Estou
acompanhando atentamente, embora em alguns momentos lutando contra o sono — sem
culpa dos oradores porque a explicação de alguns fatos exige tempo — o
julgamento da Ação Penal n. 470, no Supremo Tribunal Federal.
Felizmente
existe, hoje, uma TV- Justiça, possibilitando a qualquer cidadão ouvir os
advogados debatendo e os juízes decidindo questões importantíssimas.
Principalmente aquelas de interesse geral envolvendo direito, ética, política e
até mesmo, residualmente, rotinas financeiras.
Lembro-me
quando, vários anos atrás, aventou-se a ideia de no Brasil se criar um canal de
televisão com o fim específico de transmitir assuntos judiciários, alguns
magistrados, de impecável conduta, reprovaram a sugestão, dizendo que tal
exposição midiática teria um efeito contrário do pretendido: aproximar a
justiça do povo. Argumentavam que essa exposição acabaria desprestigiando a
própria magistratura porque a vasta maioria da população brasileira não estava
preparada, culturalmente, para entender algumas decisões que aparentemente afrontavam
o “senso comum”.
Tinham,
inicialmente, alguma razão porque há diferentes graus de “senso comum”. O senso
comum de um grande pensador, ou jurista, ou cientista, é diferente do senso
comum de uma pessoa de baixa escolaridade ou mesmo instruída, mas um tanto
desequilibrada nas suas deduções. Instrução formal e “juízo” nem sempre
coincidem. Todavia, é direito do povo saber — seja qual for sua percepção, que
pode melhorar —, como e porque os juízes decidem em tal ou qual sentido. Nossa
comunidade está hoje decepcionada — ou até mesmo horrorizada —, com determinada
jurisprudência, como é o caso de só se decretar a prisão de criminosos — quase
sempre abonados —, quando transitar em julgado sua condenação, geralmente no
STF.
A população
vê nessa jurisprudência uma “justiça de classe” porque somente réus de bom
poder aquisitivo, com residência fixa, etc., podem se dar ao luxo de percorrer,
lentamente, “quatro instâncias” para poder chegar ao órgão máximo do
Judiciário. É possível, no entanto, que essa mesma indignação popular acabe
gerando efeitos, futuramente, provocando uma alteração jurisprudencial ou legislativa
determinando que, condenado em segunda instância, o réu fique detido preventivamente
— talvez em presídios especiais,— protegido da massa carcerária rancorosa — até
o julgamento final. Essa detenção não implicaria longa espera porque todo réu
preso tem prioridade no julgamento de sua causa. Enfim, a facilidade de acesso,
visual e auditivo, da população aos debates judiciários só pode ampliar o
conhecimento geral sobre as instituições de seu país. Com isso a democracia
adquire um significado mais real.
Fugindo
das generalidades e abordando aqui o caso apelidado de “mensalão” — bastante
diferente dos demais pelo número de réus —, seria de extrema utilidade cultural,
para a coletividade, que o digno Procurador Geral, Dr. Roberto Gurgel,
respondesse — na televisão e/ou em jornais, únicas formas agora possível —, aos
argumentos apresentados ontem (6-7-12) pelo advogado do réu Marcos Valério
Fernandes, o Dr. Marcelo Leonardo. Esse defensor fez, a meu ver, a mais
contundente e enérgica defesa do próprio cliente na tarde mencionada. Despertou
a atenção dos mais indiferentes. As demais defesas, nesse primeiro dia
destinado aos advogados, foram boas mas um tanto “mornas”, por comparação, apresentando
argumentos esperáveis por parte das pessoas que acompanham o talvez mais longo
julgamento de toda a história do STF.
Dr. Marcelo Leonardo
aparentemente inovou a discussão — pelo menos para os telespectadores —, abordando
não só os enfoques fáticos já conhecidos pela mídia mas apresentando argumentos
técnicos, legais e contábeis desconhecidos da vasta maioria das pessoas que
acompanham o caso pela televisão. O enérgico advogado mencionou, com vibração,
leis e outras normas que somente um especialista pode conhecer. Obviamente,
alguns Ministros que o ouviam, Relator e Revisou, sabiam do que ele estava
falando, porque haviam estudado os autos e anexos infindáveis. Quanto aos
demais Ministros, talvez alguns ficaram surpreendidos com a tecnicidade
contábil e bancária de alguns argumentos porque não sei se tiveram tempo de ler
as milhares de folhas dos autos do processo e seus anexos periciais.
Como
o Dr. Marcelo Leonardo — provavelmente ainda ouviremos falar bastante desse
jovem advogado — argumentou com invulgar firmeza e clareza, transmitindo uma
indignação que parecia — ou era, realmente — sincera, pelo menos 98% dos que o
viram e ouviram na televisão ficaram perplexos e abalados ante tanta segurança na
menção de leis e regulamentos de natureza bancária, contábil e financeira que supostamente
isentariam Marcos Valério de qualquer crime. Milhões de telespectadores — eu,
inclusive — gostariam de ver “trocados em miúdo” e analisados seus argumentos relacionados com leis e normas
do Banco Central, e outros entidades legais. E quem melhor — pergunta-se — que
o estudioso Dr. Roberto Gurgel, para dar algumas “aulas” esclarecedoras — pela
internet ou por jornais — sobre essa legislação pouco conhecida do grande
público, mostrando ainda sua relação com a específica conduta de Marcos Valério?
Acredito
que a grande maioria das pessoas que estão acompanhando o caso já têm, mesmo
antes do início do julgamento, opinião formada, pela condenação ou absolvição,
conforme a tendência política de cada um, pouco se importando com os aspectos
mais técnicos — e justos — da argumentação do Dr. Marcelo Leonardo. Ocorre que
uma fração menor — mas não menos importante — de observadores sente-se algo
desconfortável com a dúvida que lhes brotou no espírito ouvindo argumentos —
para eles novidade — apresentados com forte aparência de indignação do advogado
já referido. — “Será que a atividade de Marcos Valério não era realmente
criminosa, conforme as normas legais e técnicas mencionadas por seu advogado,
na sua defesa oral?” — será uma pergunta que ficará no espírito de muitos.
A
forma, a vivacidade, a oratória, sempre têm peso na formação do convencimento dos
ouvintes. De qualquer ouvinte, de qualquer assunto. No caso dos Ministros do
STF, o peso da eloquência será, talvez, mínimo, mas entre os telespectadores a
impressão de veracidade do advogado pode impressionar a tal ponto que uma
condenação do cliente poderia sugerir a ideia de que houve um julgamento
superficial, do tipo “genérico”, “em bloco”, francamente político,
desinteressado da verdade dos fatos.
Houvesse,
nesse julgamento, a oportunidade da “réplica” da acusação, e da “tréplica” da
defesa, eu não escreveria o presente artigo. Mas não cabe, agora, alterar o
rito processual estabelecido para o julgamento do famoso caso porque isso
implicaria em grande retardamento. O ideal seria que o Min. Cezar Peluso
tivesse oportunidade de adiantar seu voto antes de se aposentar
compulsoriamente no dia 3 de setembro próximo. Esse processo precisa chegar a
um fim, que já tarda demais. Peluso conhece o caso, é um juiz severo, confiável
e certamente alguns réus, sentindo na alma um mau pressentimento torcem para
que algo aconteça — notadamente na forma de emperradas “questões de ordem” — de
modo a impossibilitar a prolação de seu voto. O tempo, com o prêmio da
prescrição, é sempre um aliado da defesa, nunca da acusação. E no caso de
empate dos votos a decisão é em favor dos acusados, que ainda dispõem do
conhecido “in dubio pro reo” no que se refere à prova existente nos autos.
Como
não será possível, no caso, nem réplica nem tréplica, e a argumentação do Dr.
Marcelo Leonardo — apresentada com firmeza e eloquência — pode estar ainda
vibrando e incomodando o cérebro de muitos interessados em uma decisão inteiramente
justa, fica aqui o apelo para que o Dr. Roberto Gurgel, utilizando a internet
ou jornais — onde mais? —, responda aos tópicos técnico-financeiros, e leis específicas,
salientados pela defesa de Marcos Valério. Principalmente na parte final de sua
exposição. Confesso que ouvi mas não entendi. Nunca tinha ouvido ou lido as
leis e normas citadas. Na televisão, quando focalizado, o Dr. Roberto Gurgel
parecia tomar notas do que ouvia, como profissional responsável que sempre foi.
Com base em tais notas poderá, achando isso possível, responder com
esclarecimentos que orientem alguns milhares de ouvintes interessados em um
justiça objetivamente justa.
Eu, pelo
menos, precisaria de algumas informações que não poderiam ser suficientes se
explicadas apenas em abstrato, por um contador, por exemplo, que não conhece os
autos. Tais informações técnicas precisariam ser conectadas com a conduta
concreta de Marcos Valério e pessoas que o serviam. Digo tudo isso, despertado
pela exposição do Dr. Marcelo Leonardo, porque sempre existe, em tese — apenas
em tese, insisto — a hipótese de o vibrante advogado possuir também forte
talento para a arte dramática. Todo advogado, principalmente quando atua no
júri — mas isso também vale para sustentações orais —, não pode negar que seu
sucesso não decorre apenas do conhecimento do direito. A arte da eloquência
também ajuda. Freud foi um grande psicólogo mas a Psicanálise não teria prosperado
tanto não fosse o brilhantismo e capacidade de persuasão de um grande artista
da palavra. Essa opinião não é só minha.
Consultei
o Código de Ética do Ministério Público Federal e não encontrei nenhuma
proibição inequívoca dizendo que um Procurador não possa, em artigo de jornal
ou internet, interpretar o sentido de determinadas leis e outras normas, como
aquelas referidas pelo advogado já referido, mesmo pendendo uma causa nos
tribunais. Se essa proibição — apenas ética, não legal —, existir, seria o caso
de se abrir uma exceção. Não correndo o
caso em segredo de justiça, nem estando nas mãos de outro procurador, pode o
Dr. Gurgel explicar aos leitores o alcance e o sentido de leis de interesse geral.
Principalmente no presente caso, algo anômalo — e bem intencionado —, em que
foi necessário ao STF estabelecer normas especiais para o julgamento , vetando
o direito da acusação de rebater argumentos possivelmente importantes. Ocorreu,
no caso, a violação do “direito de defesa da acusação”. É claro que para o
julgamento só valerá o que está nos autos, mas para efeito de aperfeiçoamento
da opinião pública e maior perfeição do julgamento seria conveniente um
esclarecimento pela única forma agora disponível: pela imprensa ou pela
internet. Se concedida formalmente, uma réplica, seria preciso conceder 38
tréplicas. Um deus nos acuda!
Estou
consciente de que alguém dirá que a proibição ética é absoluta, contra qualquer
“discussão” . Não será, formalmente, uma “discussão” porque esta implicaria em
diálogo presencial, que não haveria. Além do mais, vemos diariamente, na mídia,
em entrevistas e artigos, acusadores e defensores criticando tais e quais
argumentos expostos pela parte contrária. Se aceita, em forma rígida, essa
limitação a qualquer esclarecimento fora dos autos, de enfoques técnicos, resta
apenas aguardar a leitura do acórdão que julgará a Ação Penal 470, no qual os
Ministros certamente explicarão — espera-se... — a pertinência ou impertinência
das leis e normas técnicas, bancárias, mencionadas na parte final da defesa do
advogado Marcelo Leonardo. Seria, porém, melhor, repita-se, que todos os
Ministros que não puderam ler os autos e apensos, com milhares de páginas,
pudessem avaliar melhor — antes de votar —, tais leis e normas técnicas. E os
milhares ou milhões de cidadãos que acompanharam os debates na televisão também
teriam proveito com tais esclarecimentos porque, de certa forma, também
“julgam” o caso, como meros cidadãos. Juízes são, de certa forma, seus
representantes em segundo grau, porque nomeados por representantes políticos,
escolhidos pelo voto popular.
Encerrando,
peço licença para mencionar um tópico “rasteiro”, mas prático, relacionado com
sustentações orais. Meu instinto me aconselhou a não fazer este adendo, mas
“forças ocultas” da alma me impediram de parar.
Assistindo,
pela TV, as defesas dos ilustres advogados, no dia 6 de setembro, lembrei-me do
conselho prático, fisiológico, de Rui Barbosa, dado a ele mesmo, quando se
alimentava antes de fazer seus discursos no Senado. Comia pouquíssimo, ou não
comia. Não é à-toa que era magérrimo. Exposições orais complexas, após lauta
refeição, sempre ficam prejudicadas, não fazendo jus à capacidade normal do
profissional. Nutridas refeições diminuem, durante algumas horas, a clareza e o
“nervo” da exposição. A lembrança das palavras fica mais lenta ou falha
totalmente, seja qual for a capacidade normal do orador. Eu seria capaz de, se
solicitado, dizer quais os advogados que, no dia 6 último, almoçaram menos. Por sinal, quem fala horas mais tarde, mais
distante do almoço, leva alguma vantagem na clareza da exposição, só pelo
detalhe fisiológico. Os alimentos nessa altura já foram digeridos, restando a
energia normal, orgânica, para “digerir” e metabolizar apenas as ideias e os
argumentos em debate.
Obviamente,
a observação acima é indiscreta, incabível, mas mantive-a no texto porque toda
arte, inclusive a de argumentar — e de
ouvir — é formada com inúmeras variáveis, uma delas fisiológica. Certa vez,
recém-formado, fazendo defesas de júri gratuitamente, como dativo, em São
Paulo, apenas para treinar, minha cliente foi condenada — em um caso de
coautoria —, por um voto, porque eu havia exagerado na alimentação. Sentia-me
“pesado”, pouco eloquente. Um dos jurados interpretou isso, soube depois, como “falta
de convicção do advogado”. Não era falta. Era excesso de bife à parmegiana.
Minha assistida dativa — cá entre nós era culpada — na verdade foi condenada por
um bife. Meu colega de tribuna, defendendo outra ré, Dr. Antônio Augusto de
Almeida Toledo, grande orador de júri, magrinho, elétrico, vivaz — e inapetente
— conseguiu a absolvição da cliente dele também por um voto, em um caso em que,
pela mais elementar lógica, ou ambas as rés seriam condenadas ou ambas seriam
absolvidas. Um dos jurados impressionou-se indevidamente com a diferente postura
física e mental dos dois advogados. Aparência, voz e atitude influem, sim, em
todo relacionamento humano. Na política é imensa. Nos negócios, também pesa. E
será preciso lembrar que na justiça ocorre também um relacionamento humano? Se
juízes não se impressionam com belas palavras, em tom firme e preciso, pelo
menos prestam maior atenção. E. prestada maior atenção, a decisão poderá ser
diferente.
Com pedido
de perdão pela liberdade do bem-humorado aconselhamento fisiológico, não
solicitado, encerro o presente texto torcendo para que os esclarecimentos
jurídicos mencionados no corpo deste artigo sejam lidos pelo culto, tenaz e
honrado Procurador Geral da República, tendo em vista que esse julgamento está sendo
seguido por milhares de brasileiros. Códigos de Ética, de advogados e
promotores, também podem ser interpretados levando em conta as circunstâncias
especiais de casos também especiais.
(07-8-2012)
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