Para poupar o precioso tempo do leitor, esclareço que este artigo conclui que não existe direito absoluto nesse tema. Nem do autor publicar biografias devastadoras, nem da pessoa famosa proibir totalmente sua biografia, sem fundamentar razoavelmente, em juízo, o porque da sua proibição. Somente a Justiça, caso por caso, pode decidir a respeito, inclusive em sede de liminar. Isso porque há proteção constitucional de dois direitos antagônicos. Quando dois direitos, de força igual, colidem, somente o Judiciário está autorizado a “dosar”, os interesse em disputa, visando o bem comum. E não se alegue que tal solução irá sobrecarregar o Judiciário porque são raras as demandas relacionadas com biografias de pessoas famosas. As não-famosas não atraem biógrafos.
Essa
“dosagem” legal na convivência de direitos opostos é sugerida no presente
texto, com os necessários retoques e complementos que o legislador, ou a
jurisprudência, entender mais conveniente, após maduro debate. E já esclareço,
de antemão, que é absurda a sugestão de que o autor pode publicar qualquer
biografia, com o conteúdo que quiser, respondendo depois, em juízo, pelas
eventuais deformações da verdade. Isso equivale à permissão de esfolar vivo,
moralmente, um biografado e conceder a ele o vago direito de — muitos anos
depois —, receber, talvez metaforicamente, do “esfolador”, a indenização para a
recuperação da antiga reputação. Todos conhecem a impossibilidade de recolher as plumas espalhadas pelo vento.
O
dilema tem sido muito discutido na mídia recente e parece impossível de ser
solucionado, juridicamente, de modo a conciliar tanto a liberdade de expressão
e informação quanto o direito de preservar a intimidade. Mas para tudo, na Justiça,
existe, se não uma “solução”, pelo menos uma “decisão”: “procedente” ou “improcedente”.
Não existe “empate” na justiça. O problema das biografias não autorizadas é que
por trás dos argumentos verbalizados — estritamente lógicos, jurídicos e morais
—, existem os interesses pessoais, bem mais atuantes das pessoas envolvidas.
Uma coisa é opinar, em tese. Outra, muito diferente, é decidir quando o caso fere
a sensibilidade de uns e os variados interesses de outros.
Os biografados, principalmente quando artistas
famosos — os preferidos por autores de best-sellers — querem ser conhecidos
pelo lado excitante, atraente, brilhante, de suas vidas; não pelo lado desagradável,
vergonhoso, ou até mesmo eventualmente ilegal.
Por
outro lado, o biógrafo está — ou pode estar —, quase exclusivamente interessado
em explorar o lado desfavorável do biografado, principalmente na sua vida
romântica, sentimental e sexual. Relatos “demolidores” atraem mais leitores que
a descrição de vidas “certinhas”. Isso porque os leitores, por melhores que
sejam, sempre têm dentro de si aquele velho instinto das antigas “comadres” —
antes da televisão —, que passavam horas atrás das cortinas de suas casas
vigiando o comportamento das vizinhas mais “faladas” para depois compartilharem
suas estimulantes “descobertas” com as amigas. Compensavam a falta de aventura
e excitação de suas disciplinadas vidas com o doce prazer oriundo da desmoralização
das “sem-vergonhas”. Compreende-se essa tendência, porque o sofrimento causado
por certas abstinências precisa ser recompensado com alguma forma de satisfação.
Sobre
essa forma de recompensa peço licença para uma digressão, gaiata e quase involuntária,
neste ensaio — juridicamente sério —, aproveitando o descontraído espírito
natalino. Trata-se de uma anedota, de fundo psicanalítico, que bem retrata a
indignação de algumas raras — “raras!”, ouviram bem? — mulheres de mais idade que,
na dúvida quanto à utilidade, ou recompensa, de um passado irrepreensível, se
perguntam se não exageraram nas próprias restrições. Como ex-juiz adianto que fizeram
bem em se dominar porque a violação agradável de certas regras morais só dão
certo, quando dão, com pessoas famosas.
Todos
conhecem a fábula de Jean de La Fontaine, “A cigarra e a formiga”. Segundo esse
poeta francês — falecido em 1695, autor de “Fábulas de Esopo” —, a formiga
vivia só para trabalhar e economizar, enquanto a cigarra, sua vizinha, só
tocava viola e cantava. Como agora os tempos são outros, peço licença para atualizar
e “humanizar” a moral da história dizendo que a formiga varria, lavava,
passava, cozinhava, fazia horas extras no trabalho, cuidava da sua hortinha e economizava
cada centavo ganho visando uma velhice sem privações. Ficara viúva ainda jovem,
era atraente, mas rejeitava aproximações de formigões mal intencionados.
Dona
Formiga tinha uma vizinha, a Srta. Cigarra, que era o oposto. Passava a vida
cantando e tocando violão, despreocupada com o futuro. Namoradeira, fazia o que
lhe dava na telha. Ouvindo a leviana cantando, horas e horas, a formiga sempre
pensava: “ — Essa cabeça de vento ainda vai se arrepender... Chegará o triste dia
em que vai me procurar, pedindo um prato de comida. Aí eu lhe direi: — “Você
passou a vida cantando e tocando violão, enquanto eu só trabalhava e
economizava. Agora que chegou o inverno da vida, vem me pedir ajuda? Já que
você tocava violão tão bem, agora dance! E fecharei a porta na cara dela!”
Ainda
segundo a fábula — adaptada aos tempos modernos
—, passado um longo tempo sem ver a cigarra, a formiga, cada vez mais
cansada e envelhecida, varria, no meio da tarde, a frente de sua humilde
casinha. Subitamente, um reluzente
Mercedes estacionou em frente. O motorista desceu, solícito, para abrir a porta
da nobre passageira. E quem é que sai do automóvel? A Srta. Cigarra, a própria.
Bronzeada, corpo sarado, conservado com vitaminas, cremes caros e exercícios na
academia. Seus dedos estão cheios de
anéis e alguns colares de ouro confirmam a riqueza da portadora.
Vendo
a Sra. Formiga tão desgastada pelo trabalho, a Srta. Cigarra disfarça o susto e
exclama: — “Que prazer revê-la, minha velha amiga! Você está ótima! E sempre
trabalhando, manejando, com arte, a fiel vassoura... Parei somente para lhe dar
um abraço, fiz questão... Mas não posso me demorar porque estou indo agora para
o aeroporto. Vou a Paris, em primeira classe. Cantarei no Théâtre des
Champs-Elysées, na Ópera de Paris, no Palais Garnier... e nem mais lembro onde,
porque isso é com meu marido, que é também meu empresário. Um “gato” de olhos
verdes. A cara do Alain Delon aos 25 anos. Ele é vinte anos mais novo e me
adora! E não é por interesse, não, porque ele é puro fogo! Mas nem tudo são
flores! Há o lado horrível, as operações plásticas, os ensaios, as viagens, as
dúvidas na escolha das joias, a guerrilha jurídica com a insaciável Receita
Federal. Mas vou lhe contar um segredo: há dias em que sinto inveja dessas
vidas simples como a sua... A nobreza da sua humildade, manejando a vassoura, o
vestido desbotado, as rugas corajosas, sem disfarce. Isso é moralmente lindo,
mas cada qual com seu destino... Bem, estou abusando de teu tempo... Preciso
ir. Quer alguma coisa de Paris?”
—
Sim, quero... Já que você vai pra França, procure lá um tal de La Fontaine e diga-lhe
que o mandei à p. que o pariu”.
Encerrada
essa digressão, que reconheço fora de lugar — talvez meio autorizada pelo tema
jurídico-literário das biografias —, eu dizia que autores e editores de
biografias podem, eventualmente, se sentir mais interessados nos detalhes
apimentados de um artista, ou político, do que no retrato fiel de uma vida
inteira. Em suma: nem todo biógrafo é santo. É um ser humano — isso diz tudo —,
com todos os riscos implícitos nessa condição. Por exemplo, considero Fernando
Morais um biógrafo sério e responsável, porque já li algumas coisas dele. E sei
que, tão sérios como ele devem ser vários outros autores. Mas sei também que a
tentação do “tcham!”— visando o aumento da vendagem dos livros — pode distorcer
a exatidão de alguns autores na descrição de qualquer vida.
O
biógrafo de uma pessoa viva deve respeitar os sentimentos de seu biografado
mais do que o faria descrevendo a vida de uma pessoa morta. O biografado morto
nada sofrerá, “na carne” — já não a tem —, com eventual difamação ou calúnia. Seus parentes, claro, podem sofrer, mas a dor
moral resultando da má biografia será menor que a dor sentida por um ser vivo, vendo-se
desmoralizado.
Há
coisas que, reveladas, podem desencadear um “envenenamento” ou dissolução de
laços familiares. Digamos — essa hipótese me foi lembrada por um jornalista
muito equilibrado, o Delci Lima — que um biógrafo, esmiuçando a vida de uma cantora
famosa, conclua, até com razoável lógica, que a biografada deve ter tido “um
caso” secreto com o sócio de seu marido, no ano tal. Digamos que uma filha adolescente
dessa artista tenha sido concebida no período do suposto romance extraconjugal.
Surgirá, na cabeça da mocinha, uma dúvida que pode levá-la a confrontar a cantora,
após ler o livro: — “Minha mãe... Gostaria que a senhora me dissesse com toda
sinceridade: eu sou realmente filha de meu pai”?
Mesmo
que a mãe diga que não houve nada, a moça pode ficar com essa dúvida martelando
na cabeça, envenenando a desejável harmonia de um lar. E o marido, talvez
traído mas sem certeza disso, já não verá a esposa com os mesmos olhos. Mesmo
que, no fundo de sua cabeça tenha lhe ocorrido alguma suspeita, depois de
publicado o livro já não poderá encarar seus amigos e conhecidos com o
desembaraço de antes. Em detalhes desse tipo, um biógrafo de peso — capaz de escrever uma ótima biografia sem
procurar o escândalo — provavelmente se absterá de relatar suas “deduções”
sobre determinados fatos íntimos. Ou indagará de seu biografado se ele autoriza
ou não publicar específicos detalhes vexatórios, principalmente aqueles que envolvam
terceiros. Afinal, a obrigação de um bom biógrafo é descrever uma vida, em
todas as suas dimensões, sem especial ênfase em mostrar o lado vergonhoso do
biografado.
A
mídia, recentemente, exibiu uma lista de acadêmicos, artistas, ex-magistrados e
intelectuais opinando que os autores e editores podem publicar biografias sem
qualquer consideração pelo que acontecerá com a reputação do biografado. A
justificativa é que, se o autor mentiu, ele poderá ser depois responsabilizado.
Usualmente na área cível. Pagará uma indenização, se falseou os fatos.
Esse
ponto de vista, totalmente permissivo, desconhece dois fatos elementares. O primeiro
é que o biógrafo tanto pode ser um admirador quanto um inimigo, ou invejoso, do
biografado. Se há empatia, a biografia será favorável. Se houver antipatia, ou
mesmo ódio, a vida será descrita de modo oposto. Mesmo as coisas boas,
realizadas pelo biografado odiado, são descritas como “interesseiras”,
demagógicas, apenas visando enganar e obter votos. Já li biografias de uma mesma
pessoa em que ele é anjo, ou demônio, conforme a disposição do escritor. Quando
o biografado está morto, a liberdade do escritor, como já disse, é bem maior. E
nada impede que, nestes tempos de cérebros à venda, um bom redator seja pago
para escrever uma biografia direcionada para desmoralizar um desafeto ainda
vivo.
O
segundo fato, a aconselhar a intromissão do dedo do juiz — liminarmente, por
solicitação do biografado —, está na longa demora do trânsito em julgado de uma
decisão judicial em pedidos de indenização por dano moral. Como nosso sistema
recursal permite infindáveis recursos, as ações podem demorar vários anos, nos
quais a reputação do biografado poderá ser corroída injustamente.
Alguém
poderá dizer que não cabe a qualquer juiz o direito de decidir, liminarmente,
se uma biografia é ou não “bem intencionada”, algo muito subjetivo. Queiramos,
ou não, a Justiça é a única solução, nessas difíceis questões, em que
confrontam-se direitos opostos, de igual hierarquia. Por exemplo, a liberdade é
um importante direito humano, mas não impede a prisão de uma pessoa que
afrontou a lei e foi julgada e condenada por isso. Nas condenações por dano
estritamente moral ninguém pode negar a atuação do subjetivismo do julgador.
“Alguém”, no caso um profissional, um juiz, deve decidir a respeito.
Como
já disse, é fácil opinar, em tese, pela irrestrita liberdade de biografar, quando
o problema não é com ele. Se um ministro, agora aposentado, de qualquer
prestigiado tribunal for descrito como fortemente suspeito de ter vendido decisões,
quando em atividade, é “líquido e certo’ que entrará na justiça pedindo,
urgente, uma liminar de apreensão da biografia alegadamente mentirosa. Nessa
hora não vai sustentar que a liberdade de escrever é irrestrita. Obviamente não
vai ajuizar uma ação ordinária por danos morais que demorarão anos para
terminar.
O
mesmo acontece com qualquer acadêmico de entidade científica ou literária. Se
um biógrafo aparece, em livro, dizendo que um acadêmico literário foi eleito
porque bajulava, pressionava, presenteava e chantageava seus futuros pares, ou
que pagava, regiamente, a um hábil e desconhecido redator para escrever “seus
livros”, esse acadêmico não se absterá de “cercear a manifestação de
pensamento”, pedindo a apreensão liminar dos exemplares, antes que sua
reputação fique arruinada, talvez para sempre. O mesmo ocorreria com um premiado cientista
“Nobel”, dado pelo biógrafo como ladrão da descoberta de outro cientista mais
obscuro.
Enfim,
a única maneira, penso, de conciliar os referidos interesses conflitantes está
no seguinte caminho: 1) o autor que pretende escrever uma biografia deve, de
preferência, externar ao futuro biografado, seu interesse em escrever sua vida;
2) se o biografado não quiser conversa, o biógrafo escreverá seu livro como bem
quiser, mas terá que, antes de imprimi-lo em grande escala, mandar um “boneco”
do futuro livro, ou cópia dos originais, para exame do biografado, concedendo-lhe
o prazo de um mês para leitura e contestações sobre pontos que considera
inverídicos ou prejudiciais à reputação de terceiros; 3) se o autor concordar
com o biografado, reduzirão esse acordo a escrito, que terá de ser obedecido
pelo autor; 4) impresso o livro, o autor, antes de distribuí-lo comercialmente,
enviará três exemplares ao biografado, para exame no prazo de 15 dias. Isso,
porque o livro impresso poderia estar, eventualmente, em desacordo com o
combinado; 5) decorridos os 15 dias, sem respostas, o autor pode publicar sua
obra.
As
regras sugeridas acima, ou assemelhadas, diminuiriam demandas futuras, com
gasto inútil das editoras quando edições inteiras são apreendidas e depois as
ações se arrastam na justiça. O prejuízo pode ser considerável e tumultuado,
com a busca de exemplares em livrarias e bancas de jornais. Essa “conversa”
prévia entre biógrafos e biografados seria útil para ambas as partes e também
para o público. O biografado pode ter praticado um ato aparentemente feio mas
por um motivo nobre, desconhecido do biógrafo. Se publicado alguns fatos desse
tipo, na biografia, o biógrafo não terá coragem de fazer, depois, declarações
na imprensa pedindo desculpas pelo que escreveu. Isso levaria seu livro, e ele
mesmo, ao descrédito.
Se
a utilidade maior das biografias é revelar a verdade ao público, essa verdade
sairá mais limpa, pura, ouvindo-se também sua “fonte” maior, antes de publicado
o livro: o biografado. Uma espécie de “contraditório”, ou “legítima defesa no
campo moral” antes dos livros serem distribuídos.
Obviamente,
o autor pode preferir publicar o que quiser, sem tentar consultar o biografado,
mas não terá o direito, depois de impresso o livro, de reclamar quando a edição
inteira for apreendida liminarmente, seguindo-se uma longa demanda discutindo
indenizações. E o público leitor sofrerá o prejuízo da falta de informação de
algo que o interessa muito: a vida dos famosos, nem sempre tão felizes, como se
pensa.
Renovando
minhas desculpas pelo palavrão da Sra. Formiga, na fábula acima atualizada,
fica aqui mais uma opinião, entre muitas, sobre o controvertido tema.
Observo,
finalmente — algo que deveria ter dito antes —, que o artigo 20 do Código Civil
peca pela falta de clareza. Parece ser resultado de um esforço de conciliação
entre posições bem opostas na Comissão encarregada de redigir o Código. Para
conseguir a concordância das duas posições, restou um texto dúbio. A
demonstração dessa dubiedade exigiria vários parágrafos, encompridando este já
extenso artigo.
(28-12-2013)