Em mês de férias é permissível tangenciar
temas mais esportivos, mas nem por isso menos sérios.
Para quem não sabe, UFC é a sigla do
Ultimate Fight Championship — em tradução livre, “Supremo Campeonato de Lutas”.
O MMA significa “Mixed Martial Arts” — “Artes Marciais Mistas”. Desconheço a
formatação jurídica subjacente a essas duas siglas. Presumo que o UFC é o nome
da empresa e a MMA descreve as lutas exibidas no UFC. Lutas que poderíamos,
genericamente, denominar de “vale-tudo de verdade”.
Seus praticantes trocam pontapés, socos,
joelhadas, cotoveladas, estrangulamentos, chaves de braço, de perna e tudo o
mais que não seja expressamente proibido pelas regras desse abrangente tipo de
luta, criado, inicialmente, para se saber qual o melhor estilo de combate corpo
a corpo. Verificou-se, no entanto, que nenhuma técnica de luta suplanta,
isoladamente, as demais. Depende muito do lutador, de sua tenacidade, ambição,
entusiasmo, capacidade de improvisação, cálculo no dosar o próprio esforço —
para não se cansar antes do tempo — e intuição sobre o que o adversário
pretende fazer. Qualidades morais e mentais geralmente associadas,
equivocadamente, apenas a profissões intelectualizadas. Há lutadores
fortíssimos mas totalmente previsíveis e outros, não tão musculosos mas
verdadeiras caixas de surpresas. Anderson Silva parece se enquadrar às mil
maravilhas nessa categoria.
Há, entre seus praticantes, pessoas de todos
os níveis de instrução, inclusive superior. Existe um peso pesado que foi professor
de matemática — deve estar ganhando muito mais dando pancadas do que dando
aulas. E, ao contrário do que se possa pensar vendo tanta violência, não há, na
maioria das vezes, qualquer animosidade duradoura entre os lutadores. Tanto
assim que, terminada a luta, os lutadores, ensanguentados, cara inchada,
enxergando só com um olho, se abraçam sorrindo e passando a mão, bondosamente
sobre a cabeça do outro. A chave do sucesso está no oportuno uso das variadas
formas de luta e sua adequação momentânea às forças e fraquezas do oponente.
Não é permitido morder, rasgar a boca — inserindo os dedos nas extremidades —, chutar
deliberadamente as partes genitais, enfiar o dedo nos olhos, golpear a nuca,
impedir a respiração do oponente e algumas outras restrições de ficaria
monótono aqui mencionar.
Tais regras procuram, pelo menos, diminuir,
por razões morais, práticas e econômicas — para que serve um atleta morto ou
aleijado? — a ocorrência de lesões permanentes nos atletas. Servem, também para
abrandar, ligeiramente, a impressão de selvagem primitivismo que pessoas mais
sensíveis, principalmente mulheres, sentem vendo, pela primeira vez, o sangue
escorrer nos confrontos mais violentos ou se acumulando em inchaços que lembram
bolas de pingue-pongue.
Já que falamos em assistir pela primeira
vez, é interessante saber — prova de que o ser humano acostuma-se com tudo —
que em alguns campos de concentração nazistas havia paupérrimas “boates”, com
esquálidas mulheres querendo faturar alguma coisa. Talvez o “luxo” de um pedaço
maior de pão preto, feito com trigo e serragem de madeira —, um alívio
temporário da fome antes da câmara de gás. No atual “vale tudo”, as jovens,
inicialmente, só iam aos estádios para agradar o companheiro. Com o tempo,
começaram a gostar da violência — uma tendência que não dorme, apenas cochila
no fundo do ser humano — e passaram, muitas delas, a também lutar, com
profissional e fria virulência na ânsia de não ficar “para trás” em tudo aquilo
que os homens são capazes de fazer. Pobre do marido que sequer pensa em ser
violento em casa. Se tal esporte se difundir demais entre as mulheres os
maridos mais tímidos e débeis se movimentarão para a criação das “Delegacias do
Homem”, onde encontrarão proteção contra a violência feminina.
Enfim, não obstante tais empresas exibam
lutas que se aproximam bastante dos confrontos físicos da vida real, sem combinação
de resultado — daí o atrativo que vem despertando —, três perigos rondam esses
torneios: 1) o involuntário incentivo da violência de rua, deseducador daqueles
jovens que não frequentam as academias de luta — onde são doutrinados para não
brigar — e passam a confiar apenas na violência para a solução dos problemas;
2) o afastamento, desiludido, de muitos espectadores de lutas, decepcionados
com as cenas de castigo mais sanguinolentos e, 3) a possibilidade de surgirem,
no futuro, árbitros menos escrupulosos que possam — subornados por grandes
apostadores particulares de dinheiro —, ajudar um dos atletas a ganhar.
Atividades onde se acumula muito dinheiro — e o MMA cresce rapidamente no
número de adeptos — atraem a atenção de marginais interessados em grandes
“investimentos” na forma de apostas. Isso certamente ainda não ocorreu, mas
pode vir a ocorrer, se não houver vigilância dos atuais organizadores de lutas.
O UFC certamente um dia estará em outras mãos.
Como o crime organizado tentaria fazer isso?
Interrompendo apressadamente a luta, mesmo quando o “espancado” do momento
ainda poderia reagir e finalmente vencer. Principalmente quando o “round” está
a poucos minutos de terminar. Pausa que possibilitaria ao atleta que está só
apanhando se recuperar e até vencer finalmente a luta, como já ocorreu inúmeras
vezes. Em uma luta que assisti, Brock Lesnar, um peso pesado que mais parece um
gigante de pedra, de filme — dizem que fora dos ringue é pessoa de ótima educação
—, sofreu um castigo quase inacreditável mas, salvo pelo gongo, acabou vencendo
a luta. Fosse o árbitro menos tolerante ante o castigo sofrido por Lesnar,
interrompendo a luta, Lesnar sairia derrotado do octógono.
Assisto a tais confrontos, pela televisão,
há pelo menos dez anos. Somente porque é violento? Não. Assisto porque é um
esporte “duplamente solitário”, em que o ganhar ou perder depende apenas do
próprio esforço, da autodisciplina — inclusive no sexo e na alimentação —, da capacidade
de superar o eventual desânimo, oriundo da sensação de real inferioridade
técnica ou muscular, frente a determinado adversário. Medo, nem tanto físico,
de apanhar na cara mas de sair do ringue como um derrotado — o temido rótulo
americano de “loser”—, humilhação que levará para casa. Medo não da luta em si,
mas do seu resultado. Inclusive econômico, porque suponho que a maioria dos
atletas não luta apenas por esporte.
Embora uma das funções do árbitro de ringue
seja a de preservar a integridade do atleta, há muita subjetividade envolvendo
essa preocupação. E toda subjetividade fornece desculpas para alguma eventual
desonestidade, mera simpatia ou antipatia. Conta-se que no boxe — pelo menos de
antigamente, agora não sei — um árbitro tendencioso, ou desonesto, podia desfavorecer
um lutador caído contando até dez de maneira mais rápida que qualquer cronômetro.
Nessa mesma contagem, um árbitro menos veloz, realmente neutro, chegaria apenas
ao sete ou oito segundos, o que permitiria, talvez, ao derrubado levantar-se a
tempo e finalmente vencer.
Há, também, um outro perigo rondando tais
lutas profissionais: imprudentes declarações de atletas, antes das lutas, pondo
em dúvida a isenção do juiz de ringue. Recentemente, um atleta brasileiro
temido, fortíssimo e agressivo — inclusive com as palavras —, disse, em
entrevista na TV, dias antes de luta importante, que em seu combate anterior
com o mesmo oponente, não ganhara a luta porque o adversário teria sido ajudado
pela arbitragem tendenciosa. Sendo ou não verdadeiro, o que disse, é o tipo de
coisa que não conviria externar porque a suspeita explícita pode, em tese,
acionar desfavoravelmente o inconsciente de qualquer árbitro — sempre um ser
humano —, apressando o término de uma luta, mesmo que na luta anterior desse
lutador fosse outro o árbitro. Ataques a uma categoria profissional é
usualmente sentida também como ataque pessoal.
Analogicamente, durante julgamentos
judiciais, em todos os países civilizados, não se tolera que o réu insulte seus
julgadores. Se o fizer, será logo retirado da sessão de julgamento. Seria isso
apenas arrogância judicial, porque seus julgadores seriam invariavelmente “homens
perfeitos”? Não. Essa prática, universal, existe porque sabe-se que qualquer
magistrado, quando insultado, e por mais justo que pretenda ser, terá um enorme
trabalho íntimo para “esquecer” o insulto, julgando o réu com isenção. Por
isso, o UFC e o MMA devem proibir seus atletas de emitir, em público,
julgamentos desfavoráveis aos árbitros. Ocorrendo tais ofensas, antes da
disputa — mesmo como meras “desconfianças”—, nunca se saberá depois, com
certeza, finda a luta por nocaute técnico, se a luta foi perdida pelo
“desconfiado”, porque ele estava mesmo
sem condições de reagir, ou porque o árbitro quis favorecer, com a pressa, o
atleta que socava seguidamente o “desconfiado”. Somente o árbitro que está no
ringue é que terá condições de avaliar — por estar perto, vendo as feições e o
olhar do que apanha —, se o lutador que recebe repetidos golpes está realmente
incapaz de reagir. Qualquer crítica à arbitragem deverá que ser feita depois da
luta, assim mesmo reservadamente, ouvindo-se também o árbitro. Este, mesmo
honestíssimo, não poderá funcionar confortavelmente se não se sentir visto, pelo
público e pelos lutadores, como um honesto profissional.
Quanto ao fator “sangue em excesso”, escrevi,
pouco tempo atrás — “Orelha versus cotovelo no “vale tudo” — no meu site e blog,
que as cotoveladas no rosto e crânio deveriam ser proibidas, porque ressaltam
demais o lado brutal de um esporte já, por si só, bem violento. Muito mais que
o boxe, comparativamente, hoje, um esporte até “delicado”. Cotovelos rasgam a
pele e já houve uma ocorrência, recente — apareceu no site do Terra — em que
boa parte da orelha do adversário foi decepada por um cotovelo especialmente
pontudo. A cena apareceu em filme. E penso que não é impossível que, atingindo
diretamente um olho mais saliente possa cegar parcialmente o atleta.
Sangue demais, se, por um lado, satisfaz os
fãs mais selvagens, por outro lado afasta pessoas de sensibilidade mediana,
enjoadas de tanta brutalidade. Em uma luta, também recente, envolvendo um
brasileiro de apelido “Pé grande” e Cain Velasquez — se não me engano —, a
quantidade de sangue que brotou de um ferimento na testa do brasileiro —
provocado pelo cotovelo de Cain — certamente ficou entre meio e um litro,
atrapalhando até sua visão. A cena lembrava um matadouro.
Se o inteligente empresário Dana White
consultasse os fãs do UFC e do MMA se deveria, ou não, proibir cotoveladas na
face e crânio dos lutadores, os torcedores mais sedentos de sangue diriam — o
sangue não seria deles... — que “guerra é guerra” e que se os cotovelos
existem, como os pés e as mãos, tais segmentos anatômicos podem ser utilizados,
porque “luta quem quer”. No entanto, a ala mais civilizada dos fãs dessas lutas
aplaudiria a proibição, porque há limites para tudo e outros golpes mais
“sujos” também já foram proibidos, sem perda de adeptos desse esporte. Essa proibição,
se adotada pelo UFC, não afastaria os mais fanáticos pela brutalidade, porque
se procuram apenas a violência, nenhum outro esporte atual é mais violento que
a “luta livre autêntica” do MMA.
Houve uma época, não distante, comparativamente
inocente, em que o futebol era considerado violento. Deixou de assim ser
considerado, tanto que moças já o praticam, mesmo dando a impressão de que
estão em atividade imprópria para sua anatomia. Peitões enlouquecidos,
balançando nas corridas, lembram-nos que eles foram concebidos para a
amamentação. Futuros bebês, se consultados, não aprovariam tanto desrespeito às
suas futuras mamadeiras.
Já que comparamos o futebol com o “vale
tudo”, é intrigante constatar que nunca houve — pelo que sei — caso de
torcedores fanáticos de tal ou qual lutador, vencido em uma luta, partirem para
a vingança nas ruas, agredindo o vencedor ou os torcedores do outro lutador. Assistindo
as lutas, gritam e até ficam de pé, mas, proclamado o resultado, o máximo que
ocorre, vez por outra, é um discreta vaia. Não se formam, nas ruas, grupos
armados de paus, pedras e canos, para “massacrar” os torcedores do outro
atleta. Já com o futebol isso não ocorre. Os Holligans, corintianos,
palmeirenses e torcedores dos demais clubes costumam se enfrentar nas ruas,
após decisões de importantes campeonatos. Cabeças quebradas, espancamentos
impiedosos e até homicídios ocorrem nesses encontros “de motivação esportiva”.
Como se explica essa diferença? Certamente
porque no MMA a responsabilidade pela vitória ou derrota está apenas no
lutador, um indivíduo. No futebol, a responsabilidade é difusa, o que permite a
cada torcedor fanático atribuir a tais ou quais jogadores, ao time inteiro, ou
ao técnico, a culpa pela derrota. Paradoxalmente, o MMA, com toda sua
violência, induz menos violência, fora do estádio, que o futebol, não violento
nas partidas mas selvagem após terminada a partida, a ponto de incendiar
carros, quebrar vitrinas e espancar pessoas aleatoriamente.
Termino por aqui esta minha rara incursão no
campo esportivo. Este artigo, vertido para o inglês — não por mim, que apenas
confiro — estará na internet, daqui a alguns dias. Talvez assim chegue ao
conhecimento de Dana White — um ex-pugilista de grande discernimento e coragem
para negócios — que transformou o velho e medíocre “vale tudo” no esporte que
mais cresce no mundo. Se ele decidir que convém estancar um pouco
as hemorragias oriundas do cotovelo, muita gente agradecerá.
(16-7-2012)
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