De uns tempos para cá
tenho me interessado em escrever algumas biografias resumidíssimas — na forma
de artigos postados na internet — de alguns advogados paulistas “de longo
percurso”, especialmente cultos, inteligentes, corteses e humanos. Com isso dou
vazão à minha entusiasmada mas não preponderante vocação de biógrafo amador. Se
o advogado não satisfizer algum dos requisitos acima mencionados, ele não me
interessa.
Não escrevo sobre
jovens e realmente brilhantes advogados porque eles têm uma longa vida à
frente, com tempo de sobra para confirmar o próprio valor. São talentosos, mas
só isso não basta, aguardando a confirmação do tempo. Meus “biografados”, ao
contrário, são promessas cumpridas e testadas. Mesmo que, eventualmente, venham
a sofrer algum improbabilíssimo “escorregão”, a falha será mínima e já estará
compensada com suas grandes realizações passadas.
Agrada-me o “lado do
bem” da humanidade, que prepondera largamente sobre seu oposto mas é limitado,
em número, pela ausência de oportunidades. Interessa-me mostrar o ser humano
que evoluiu, não o que retrocedeu.
Todo comportamento
humano que se destaca — no bem ou no mal — gera imitadores. Um grande “golpe na
praça”, em que seu autor saiu impune, desperta em alguns deslumbrados com
cérebro de galinha a vontade fazer igual. Vez por outra leio na mídia, sem
compreender, que moças bonitas, da classe média alta, se excitam com a proteção
amorosa de bandidos másculos e perigosos. Certamente um resíduo da herança biológica
herdada de suas tataravós das cavernas, carentes da proteção de machos ferozes
contra animais e inimigos tribais, tão ou mais perigosos que os tigres dentes-de-sabre.
Hoje os tigres são outros: insegurança financeira, drogas, dúvida sobre o que é
certo e ausência de um ideal na vida. Felizmente, o comportamento voltado para
o bem, para a ética, quando vencedor — sem isso, nada feito... —, também
estimula a fazer igual. É o lado construtivo da imitação.
Toda biografia de
destaque pode ser encarada como um capítulo formador da História. Esta se fez
mil vezes mais com atos humanos do que com fenômenos da natureza. Como seria a
História Universal sem — já mencionei essa lista em ouro texto —Alexandre,
Júlio Cesar, Napoleão, Hitler, Churchill, Stalin, Franklin Roosevelt, Ben
Gurion, Al Arafat, Gorbachev, Bin Laden e centenas de outros líderes forjadores
do mundo?
Maremotos, terremotos,
vulcões, secas, pragas e inundações têm, claro, um papel importante no
comportamento das populações, mas como não são frequentes, não se comparam, em
influência, com o permanente “terremoto humano” dos homens públicos e privados
que constantemente estão — mesmo inconscientemente — a moldar o futuro da humanidade.
E quando falo em homens públicos aí estão, claro, incluídas as corajosas mulheres
que entraram na política mas que não podem ser adjetivadas como “públicas”, por
mero preconceito verbal.
Meus “mini-biografados”,
todos brasileiros, não obstante respeitadíssimos no meio forense — até mesmo
nacionalmente —, são, no entanto, pouco conhecidos do público em geral. É por essa
razão que, embora em poucas linhas, faço — apenas por uma dever de justiça —,
pequenos retratos de alguns advogados brasileiros, de quem sou amigo mas que
não o seria se eles não tivessem tão boas qualidades.
Um deles é o Dr. Elias
Farah, que considero o jurista nacional que mais conhece o tema “ética na
advocacia”. Na teoria e na prática. Na
teoria, porque vem estudando e escrevendo livros e artigos sobre esse assunto,
desde os tempos acadêmicos na Faculdade de Direito da USP. Se não quando ainda
estudante, com seu primeiro livro “Na Academia”, nos anos 1950 — não tive
acesso a esse livro —, mas com total certeza nos livros seguintes: “Caminhos
Tortuosos da Advocacia”, “Ética do Advogado”, “Cidadania”, “Ética Profissional
do Advogado”, “Advocacia no novo Milênio”. Este último em formato original e
prático porque dividido em temas e subtemas com textos contidos em cerca de dez
linhas, escritas com máxima concisão, pesando cada palavra, como se fosse um
cientista da área biológica.
Falando em biologia,
lendo-se seus últimos artigos sobre “Direito Médico” — “Eutanásia, ortotanásia
e distanásia”, “Transplante de órgãos e tecidos humanos” e “Medicamentos –
Facilidade social de aquisição, obrigação legal de idoneidade técnica e direito
médico de sua eficácia curativa” — constantes da Revista do Instituto dos
Advogados de São Paulo, é impossível não concluir que o Dr. Farah é mais um
exemplo, entre milhares, de advogados que têm, na Medicina, uma segunda ou
igual vocação.
É impossível navegar em
certas minúcias biológicas sem uma forte afinidade com as ciências dos seres
vivos. Por sinal, conversando com alguns advogados, no decorrer de minha vida,
fiquei sabendo que muitos deles seguiram a profissão do Direito porque, de
famílias não abonadas, não podiam cursar Medicina, que exige frequência às
aulas o dia inteiro. Como eram jovens inteligentes e curiosos, acabaram
gostando do Direito, sem, no entanto, esquecer a antiga afinidade com a
Medicina. Esclareça-se que não foi o caso do Dr. Farah, cujo pai não teria
qualquer dificuldade de custear um curso de Medicina. Seu caso foi o de dupla
vocação. Bom para ele e para quem se interessa por problemas médicos
relacionados com a Bioética.
O livro “Advocacia no
novo milênio” poderia, sem favoritismo, ser considerado como uma espécie de
“bíblia” da advocacia, não só pela ênfase na Ética como também pelos conselhos
práticos sobre muita coisa, até sobre a técnica de redigir petições. Confesso
que, embora redator contumaz, tirei algum proveito de seus conselhos e
observações.
Disse, atrás, que o Dr.
Farah conhece o assunto Ética inclusive na prática. Isso porque presidiu o
Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP durante vários anos, cada caso
exigindo um exame apurado de suas peculiaridades. Foram centenas e centenas de
situações diferentes em que as noções éticas precisaram se compatibilizar com a
vida real. Esse tão longo contato com os problemas éticos da advocacia
certamente não tem similar em todo o território nacional. A quantidade de
livros — bem meditados e escritos —, a respeito do tema mais o número enorme de
anos analisando comportamentos éticos da advocacia, no Estado mais rico da
Federação — quanto mais riqueza, mais problemas... — tornam o Dr. Farah figura
impar no tema em análise.
Como todo comportamento
reiterado possibilita interpretações, arrisco dizer que o peso da ética no
nosso biografado foi tão contundente que ele preferiu não advogar em áreas — ou
areias... movediças? — em que o profissional, por mais ético que seja, é forçado
a não olhar demais para o lado negativo do cliente que o procura.
Em entrevista dada ao
jornal Tribuna do Direito, edição de maio de 2011, Dr. Farah disse que já teve
contato com todos os ramos do Direito mas acabou recusando causas criminais,
tributárias e eleitorais. Não disse o porquê da recusa. Mas é fácil encontrar,
ou presumir, a explicação. A advocacia criminal — embora interessantíssima, com
vasto conteúdo impregnado de filosofia, sociologia, psicologia, medicina,
literatura e tudo o mais relacionado com o humano — obriga o advogado a
utilizar uma ética profissional mais específica, não constante no código ético
que rege a conduta dos advogados em geral. O criminalista, convenhamos, não
pode dizer sempre a verdade. A obrigação de “veracidade”, mencionada nos
artigos 2º, II, e 6º do Código de Ética da Advocacia, é incompatível com a
advocacia criminal — em todos os países, inclusive os cultos — se o defensor quiser
defender eficazmente seu cliente — sua missão primordial. Sabendo que o acusado
fez um crime, terá ele que concordar com o promotor? Esse conflito
ético-profissional terá que esperar por muitas décadas antes de ser
solucionado.
O mesmo ocorre na área
complexa e importante da advocaca tributária.
O advogado não pode entrar nos autos já confessando ao juiz que seu
cliente sonegou tributos “mas fez isso porque os impostos são extorsivos!”,
mesmo quando isso seja a total expressão da realidade. Seu cliente nada ganhará
com tanta veracidade. Quanto ao Direito Eleitoral, trata-se de uma área que
exige forte “jogo de cintura”, e nosso descendente de libaneses tem a cintura
rígida demais. Provavelmente foi o item “obrigação de veracidade” que levou o
Dr. Farah a — talvez meio inconscientemente, porque é um tenaz defensor da
advocacia — direcionar sua atividade
para a área cível, comercial e trabalhista onde, pela natureza das cousas, não
é obrigado a relativizar o dever da veracidade.
Lendo os textos do
nosso biografado, interessei-me pelo lado mais filosófico da Ética, que eu
sempre confundia como um sinônimo perfeito de Moral. Na verdade, melhor
examinadas, Ética e Moral têm ligações recíprocas, mas não são obrigações
idênticas.
A Ética, derivada do
grego, é mais exigente consigo mesma, mais íntima e verdadeira. Estuda a real
motivação do ser humano quando decide e age, independente de sua situação
geográfica ou profissional. É o homem se auto examinando com rigor, talvez em
luta com o próprio subconsciente — sempre escravo do instinto —, que tenta
“dourar a pílula” com argumentos tendenciosos. Já a Moral é algo mais
“externo”, tem mais a ver com os costumes: do país em que reside, da profissão
que pratica, do grau de tolerância do meio social que frequenta. Eu diria que a
Moral é mais relativista e mantem um olho no que considera realmente certo e
outro olho no “o que dirão os colegas e vizinhos?”
Dou um exemplo prático
da distinção entre Ética e Moral: um brasileiro decide, por exemplo, morar no
Irã, onde ainda tem parentes. Nesse país, se a mulher comete adultério será
apedrejada até a morte. O brasileiro muda-se para lá, com a família, mas, por
tremenda infelicidade, sua mulher comete um adultério que chega ao conhecimento
da vizinhança e autoridades. Se ele seguisse a Moral — sempre relacionada aos costumes locais —
teria que se resignar em ver sua esposa morrer “lapidada”. Não obedecendo à
moral ficaria certamente “desmoralizado”, por ser um “corno sem vergonha na
cara”. Talvez tivesse que fugir para o Brasil, carregando furtivamente a esposa
caída em desgraça. No entanto, sob o ponto de vista ético — não de moral, local
—, sua atitude de proteção à adúltera, apenas evitando sua morte cruel, seria ética,
e até corajosa, assim encarada por todo o mundo ocidental. Em todas as
profissões há uma zona cinzenta entre o honesto e o desonesto. Há comportamentos
tecnicamente ilegais, desonestos, mas tolerados pelo ambiente porque “todos
fazem assim”. Todos menos uns poucos, os éticos, mais independentes, atentos à
própria consciência.
A Ética não é vista com
muito entusiasmo pela mocidade. Parece ser considerada como o “estudo fácil de
uma velharia careta de gente tímida, sem nervo que quase sempre morre pobre
porque para ela tudo é errado, pecado, etc.”
Nada mais errôneo. A Ética
é simultaneamente a antessala e a cúpula do Direito. Nações poderosas degringolaram
porque se afastaram da ética. O vasto Império Romano não foi beneficiado pelas
loucuras de Cômodo, Nero, Calígula e uma série de outros imperadores que só
obedeciam ao próprio capricho e, com o mau exemplo, estimulavam a corrupção. O Império
Britânico, mais respeitoso da ética, acabou perdendo suas colônias porque esse
sempre foi o caminho natural das comunidades humanas, buscando a liberdade. Não
obstante, conseguiu, adotando uma comportamento menos abusivo, criar a
Commonwealth of Nations, hoje composta por 53 nações. A maior parte delas
independentes mas com voluntários laços políticos com seu ex-colonizador. Outras
nações europeias colonizadores não conseguiram isso.
Dias atrás, no seu
último discurso como líder do Partido Comunista da China, Hu Jintau apresentou
o combate à corrupção como condição essencial para a sobrevivência da
organização e estabilidade política do país.
Disse ainda que “o fracasso no controle de irregularidades pode causar o
colapso do partido e a queda do Estado”. “Queda do Estado”, frise-se.
Imagine-se o afundamento ético, e
consequentemente econômico, de uma nação que, pelo natural das coisas, se
tornará a maior potência global do planeta.
Hu Jintau não exagerou.
Desprezar a ética não é algo que fique sem consequência, cedo ou tarde.
Essencialmente, a Ética é mais importante que o Direito, mesmo porque uma norma
legal só passa a existir se alguém — parlamentar ou presidente da república —
sentiu um impulso ético para que algo bom se transformasse em lei.
Presume-se que nenhuma
lei é concebida, deliberadamente, para prejudicar a sociedade, ou o país. Sem o
impulso inicial da Ética não existiria o direito positivo. E se existem leis “que
não deram certo” é porque ou alguém se enganou, em sua propositura — ou
elaboração —, ou porque as sociedades, compostas de seres vivos, têm que
evoluir segundo os passos de sua matéria-prima.
Agradeçamos, portanto,
que exista — ainda muito produtivo —, um determinado cidadão de bem, em São
Paulo, que sempre avaliou inteligentemente o valor insubstituível da Ética. Sem
ela, totalmente sem ela, provavelmente estaríamos todos mortos no caos
planetário. Isso porque o homem é simultaneamente anjo e fera. E o que refreia
esta última?
(21-11-2012)
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