Essa corajosa negativa é um dos poucos casos
em que o uso do veto mostrou-se virtuoso no Conselho de Segurança.
É
afrontosa, data vênia, à inteligência
a má-fé dos EUA, Israel, França e Inglaterra quando, no Conselho de Segurança
da ONU, atendendo a interesses meramente estratégicos e políticos —
principalmente de Israel —, distorcem, de modo até infantil, o que diz a Carta
das Nações Unidas no seu Capítulo 7, artigos 41 e 42.
Os representantes de tais países partem do
pressuposto — para eles tranquilo — de que o planeta é composto de ignorantes e
semianalfabetos que nunca se darão ao trabalho de ler o que diz, claramente a
referida Carta. Ela está sendo mencionada, falsamente, como fundamento jurídico
para tirar do poder o presidente da Síria, fiel aliado político do Irã.
Derrubado o atual governo sírio, o Líbano poderá — quando isso parecer
conveniente aos interesses dos “falcões” de Netanyahu —, ser ocupado por tropas
israelenses, sem grandes receios de resistência do Hezbollah, hoje sustentado
pelo governo sírio.
Em suma, caindo Assad, sua queda será
triplamente vantajosa para o atual governo de Israel porque assim eliminará
três adversários: Hezbollah, Síria e, depois, o Irã, já em início de estrangulamento
econômico. Com uma vantagem extra, a quarta: desviar a atenção do mundo para a
necessidade da criação de um Estado Palestino. Na atual tensão de pré-guerra,
relacionado com Síria e Irã, “não há clima para conversações a respeito de uma
fronteira nítida separando Israel de um futuro Estado Palestino, não é
verdade?” Assim justificará, a diplomacia de Netanyahu, sua “falta de tempo e
timing” para as conversas com a Autoridade Palestina.
Deposto Bashar Assad do poder, a confusão
política que se seguirá no país, por meses ou anos — como vem ocorrendo no
Egito e na Líbia —, o Irã ficará ainda mais isolado e enfraquecido na sua
pretensão de conter a sede de predomínio regional de Israel, detentor de enorme
poder militar, convencional e atômico. Sob a desculpa do medo de um ataque
nuclear iraniano — praticamente impossível porque, além de remoto, nesse ataque
morreriam também, pela proximidade física, milhares de árabes palestinos — o
governo israelense espera tirar algum forte proveito da “Primavera árabe”,
acreditando, com razão, que, “caçado” Bashar Assad, o governo sírio que o
suceder será diferente do atual, pelo menos com respeito ao Irã. Se Israel
apoiar firmemente os revoltosos exigirá depois alguma retribuição política por
essa ajuda.
O Capítulo 7 da
Carta da ONU trata da “Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de
Agressão” — entre países, é evidente! —, não entre governo e revoltosos dentro
de um mesmo país. Quando no artigo 40 fala em “partes interessadas” refere-se,
obviamente a “países”, não a forças políticas internas, como é o caso da Síria
e foi também o caso da Líbia. Quando aviões da OTAN deram apoio aéreo e
assistência técnica, no solo, aos revoltosos líbios a Líbia não estava em
guerra, ou ameaçando invadir país algum. No entanto, foi atacada, em parte
obliquamente, com o pretexto de defesa de direitos humanos. Mesmo as aspirações
mais nobres podem ser desvirtuadas pelos interesses políticos.
É certo que Kadafi
era um ditador, mas o fato de um país qualquer ser governado por um ditador não
autoriza outros países a depô-lo. Mesmo porque não é impossível que a população
local esteja até satisfeita com um governo forte, talvez temendo que quem o
suceder, apoiado por outras potências, torne as coisas piores, mesmo sob a capa
da democracia. Por acaso, pergunta-se, houve alguma pesquisa de opinião
pública, na Síria — realizada por entidade internacional — para se saber qual o
grau de aprovação ou desaprovação de Bashar Assad? Não houve.
Vamos supor que
mais da metade da população síria apoiasse — antes dos conflitos internos e
consequentes combates — o governo de Assad. Qual a legitimidade de outras
nações para congelar recursos financeiros sírios depositados em outros países?
Imaginemos — apenas
imaginemos —, que em Israel o governo se tornasse ditatorial, por tal ou qual
motivo — inclusive por razões de segurança — e parte de sua população de
rebelasse contra isso, em manifestações de rua, seguidas de repressão.
Pergunta-se: caberia a outros países, sobretudo árabes, “estrangular” Israel
impedindo seu comércio exterior e ameaçando sua existência com intervenções
bélicas? Qualquer jurista israelense diria que essas intervenções, econômicas
ou militares seriam uma violação de sua soberania. É isso o que vem acontecendo
na Síria, com falsa leitura de artigos existentes na Carta das Nações Unidas.
Houve uma revolta
de parte — parte, apenas — da população síria contra um regime ditatorial que
vinha desde o tempo do pai de Bashar Assad? Houve. Mas não seria censurável o
governo reprimir violentamente tais manifestações? Seria, se essas
manifestações fossem realmente pacíficas. Para saber isso seria preciso gravar
o conteúdo da maioria dos discursos. Estourado o conflito físico entre
revoltosos e governo, houve mortes de ambos os lados, às centenas.
Na Guerra de
Secessão Americana, em que o Sul pretendia separar-se do Norte, houve uma
grande carnificina, com cerca de 600.000 mortos. O conflito durou 5 anos, de
1861 a 1865 e o país ficou em ruínas. Não obstante, outros países não se intrometeram
na carnificina, respeitando a soberania local. Pensaram: “Cabe aos americanos
resolver se a Nação deve ser dividida em duas partes”. Esse respeito pela
soberania está sendo violentado hoje quando se tenta esmagar os dois únicos
países — Síria e Irã — que procuram conter o predomínio de uma potência atômica
que decidiu manter o monopólio nuclear na região e infelizmente está
sendo conduzida com arrogância pelo seu atual governo. Preciso mencionar nomes?
Imagine-se, ainda,
que quando da eleição de George W. Bush —, vista como tendenciosa a decisão da
Justiça sobre a contagem de votos na Flórida —, Al Gore, candidato democrático,
não aceitasse a derrota judicial, dizendo-a suspeita, e surgisse um confronto
interno, beirando a guerra civil, com centenas de mortes, seria lícito —
pergunta-se —, à China, com outros países, votar sanções e possíveis
intervenções armadas contra a América, sob o fundamento de evitar uma guerra
civil em solo americano? Qualquer americano diria que isso seria um tremendo
absurdo. No entanto é o que se pretende fazer agora com a Síria.
Em política
internacional convém sempre desconfiar das palavras dos porta-vozes dos
interessados em intervir em conflitos internos alheios. Os EUA, guardião da
democracia, nunca se interessaram por restaurar a democracia no Chile, no
Brasil, no Uruguai e na Argentina, nos chamados “anos de chumbo”. Por que?
Porque não era do “interesse americano” que governos esquerdistas se
propagassem na América do Sul, quando a União Soviética era poderosa e uma
ameaça. Sabia perfeitamente da repressão violenta dos governos militares, até
com torturas de dissidentes, mas não mexeram uma palha para derrubar tais
governos. Tudo depende do interesse do momento, não do conceito de democracia.
Esta é uma palavra de elástico significado, tanto assim que os países do leste
europeu, sob domínio de Stálin, chamavam-se “Repúblicas Democráticas”. A
Alemanha ocupada denominava-se “República Democrática Alemã”.
Embora eu seja a
favor de um futuro governo mundial, em que cada país ceda uma parcela de sua
soberania à um governo mundial central — evitando a utilização da força para
solucionar pendências entre estados — o fato inescondível é que hoje, na atual
conformação jurídica do mundo, ainda vigora a soberania. Isto é, cabe a cada
país decidir, ele mesmo, como deve ser sua estrutura de governo. Se, por mero
exemplo, o Brasil decidisse restaurar a monarquia, ou se tornar socialista, ou
de extrema direita, os demais países não poderiam impor sanções contra essa
pretensão porque a soberania está no seu povo, não na opinião de outros povos,
ou governos. Tudo isso que estou dizendo aqui é elementar. Mas é esse
“elementar” que está sendo violado agora no Conselho de Segurança.
O que mais espanta
nessa deformação do que está escrito na Carta da ONU é que tais interpretações
brotam da boca de diplomatas com longos anos de estudo (e sofismas). A atual
representante americana no Conselho de Segurança, Susan Rice — não é parente de
Condoleezza Rice — chegou a dizer que, votada, pelo Conselho de Segurança, a
aplicação do art. 42 da Carta — que permite a intervenção militar na Síria —,
essa intervenção não ocorreria. Seria mera ameaça, tornando “paranóico” — nas
palavras da ilustre intérprete da Carta da ONU —, o argumento russo contra a
aprovação de novas sanções. Pergunta-se: havendo autorização para a intervenção
armada, por que supor que essa autorização não será usada, depois de tanto
esforço diplomático para sua aprovação?
Com ou sem
legalidade internacional, tudo indica que Bashar Assad será deposto, talvez
“caçado” à maneira sangrenta de Kadafi, se não fugir a tempo. Por inabilidade
dele — um homem com pouco talento político, que deveria ter insistido, com o
pai, no direito de seguir a profissão que escolhera, de médico oftalmologista
—, a situação chegou a um ponto que não comporta mais solução diplomática. A
impressão que ele dá é que tem a tendência de delegar tarefas desagradáveis,
entre elas a de lidar com rebeldes. A delegação de responsabilidades, na chefia
de governos, é inevitável mas pode ser fatal — se usada sem critério — porque
os delegados podem abusar na violência, na convicção de que não serão eles,
pessoalmente, que sofrerão as más-consequências de suas decisões.
A onda contra Bashar Assad avolumou-se demais e,
em política, o que vale é a versão, não o fato. Inclusive na política
internacional, esse paraíso, ou zoológico, de sofismas. Quando um navio começa
a afundar, ratos e passageiros tratam de fugir. Se a queda é quase certa, vale
a pena mudar de lado porque com isso sempre haverá um emprego ou posição
garantida no grupo que sobe. Com ou sem razão jurídica é mais do que provável
que Assad será destronado e a criação de um Estado Palestino adiada para um
longínquo futura incerto.
Para que o leitor
tire suas próprias conclusões sobre os artigos pertinentes da Carta da ONU,
relacionados com a verdadeira guerra civil que ocorre na Síria, transcrevo
abaixo os artigos que elucidam a matéria.
“AÇÃO RELATIVA A AMEAÇAS À PAZ, RUPTURA DA PAZ
E ATOS DE AGRESSÃO.
“ARTIGO 39 - O Conselho de Segurança determinará a
existência de qualquer ameaça à paz,
ruptura da paz ou ato de agressão, e fará
recomendações ou decidirá que medidas deverão ser
tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de
manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais.
“ARTIGO 40 - A fim de evitar que a situação se agrave,
o Conselho de Segurança poderá, antes
de fazer as recomendações ou decidir a respeito das
medidas previstas no Artigo 39, convidar as
partes interessadas a que aceitem as medidas
provisórias que lhe pareçam necessárias ou
aconselháveis. Tais medidas provisórias não
prejudicarão os direitos ou pretensões , nem a
situação das partes interessadas. O Conselho de
Segurança tomará devida nota do não
cumprimento dessas medidas.
“ARTIGO 41 - O Conselho de Segurança decidirá sobre as
medidas que, sem envolver o
emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para
tornar efetivas suas decisões e poderá
convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais
medidas. Estas poderão incluir a
interrupção completa ou parcial das relações
econômicas, dos meios de comunicação
ferroviários, marítimos, aéreos , postais,
telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie
e o rompimento das relações diplomáticas.
“ARTIGO 42 - No caso de o Conselho de Segurança
considerar que as medidas previstas no
Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas,
poderá levar e efeito, por meio de
forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar
necessária para manter ou restabelecer a
paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá
compreender demonstrações, bloqueios e
outras operações, por parte das forças aéreas, navais
ou terrestres dos Membros das Nações
Unidas.
“ARTIGO 43 - 1. Todos os Membros das Nações Unidas, a
fim de contribuir para a manutenção
da paz e da segurança internacionais, se comprometem a
proporcionar ao Conselho de
Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo
ou acordos especiais, forças
armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos
de passagem, necessários à manutenção da
paz e da segurança
internacionais.”
(23-7-2012)
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