domingo, 29 de dezembro de 2013

Considerações sobre biografias não autorizadas


                   Para poupar o precioso tempo do leitor, esclareço que este artigo conclui que não existe  direito absoluto nesse tema. Nem do autor publicar biografias devastadoras, nem da pessoa famosa proibir totalmente sua biografia, sem fundamentar razoavelmente, em juízo, o porque da sua proibição. Somente a Justiça, caso por caso, pode decidir a respeito, inclusive em sede de liminar. Isso porque há proteção constitucional de dois direitos antagônicos. Quando dois direitos, de força igual, colidem, somente o Judiciário está autorizado a “dosar”, os interesse em disputa, visando o bem comum. E não se alegue que tal solução irá sobrecarregar o Judiciário porque são raras as demandas relacionadas com biografias de pessoas famosas. As não-famosas não atraem biógrafos.

Essa “dosagem” legal na convivência de direitos opostos é sugerida no presente texto, com os necessários retoques e complementos que o legislador, ou a jurisprudência, entender mais conveniente, após maduro debate. E já esclareço, de antemão, que é absurda a sugestão de que o autor pode publicar qualquer biografia, com o conteúdo que quiser, respondendo depois, em juízo, pelas eventuais deformações da verdade. Isso equivale à permissão de esfolar vivo, moralmente, um biografado e conceder a ele o vago direito de — muitos anos depois —, receber, talvez metaforicamente, do “esfolador”, a indenização para a recuperação da antiga reputação. Todos conhecem a impossibilidade de recolher  as plumas espalhadas pelo vento. 

O dilema tem sido muito discutido na mídia recente e parece impossível de ser solucionado, juridicamente, de modo a conciliar tanto a liberdade de expressão e informação quanto o direito de preservar a intimidade. Mas para tudo, na Justiça, existe, se não uma “solução”, pelo menos uma “decisão”: “procedente” ou “improcedente”. Não existe “empate” na justiça. O problema das biografias não autorizadas é que por trás dos argumentos verbalizados — estritamente lógicos, jurídicos e morais —, existem os interesses pessoais, bem mais atuantes das pessoas envolvidas. Uma coisa é opinar, em tese. Outra, muito diferente, é decidir quando o caso fere a sensibilidade de uns e os variados interesses de outros.

 Os biografados, principalmente quando artistas famosos — os preferidos por autores de best-sellers — querem ser conhecidos pelo lado excitante, atraente, brilhante, de suas vidas; não pelo lado desagradável, vergonhoso, ou até mesmo eventualmente ilegal.                           

Por outro lado, o biógrafo está — ou pode estar —, quase exclusivamente interessado em explorar o lado desfavorável do biografado, principalmente na sua vida romântica, sentimental e sexual. Relatos “demolidores” atraem mais leitores que a descrição de vidas “certinhas”. Isso porque os leitores, por melhores que sejam, sempre têm dentro de si aquele velho instinto das antigas “comadres” — antes da televisão —, que passavam horas atrás das cortinas de suas casas vigiando o comportamento das vizinhas mais “faladas” para depois compartilharem suas estimulantes “descobertas” com as amigas. Compensavam a falta de aventura e excitação de suas disciplinadas vidas com o doce prazer oriundo da desmoralização das “sem-vergonhas”. Compreende-se essa tendência, porque o sofrimento causado por certas abstinências precisa ser recompensado com alguma forma de satisfação. 

Sobre essa forma de recompensa peço licença para uma digressão, gaiata e quase involuntária, neste ensaio — juridicamente sério —, aproveitando o descontraído espírito natalino. Trata-se de uma anedota, de fundo psicanalítico, que bem retrata a indignação de algumas raras — “raras!”, ouviram bem? — mulheres de mais idade que, na dúvida quanto à utilidade, ou recompensa, de um passado irrepreensível, se perguntam se não exageraram nas próprias restrições. Como ex-juiz adianto que fizeram bem em se dominar porque a violação agradável de certas regras morais só dão certo, quando dão, com pessoas famosas.   

Todos conhecem a fábula de Jean de La Fontaine, “A cigarra e a formiga”. Segundo esse poeta francês — falecido em 1695, autor de “Fábulas de Esopo” —, a formiga vivia só para trabalhar e economizar, enquanto a cigarra, sua vizinha, só tocava viola e cantava. Como agora os tempos são outros, peço licença para atualizar e “humanizar” a moral da história dizendo que a formiga varria, lavava, passava, cozinhava, fazia horas extras no trabalho, cuidava da sua hortinha e economizava cada centavo ganho visando uma velhice sem privações. Ficara viúva ainda jovem, era atraente, mas rejeitava aproximações de formigões mal intencionados. 

Dona Formiga tinha uma vizinha, a Srta. Cigarra, que era o oposto. Passava a vida cantando e tocando violão, despreocupada com o futuro. Namoradeira, fazia o que lhe dava na telha. Ouvindo a leviana cantando, horas e horas, a formiga sempre pensava: “ — Essa cabeça de vento ainda vai se arrepender... Chegará o triste dia em que vai me procurar, pedindo um prato de comida. Aí eu lhe direi: — “Você passou a vida cantando e tocando violão, enquanto eu só trabalhava e economizava. Agora que chegou o inverno da vida, vem me pedir ajuda? Já que você tocava violão tão bem, agora dance! E fecharei a porta na cara dela!”

Ainda segundo a fábula — adaptada aos tempos modernos  —, passado um longo tempo sem ver a cigarra, a formiga, cada vez mais cansada e envelhecida, varria, no meio da tarde, a frente de sua humilde casinha. Subitamente, um  reluzente Mercedes estacionou em frente. O motorista desceu, solícito, para abrir a porta da nobre passageira. E quem é que sai do automóvel? A Srta. Cigarra, a própria. Bronzeada, corpo sarado, conservado com vitaminas, cremes caros e exercícios na academia.  Seus dedos estão cheios de anéis e alguns colares de ouro confirmam a riqueza da portadora.

Vendo a Sra. Formiga tão desgastada pelo trabalho, a Srta. Cigarra disfarça o susto e exclama: — “Que prazer revê-la, minha velha amiga! Você está ótima! E sempre trabalhando, manejando, com arte, a fiel vassoura... Parei somente para lhe dar um abraço, fiz questão... Mas não posso me demorar porque estou indo agora para o aeroporto. Vou a Paris, em primeira classe. Cantarei no Théâtre des Champs-Elysées, na Ópera de Paris, no Palais Garnier... e nem mais lembro onde, porque isso é com meu marido, que é também meu empresário. Um “gato” de olhos verdes. A cara do Alain Delon aos 25 anos. Ele é vinte anos mais novo e me adora! E não é por interesse, não, porque ele é puro fogo! Mas nem tudo são flores! Há o lado horrível, as operações plásticas, os ensaios, as viagens, as dúvidas na escolha das joias, a guerrilha jurídica com a insaciável Receita Federal. Mas vou lhe contar um segredo: há dias em que sinto inveja dessas vidas simples como a sua... A nobreza da sua humildade, manejando a vassoura, o vestido desbotado, as rugas corajosas, sem disfarce. Isso é moralmente lindo, mas cada qual com seu destino... Bem, estou abusando de teu tempo... Preciso ir. Quer alguma coisa de Paris?” 

— Sim, quero... Já que você vai pra França, procure lá um tal de La Fontaine e diga-lhe que o mandei à p. que o pariu”. 

Encerrada essa digressão, que reconheço fora de lugar — talvez meio autorizada pelo tema jurídico-literário das biografias —, eu dizia que autores e editores de biografias podem, eventualmente, se sentir mais interessados nos detalhes apimentados de um artista, ou político, do que no retrato fiel de uma vida inteira. Em suma: nem todo biógrafo é santo. É um ser humano — isso diz tudo —, com todos os riscos implícitos nessa condição. Por exemplo, considero Fernando Morais um biógrafo sério e responsável, porque já li algumas coisas dele. E sei que, tão sérios como ele devem ser vários outros autores. Mas sei também que a tentação do “tcham!”— visando o aumento da vendagem dos livros — pode distorcer a exatidão de alguns autores na descrição de qualquer vida. 

O biógrafo de uma pessoa viva deve respeitar os sentimentos de seu biografado mais do que o faria descrevendo a vida de uma pessoa morta. O biografado morto nada sofrerá, “na carne” — já não a tem —, com eventual difamação ou calúnia.  Seus parentes, claro, podem sofrer, mas a dor moral resultando da má biografia será menor que a dor sentida por um ser vivo, vendo-se desmoralizado.

Há coisas que, reveladas, podem desencadear um “envenenamento” ou dissolução de laços familiares. Digamos — essa hipótese me foi lembrada por um jornalista muito equilibrado, o Delci Lima — que um biógrafo, esmiuçando a vida de uma cantora famosa, conclua, até com razoável lógica, que a biografada deve ter tido “um caso” secreto com o sócio de seu marido, no ano tal. Digamos que uma filha adolescente dessa artista tenha sido concebida no período do suposto romance extraconjugal. Surgirá, na cabeça da mocinha, uma dúvida que pode levá-la a confrontar a cantora, após ler o livro: — “Minha mãe... Gostaria que a senhora me dissesse com toda sinceridade: eu sou realmente filha de meu pai”? 

Mesmo que a mãe diga que não houve nada, a moça pode ficar com essa dúvida martelando na cabeça, envenenando a desejável harmonia de um lar. E o marido, talvez traído mas sem certeza disso, já não verá a esposa com os mesmos olhos. Mesmo que, no fundo de sua cabeça tenha lhe ocorrido alguma suspeita, depois de publicado o livro já não poderá encarar seus amigos e conhecidos com o desembaraço de antes. Em detalhes desse tipo, um biógrafo de peso  — capaz de escrever uma ótima biografia sem procurar o escândalo — provavelmente se absterá de relatar suas “deduções” sobre determinados fatos íntimos. Ou indagará de seu biografado se ele autoriza ou não publicar específicos detalhes vexatórios, principalmente aqueles que envolvam terceiros. Afinal, a obrigação de um bom biógrafo é descrever uma vida, em todas as suas dimensões, sem especial ênfase em mostrar o lado vergonhoso do biografado.

 Li, recentemente, na imprensa, que no nordeste um autor escreveu uma biografia de Lampião dizendo que o mesmo era gay. Uma neta do famoso fora-da-lei entrou na justiça requerendo a proibição da distribuição, provavelmente dizendo que isso não era verdade. Não li os autos, e desconheço detalhes, mas a neta conseguiu liminar. Não sei se essa decisão foi revertida, mas se à neta do notório cangaceiro essa “característica” — alguns anos atrás vexatória entre os nordestinos — lhe parecia  inverídica, era seu direito reagir. Mas somente com a leitura do livro, ou longos trechos — certamente feita pelo juiz — é que seria possível chegar a uma conclusão mais segura sobre a intenção do autor.

A mídia, recentemente, exibiu uma lista de acadêmicos, artistas, ex-magistrados e intelectuais opinando que os autores e editores podem publicar biografias sem qualquer consideração pelo que acontecerá com a reputação do biografado. A justificativa é que, se o autor mentiu, ele poderá ser depois responsabilizado. Usualmente na área cível. Pagará uma indenização, se falseou os fatos.

Esse ponto de vista, totalmente permissivo,  desconhece dois fatos elementares. O primeiro é que o biógrafo tanto pode ser um admirador quanto um inimigo, ou invejoso, do biografado. Se há empatia, a biografia será favorável. Se houver antipatia, ou mesmo ódio, a vida será descrita de modo oposto. Mesmo as coisas boas, realizadas pelo biografado odiado, são descritas como “interesseiras”, demagógicas, apenas visando enganar e obter votos. Já li biografias de uma mesma pessoa em que ele é anjo, ou demônio, conforme a disposição do escritor. Quando o biografado está morto, a liberdade do escritor, como já disse, é bem maior. E nada impede que, nestes tempos de cérebros à venda, um bom redator seja pago para escrever uma biografia direcionada para desmoralizar um desafeto ainda vivo. 

O segundo fato, a aconselhar a intromissão do dedo do juiz — liminarmente, por solicitação do biografado —, está na longa demora do trânsito em julgado de uma decisão judicial em pedidos de indenização por dano moral. Como nosso sistema recursal permite infindáveis recursos, as ações podem demorar vários anos, nos quais a reputação do biografado poderá ser corroída injustamente. 

Alguém poderá dizer que não cabe a qualquer juiz o direito de decidir, liminarmente, se uma biografia é ou não “bem intencionada”, algo muito subjetivo. Queiramos, ou não, a Justiça é a única solução, nessas difíceis questões, em que confrontam-se direitos opostos, de igual hierarquia. Por exemplo, a liberdade é um importante direito humano, mas não impede a prisão de uma pessoa que afrontou a lei e foi julgada e condenada por isso. Nas condenações por dano estritamente moral ninguém pode negar a atuação do subjetivismo do julgador. “Alguém”, no caso um profissional, um juiz, deve decidir a respeito.

Como já disse, é fácil opinar, em tese, pela irrestrita liberdade de biografar, quando o problema não é com ele. Se um ministro, agora aposentado, de qualquer prestigiado tribunal for descrito como fortemente suspeito de ter vendido decisões, quando em atividade, é “líquido e certo’ que entrará na justiça pedindo, urgente, uma liminar de apreensão da biografia alegadamente mentirosa. Nessa hora não vai sustentar que a liberdade de escrever é irrestrita. Obviamente não vai ajuizar uma ação ordinária por danos morais que demorarão anos para terminar. 

O mesmo acontece com qualquer acadêmico de entidade científica ou literária. Se um biógrafo aparece, em livro, dizendo que um acadêmico literário foi eleito porque bajulava, pressionava, presenteava e chantageava seus futuros pares, ou que pagava, regiamente, a um hábil e desconhecido redator para escrever “seus livros”, esse acadêmico não se absterá de “cercear a manifestação de pensamento”, pedindo a apreensão liminar dos exemplares, antes que sua reputação fique arruinada, talvez para sempre.  O mesmo ocorreria com um premiado cientista “Nobel”, dado pelo biógrafo como ladrão da descoberta de outro cientista mais obscuro.

Enfim, a única maneira, penso, de conciliar os referidos interesses conflitantes está no seguinte caminho: 1) o autor que pretende escrever uma biografia deve, de preferência, externar ao futuro biografado, seu interesse em escrever sua vida; 2) se o biografado não quiser conversa, o biógrafo escreverá seu livro como bem quiser, mas terá que, antes de imprimi-lo em grande escala, mandar um “boneco” do futuro livro, ou cópia dos originais, para exame do biografado, concedendo-lhe o prazo de um mês para leitura e contestações sobre pontos que considera inverídicos ou prejudiciais à reputação de terceiros; 3) se o autor concordar com o biografado, reduzirão esse acordo a escrito, que terá de ser obedecido pelo autor; 4) impresso o livro, o autor, antes de distribuí-lo comercialmente, enviará três exemplares ao biografado, para exame no prazo de 15 dias. Isso, porque o livro impresso poderia estar, eventualmente, em desacordo com o combinado; 5) decorridos os 15 dias, sem respostas, o autor pode publicar sua obra. 

As regras sugeridas acima, ou assemelhadas, diminuiriam demandas futuras, com gasto inútil das editoras quando edições inteiras são apreendidas e depois as ações se arrastam na justiça. O prejuízo pode ser considerável e tumultuado, com a busca de exemplares em livrarias e bancas de jornais. Essa “conversa” prévia entre biógrafos e biografados seria útil para ambas as partes e também para o público. O biografado pode ter praticado um ato aparentemente feio mas por um motivo nobre, desconhecido do biógrafo. Se publicado alguns fatos desse tipo, na biografia, o biógrafo não terá coragem de fazer, depois, declarações na imprensa pedindo desculpas pelo que escreveu. Isso levaria seu livro, e ele mesmo, ao descrédito. 

Se a utilidade maior das biografias é revelar a verdade ao público, essa verdade sairá mais limpa, pura, ouvindo-se também sua “fonte” maior, antes de publicado o livro: o biografado. Uma espécie de “contraditório”, ou “legítima defesa no campo moral” antes dos livros serem distribuídos.

Obviamente, o autor pode preferir publicar o que quiser, sem tentar consultar o biografado, mas não terá o direito, depois de impresso o livro, de reclamar quando a edição inteira for apreendida liminarmente, seguindo-se uma longa demanda discutindo indenizações. E o público leitor sofrerá o prejuízo da falta de informação de algo que o interessa muito: a vida dos famosos, nem sempre tão felizes, como se pensa. 

Renovando minhas desculpas pelo palavrão da Sra. Formiga, na fábula acima atualizada, fica aqui mais uma opinião, entre muitas, sobre o controvertido tema. 

Observo, finalmente — algo que deveria ter dito antes —, que o artigo 20 do Código Civil peca pela falta de clareza. Parece ser resultado de um esforço de conciliação entre posições bem opostas na Comissão encarregada de redigir o Código. Para conseguir a concordância das duas posições, restou um texto dúbio. A demonstração dessa dubiedade exigiria vários parágrafos, encompridando este já extenso artigo.
 

(28-12-2013)

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário