cara, querendo roubar uma unidade. O morador poderia, quem sabe, ter uma arma e ser um sujeito decidido, convicto de seu direito de se defender.

Hoje, os meliantes estão convictos que roubar “é sopa”, porque todos no prédio estão desarmados. É compreensível que porteiros de prédios de apartamento fiquem sem reação quando três ou mais mascarados chegam com armas de grosso calibre. Resistir é morte certa.  Dentro dos prédios, alguns chutes na porta trancada é o suficiente para entrar. Se houver resistência terá que ser com cabo de vassoura. Havendo tempo, “um estuprozinho maneiro pode vir a calhar...”.

Alega-se que a presença de uma arma em casa pode ensejar acidentes. Pode, realmente. Um menino pode encontrar o revolver do pai e, brincando com o achado, pode matar o irmão. Mas com frequência bandidos atacam os motoristas que aguardam a abertura do sinal. A dona do carro, assustada, tenta fugir — ou, nervosa, parece tentar —, e o bandido dispara, matando eventualmente a criança que está lá dentro. Ou a criança pode ser arrastada pelas ruas, presa pelo cinto de segurança, sem que o bandido perceba isso de imediato, como já aconteceu. Em suma, crianças podem morrer baleadas, tanto por descuido do pai quanto por disparo de assaltante, ofendidíssimo com a “desobediência” do assaltado, tentando fugir.

O que se sugere, com o presente longo arrazoado? Propõe-se — como início de reação —, que os Estados brasileiros, pelo menos os mais prejudicados com abusos, tomem providências legais permitindo que motoristas e seus ajudantes, nos veículos de carga, viajem armados e protegidos, em suas cabines, por vidros e portas à prova de balas. E autorizados a reagir, atirando, quando estão sendo vitimas de roubo. Útil seria, também, a blindagem dos pneus, permitindo ao caminhão fugir do local mesmo quando os meliantes acertem os pneus.

Obviamente, nenhuma empresa será obrigada a blindar a cabine de seus caminhões e carretas e armar seus funcionários. Quem assim quiser, poderá fazer essa blindagem. E não poderá obrigar seus motoristas e ajudantes a assumir tal risco. Para os caminhoneiros que aceitarem essa função, o salário será aumentado, por se tratar de trabalho de risco e a empresa ficará ainda obrigada a pagar um seguro de vida de, digamos, duzentos mil reais, em favor da esposa ou companheira, ou mãe do motorista ou ajudante, caso o profissional venha a perecer reagindo aos bandidos. A lei também exigirá que o motorista frequente uma escola de tiro para aprender a atirar, manipular e conservar a arma. Os detalhes seriam melhor estudados pela comissão encarregada de propor essa nova forma de autodefesa contra os roubos de carga. E a lei poderia  esclarecer, na sua justificação, que a lei valeria por tempo determinado, um ano, por exemplo, “em caráter experimental”, tal qual aconteceu com as leis dos estados de Washington e Colorado, autorizando o uso recreativo da maconha.

O efeito psicológico de uma lei dessas poderia ser enorme, porque os ladrões de cargas não saberão, quase sempre, se o caminhão em mira é ou não blindado, conduzida com gente armada. E a lei poderia exigir que todo caminhão, durante a instalação da blindagem, permaneça sem as placas identificadoras, para que as organizações criminosas não fiquem informadas do perigo de atacar tais veículos. Se vierem a saber, provavelmente preferirão atacar caminhões que não se preocuparam em se proteger. Com isso, as empresas mais previdentes sofrerão menos prejuízo.

Desconheço qual o grau de aceitação, ou de repulsa, que a presente sugestão despertará nos governos, nas empresas de transportes, nos motoristas de caminhão e na população em geral. Talvez prefiram continuar se lamuriando, chorando como mulheres, rezando para nada acontecer com eles, ou ela, abandonando a profissão e estimulando indiretamente o triunfo da bandidagem covarde que só ataca a carneirada indefesa. Indefesa por falta de atitude, ou coragem moral dos governantes, temerosos de perder votos que, pelo contrário, ganhariam se tivessem, pelo menos a coragem moral de propor uma reação. Da coragem física os governantes não precisam, porque rodeados de seguranças.

— “Se o governo não é capaz de nos defender, que pelo menos nos autorize a nos defendermos”, está na cabeça de muita gente. Ou será necessário pedir e pagar proteção ao crime organizado para que ele nos defenda dos assaltos fortuitos da bandidagem desorganizada?

Governadores com medo do “politicamente incorreto”, esquecem que, hoje, com o abuso dos meliantes, a passividade é que é politicamente incorreto. Governos moles não serão reeleitos. O país exige mais ação e menos discurso.

(12-11-2013)

Sugestão legislativa justa, mas polêmica.


Quando magistrado em atividade, no Estado de S. Paulo, com alguma frequência, sentia uma difusa sensação de que a nossa legislação, principalmente a processual, era um empecilho para qualquer juiz preocupado com a “justiça do caso concreto”, individual. Não havia, me parecia, espaço para exceções justificadas pelas circunstâncias. E, para ser franco havia momentos, em que me parecia “que estava tudo errado”, considerando o conjunto da legislação.

Às vezes a lei me parecia rígida demais. Outras vezes “vaga”, ou frouxa, quando deveria ser mais firme. Não havia, a meu ver, uma convivência confiável entre lei, bom senso, praticidade e moral. Sei que toda justiça, em todos os países, é relativa, porque fixada com normas gerais, rígidas, incapazes de conciliar a inerente generalidade de suas imposições com a infinita variedade do comportamento humano. Não só o comportamento, mas sua motivação.

No Direito Penal, por exemplo, com que trabalhei apenas no início da magistratura de carreira, sempre estranhei o fato da legislação “tabelar” em excesso, minuciosamente, o comportamento do acusado no momento do crime — com agravantes e atenuantes — e dar valor zero ao passado do réu e da vítima. Quase santos, de longa e impecável vida anterior, e pomposos marginais — que conseguiram, utilizando brechas legais, escapar de condenações — são julgados como se fossem iguais. Segundo a lei penal, nada disso importa. O que importa, tecnicamente, é a situação, rigidamente tabelada, no momento do crime, ou sua tentativa.  

Não sei se esse sentimento está presente, hoje, em parcela significativa dos chamados “operadores do direito”. Essa palavra, “operadores”, por sinal, faz lembrar — e não por mero acaso — a imagem de cirurgiões usando avental, máscara e luvas de borracha remexendo as entranhas dos “pacientes”— os inquietos demandantes —  que, deitados numa mesa, tórax e abdomes abertos, conscientes mas não totalmente anestesiados, não sabem se vão sair vivos ou mortos, presos ou soltos, mais pobres ou mais ricos da arriscada “operação judicial”.

Isso porque suas entranhas estão sendo revolvidas, pinçadas ou cortadas conforme os opostos interesses dos “cirurgiões-bacharéis” que procuram, como adversários, apenas aquilo que favoreça o lado que defendem.

Tais “cirurgiões” são, nessa atividade, bastante perspicazes na escolha do material. Quem sabe, daqui a duzentos anos, ambas as partes pinçarão tudo o que interessa à verdade, apenas a verdade, como “cientistas dos conflitos humanos”. E ganhando bem, espero, merecidamente, como homens de uma ciência toda particular, porque inexata, denominada Ciência do Direito. Concebida, idealmente, para a prevalência do justo, não do mero interesse unilateral. Mas esqueçamos a utopia e prossigamos com a metáfora da realidade presente.

 Terminado o exame das “vísceras”, os “cirurgiões”, advogados e promotores — quando a causa é penal —, anotam suas observações, costuram as bordas da longa incisão e escrevem suas conclusões — nunca coincidentes...  — ao “cirurgião-chefe”, o juiz, que tenta formar uma imagem, a mais verdadeira possível, da origem do problema e da  culpa de quem o criou.

O só fato do conhecimento da verdade ser, para o juiz, “de segunda mão”— porque ele depende do “ouvir dizer” de profissionais interessados em mostrar apenas o que a eles interessa — já aconselha os jurisdicionados a desculpar a eventual injustiça que sofreram quando, na primeira ou segunda instâncias, a prova dos autos ou a legislação é dúbia. Quando isso acontece, resta o recurso processual, um santo e digno remédio quando usado de boa-fé, pelo menos na área cível. Quando, porém, essa “medicina” recursal é usada de má-fé — só para retardar ou confundir —, ela equivale a remédio com prazo de validade vencido. Veneno para a parte contrária e enxaqueca crônica para milhares de outros recorrentes que, possíveis vítimas de uma má decisão, aguardam, por anos, na “fila”, o julgamento de seus recursos. A atual queixa contra os recursos protelatórios é por serem protelatórios, não por serem recursos.

Em toda demanda cível que não seja estritamente sobre o direito, teórica, a verdade real é muito mais do conhecimento das partes do que do juiz. Isso, claro, porque quase sempre autor e réu — “testemunhas presenciais” autênticas — contaram a seus advogados o que realmente aconteceu. Informações de primeira linha. O juiz, ao contrário, assemelha-se ao turista que acabou de chegar a um país desconhecido e é abordado na rua por dois cidadãos que pedem sua opinião sobre uma discordância confusa, além de explicada de modo truncado e tendencioso. Não sendo Deus, com o dom da ubiquidade, o juiz depende de informações de idoneidade desconhecida. Vigente, em nosso direito, o direito (das partes) de mentir, é esperável que esse direito aumente o percentual de erros nas decisões. Nesse ponto, o direito americano leva ligeira vantagem sobre o brasileiro na utilização da mão sobre a bíblia, prática que aqui ficaria desmoralizada.

Para contrabalançar a falta de conhecimento presencial dos fatos, por parte do juiz, existe no direito o chamado “contraditório”, uma grande invenção da humanidade. Quando há igualdade de forças — isto é, de igual competência técnica e diligência dos procuradores — a verdade real chega, com grande frequência, a coincidir com a verdade legal. Mas acidentes de percurso, embora raros, podem ocorrer, distorcendo o resultado final de busca do justo. Um deles, talvez o mais grave, seja a perda de um prazo, sem culpa nenhuma da “parte”, propriamente dita, o demandante. Às vezes com culpa até compreensível de seu advogado como demonstrarei.

As explicações técnicas que dou a seguir são destinadas aos leitores em geral, não aos advogados da área cível, que conhecem o assunto até mais do que eu. Parlamentares, economistas, industriais, comerciantes e estudantes podem se interessar pelo problema e por isso tento ser o mais claro possível.

Friso, neste artigo, que minha preocupação maior é com o cliente vitimado por um equívoco não dele, mas de seu patrono, com resultados talvez devastadores, impossíveis de sanar nem com recursos processuais, mandados de segurança ou ação rescisória. Um cidadão pode perder todo o seu patrimônio por um mero engano — talvez compreensível — não dele, mas de outra pessoa, na consulta de uma folha de calendário.

Já ouvi de um grande jurista a afirmação de que os prazos processuais são “a única coisa certa e respeitada em nossa justiça”. De pleno acordo. Seria o caos se os litigantes não tivessem prazos intimidadores para manifestação nos autos. Ainda mais no caso brasileiro, em que as pessoas costumam deixar para o último dia o cumprimento de suas obrigações.

A diferença entre a perda de um prazo processual — nos casos que menciono a seguir —, e um prazo qualquer, não judicial, é que neste último o “distraído” paga apenas uma multa, Perde alguma quantia, mas não perde todo o seu direito. Paga uma multa, por exemplo, de IPTU, mas não perde o imóvel. Alguma coisa lhe resta. O castigo legal pelo engano na contagem de um dia de prazo processual é aberrantemente desproporcional à falta cometida por seu procurador, porque é insanável. Equivale ao fuzilamento de um soldado porque não se levantou logo da cama, após o toque da corneta.

Explico, agora, porque fui motivado para tocar nesse assunto.

 Durante alguns anos fui titular de uma Vara Cível na cidade de São Paulo. Nessa condição, duas ou três vezes, em média, por semana, recebia advogados que compareciam à minha presença com pedidos de sustação de protesto de título. Ora cheques, ora notas promissórias ou outros títulos de crédito. Alegavam que a quantia mencionada no título, , não era mais devida, total ou parcialmente, conforme detalhes explicados na petição.

Como todos, da área, sabem, a lei processual autoriza o juiz, nesses casos de urgência, a deferir — sem antes ouvir a parte contrária, o “credor” —, uma “medida cautelar de sustação do protesto” de um título de crédito, “mediante caução”, ou garantia, da quantia mencionada no papel. Isso porque um título protestado pode representar um abalo de crédito de enormes consequências. Por exemplo, uma empresa pode ser impedida de participar de uma licitação envolvendo lances milionários porque tem um título protestado, talvez indevidamente.

Como o devedor do título talvez tenha razão no que escreve, porque o suposto credor pode estar abusando da situação de ter ainda em suas mãos o título — não obstante a quantia não mais ser devida —, a lei permite ao juiz que conceda a suspensão do protesto do título desde que o suposto devedor ingresse, no prazo de 30 dias, com a chamada “ação principal”, provando detalhadamente a nulidade do título em discussão. Nulidade, ou porque a assinatura é falsa, ou por outro motivo juridicamente relevante.

Essa “caução”, exigida no despacho do juiz, pode ser com dinheiro ou com imóvel, por exemplo. Obtida a sustação, o suposto devedor tem a obrigação legal de entrar, como disse, com a “ação principal” de nulidade do título, ou outra pertinente ao caso. Se, decorridos os 30 dias o suposto devedor não ingressa com a ação principal, a medida liminar é revogada e o título é protestado. Mesmo quando o suposto devedor fez a caução com dinheiro — um forte indício de que não estava mentindo. No entanto, com alguma regularidade, o “devedor” obtinha a sustação mas se atrasava, em um dia, na apresentação da “ação principal”.

Por que ocorria esse atraso? Porque o advogado do devedor confundia “30 dias” com “um mês”. Se a sustação, é deferida em um mês de 30 dias — por exemplo, no dia 23-9-2013 —, o trigésimo dia do prazo ocorrerá no dia 23 de outubro. Tudo certo. “De 23 a 23”, prazo fácil de memorizar. Se a “ação principal” for apresentada nesse dia 23, a medida cautelar continua em vigor.

Se, porém, a medida cautelar é apresentada no dia 23 de outubro —, que tem 31 dias, do mesmo ano —, o prazo legal terminará no dia 22 de novembro. Ajuizada a ação principal no dia seguinte, 23, ela está fora do prazo, por um dia, e o título será protestado, impedindo o concorrente da licitação — no exemplo mencionado.

Em resumo: sem culpa alguma do suposto “devedor”, este pode sofrer irreparável prejuízo por “culpa individual alheia”, a do próprio advogado, que pode até ser um dedicado profissional, mas calculou um prazo sem lembrar que os meses não têm extensão igual.

Sofrido o protesto, que providência pode tomar o cliente para reparação de seu dano por não poder participar da licitação? Processar o advogado. Solução pífia, não só pela longa demora e complexidade da cobrança — “qual a certeza de que ele teria vencido a licitação?”, diria o advogado — como também porque o patrimônio do causídico pode ser pequeno, incapaz de cobrir o prejuízo.

A perda do direito pelo engano de um dia na contagem de um prazo, que ocorria de vez em quando, sempre me impressionou pelo rigor excessivo. Um advogado pode perder todo o seu patrimônio — se o cliente decidir processá-lo — e, principalmente, corre o risco de ser rotulado como “incompetente” pelo indignado ex-cliente, que “espalhará” o prejuízo que sofreu. E o advogado depende muito de sua reputação profissional.

Vejamos outro exemplo, desta vez com o atraso de um dia em uma apelação com alta probabilidade de reforma da sentença, tendo em vista a extrema complexidade do processo. Apresentada a apelação com um dia de atraso, a decisão, mesmo errada, transita em julgado, uma espécie de “prego no caixão” de um cliente enterrado vivo. O trânsito em julgado transforma o “preto em branco”, ou vice-versa. No caso de perda do prazo é desastre insanável porque a decisão não pode ser modificada nem por ação rescisória — para os leigos, a ação que possibilita modificar uma decisão da qual não caiba mais recurso algum, desde que preenchidos vários requisitos, inclusive o prazo de dois anos, contado da data do trânsito em julgado da decisão.

A lei processual não autoriza a utilização da ação rescisória fundada no argumento de que o advogado “enganou-se” na contagem de um prazo.

 Pessoas de mentalidade mais rígida — e que nunca sofreram, na carne situação parecida... — certamente argumentarão que a nossa justiça “já é morosa e por isso não teria cabimento permitir mais um “relaxamento” na nossa já lerda justiça”. Dirão que “a falha do advogado deve ser punida, não perdoada. Assim ele prestará mais atenção, futuramente, no calendário. Se adotada a modificação sugerida, atrasos ainda maiores acontecerão e serão também perdoados”.

Contra tais severos argumentos caberia dizer que a lei seria expressa no sentido de que a tolerância legal seria de um dia  apenas, uma gota d’água em ações que podem durar muitos anos, ou décadas. E lembraria, de novo, que quem mais sofre o prejuízo, pelo atraso de um dia, não é o advogado distraído, mas a parte, que pagará pesado por culpa que não é a sua. E processar o advogado, pedindo indenização, será, como já afirmado, aumentar ainda mais o próprio prejuízo e desgaste emocional.

Contra o argumento de que essa nova lei estimularia o descuido dos advogados, o legislador poderia — e deveria — instituir uma multa de tantos salários mínimos, numa escala de “x’ a “y” ,devida pelo advogado retardatário —, não pelo cliente —, a ser recolhida, por exemplo, em vinte e quatro  ou quarenta e oito horas — conforme opção do legislador —, ressalvado ao cliente prejudicado fazer tal depósito, sem o qual o recurso seria considerado fora do prazo. Obviamente, esses detalhes seriam discutidos com ajuda da OAB.

É preciso também levar em conta que a vida, nas grandes cidades, está cada vez mais complicada, com ocorrências sem sempre previsíveis. Greves, passeatas, quebra-quebras, acidentes ou bloqueios de trânsito, vírus no computador, inundações, bandidagens, interrupções de energia elétrica, pneu furado justamente no último dia do recurso, etc., justificam a tolerância de um dia nos casos referidos. Nem sempre tais empecilhos podem ser provados pelo advogado, justificando o atraso. Falhas no computador do advogado, ou dele mesmo,  não interessam à Justiça. Um clique errado pode causar uma grande demora na digitação de uma petição.

Estou bem consciente de que a presente proposta não será bem vista, se examinada em rápido passar de olhos. Dirão que não é tão comum a perda de um prazo recursal, ou de atraso do ajuizamento da medida cautelar e o prejuízo, mesmo imenso, de um ou outro, são “coisas da vida”. Quando alheia.

A opinião de cada um variará conforme sua experiência pessoal. Se nunca teve o azar de seu escritório perder uma causa por erro de contagem, será contra a ideia. Se já sofreu tal experiência, será a favor.

Aguardemos.

(5-11-2003)