terça-feira, 17 de julho de 2012

UFC, MMA e seus perigos


Em mês de férias é permissível tangenciar temas mais esportivos, mas nem por isso menos sérios. 

Para quem não sabe, UFC é a sigla do Ultimate Fight Championship — em tradução livre, “Supremo Campeonato de Lutas”. O MMA significa “Mixed Martial Arts” — “Artes Marciais Mistas”. Desconheço a formatação jurídica subjacente a essas duas siglas. Presumo que o UFC é o nome da empresa e a MMA descreve as lutas exibidas no UFC. Lutas que poderíamos, genericamente, denominar de “vale-tudo de verdade”. 

Seus praticantes trocam pontapés, socos, joelhadas, cotoveladas, estrangulamentos, chaves de braço, de perna e tudo o mais que não seja expressamente proibido pelas regras desse abrangente tipo de luta, criado, inicialmente, para se saber qual o melhor estilo de combate corpo a corpo. Verificou-se, no entanto, que nenhuma técnica de luta suplanta, isoladamente, as demais. Depende muito do lutador, de sua tenacidade, ambição, entusiasmo, capacidade de improvisação, cálculo no dosar o próprio esforço — para não se cansar antes do tempo — e intuição sobre o que o adversário pretende fazer. Qualidades morais e mentais geralmente associadas, equivocadamente, apenas a profissões intelectualizadas. Há lutadores fortíssimos mas totalmente previsíveis e outros, não tão musculosos mas verdadeiras caixas de surpresas. Anderson Silva parece se enquadrar às mil maravilhas nessa categoria. 

Há, entre seus praticantes, pessoas de todos os níveis de instrução, inclusive superior. Existe um peso pesado que foi professor de matemática — deve estar ganhando muito mais dando pancadas do que dando aulas. E, ao contrário do que se possa pensar vendo tanta violência, não há, na maioria das vezes, qualquer animosidade duradoura entre os lutadores. Tanto assim que, terminada a luta, os lutadores, ensanguentados, cara inchada, enxergando só com um olho, se abraçam sorrindo e passando a mão, bondosamente sobre a cabeça do outro. A chave do sucesso está no oportuno uso das variadas formas de luta e sua adequação momentânea às forças e fraquezas do oponente. Não é permitido morder, rasgar a boca — inserindo os dedos nas extremidades —, chutar deliberadamente as partes genitais, enfiar o dedo nos olhos, golpear a nuca, impedir a respiração do oponente e algumas outras restrições de ficaria monótono aqui mencionar. 

Tais regras procuram, pelo menos, diminuir, por razões morais, práticas e econômicas — para que serve um atleta morto ou aleijado? — a ocorrência de lesões permanentes nos atletas. Servem, também para abrandar, ligeiramente, a impressão de selvagem primitivismo que pessoas mais sensíveis, principalmente mulheres, sentem vendo, pela primeira vez, o sangue escorrer nos confrontos mais violentos ou se acumulando em inchaços que lembram bolas de pingue-pongue. 

Já que falamos em assistir pela primeira vez, é interessante saber — prova de que o ser humano acostuma-se com tudo — que em alguns campos de concentração nazistas havia paupérrimas “boates”, com esquálidas mulheres querendo faturar alguma coisa. Talvez o “luxo” de um pedaço maior de pão preto, feito com trigo e serragem de madeira —, um alívio temporário da fome antes da câmara de gás. No atual “vale tudo”, as jovens, inicialmente, só iam aos estádios para agradar o companheiro. Com o tempo, começaram a gostar da violência — uma tendência que não dorme, apenas cochila no fundo do ser humano — e passaram, muitas delas, a também lutar, com profissional e fria virulência na ânsia de não ficar “para trás” em tudo aquilo que os homens são capazes de fazer. Pobre do marido que sequer pensa em ser violento em casa. Se tal esporte se difundir demais entre as mulheres os maridos mais tímidos e débeis se movimentarão para a criação das “Delegacias do Homem”, onde encontrarão proteção contra a violência feminina. 

Enfim, não obstante tais empresas exibam lutas que se aproximam bastante dos confrontos físicos da vida real, sem combinação de resultado — daí o atrativo que vem despertando —, três perigos rondam esses torneios: 1) o involuntário incentivo da violência de rua, deseducador daqueles jovens que não frequentam as academias de luta — onde são doutrinados para não brigar — e passam a confiar apenas na violência para a solução dos problemas; 2) o afastamento, desiludido, de muitos espectadores de lutas, decepcionados com as cenas de castigo mais sanguinolentos e, 3) a possibilidade de surgirem, no futuro, árbitros menos escrupulosos que possam — subornados por grandes apostadores particulares de dinheiro —, ajudar um dos atletas a ganhar. Atividades onde se acumula muito dinheiro — e o MMA cresce rapidamente no número de adeptos — atraem a atenção de marginais interessados em grandes “investimentos” na forma de apostas. Isso certamente ainda não ocorreu, mas pode vir a ocorrer, se não houver vigilância dos atuais organizadores de lutas. O UFC certamente um dia estará em outras mãos. 

Como o crime organizado tentaria fazer isso? Interrompendo apressadamente a luta, mesmo quando o “espancado” do momento ainda poderia reagir e finalmente vencer. Principalmente quando o “round” está a poucos minutos de terminar. Pausa que possibilitaria ao atleta que está só apanhando se recuperar e até vencer finalmente a luta, como já ocorreu inúmeras vezes. Em uma luta que assisti, Brock Lesnar, um peso pesado que mais parece um gigante de pedra, de filme — dizem que fora dos ringue é pessoa de ótima educação —, sofreu um castigo quase inacreditável mas, salvo pelo gongo, acabou vencendo a luta. Fosse o árbitro menos tolerante ante o castigo sofrido por Lesnar, interrompendo a luta, Lesnar sairia derrotado do octógono. 

Assisto a tais confrontos, pela televisão, há pelo menos dez anos. Somente porque é violento? Não. Assisto porque é um esporte “duplamente solitário”, em que o ganhar ou perder depende apenas do próprio esforço, da autodisciplina — inclusive no sexo e na alimentação —, da capacidade de superar o eventual desânimo, oriundo da sensação de real inferioridade técnica ou muscular, frente a determinado adversário. Medo, nem tanto físico, de apanhar na cara mas de sair do ringue como um derrotado — o temido rótulo americano de “loser”—, humilhação que levará para casa. Medo não da luta em si, mas do seu resultado. Inclusive econômico, porque suponho que a maioria dos atletas não luta apenas por esporte. 

Embora uma das funções do árbitro de ringue seja a de preservar a integridade do atleta, há muita subjetividade envolvendo essa preocupação. E toda subjetividade fornece desculpas para alguma eventual desonestidade, mera simpatia ou antipatia. Conta-se que no boxe — pelo menos de antigamente, agora não sei — um árbitro tendencioso, ou desonesto, podia desfavorecer um lutador caído contando até dez de maneira mais rápida que qualquer cronômetro. Nessa mesma contagem, um árbitro menos veloz, realmente neutro, chegaria apenas ao sete ou oito segundos, o que permitiria, talvez, ao derrubado levantar-se a tempo e finalmente vencer. 

Há, também, um outro perigo rondando tais lutas profissionais: imprudentes declarações de atletas, antes das lutas, pondo em dúvida a isenção do juiz de ringue. Recentemente, um atleta brasileiro temido, fortíssimo e agressivo — inclusive com as palavras —, disse, em entrevista na TV, dias antes de luta importante, que em seu combate anterior com o mesmo oponente, não ganhara a luta porque o adversário teria sido ajudado pela arbitragem tendenciosa. Sendo ou não verdadeiro, o que disse, é o tipo de coisa que não conviria externar porque a suspeita explícita pode, em tese, acionar desfavoravelmente o inconsciente de qualquer árbitro — sempre um ser humano —, apressando o término de uma luta, mesmo que na luta anterior desse lutador fosse outro o árbitro. Ataques a uma categoria profissional é usualmente sentida também como ataque pessoal. 

Analogicamente, durante julgamentos judiciais, em todos os países civilizados, não se tolera que o réu insulte seus julgadores. Se o fizer, será logo retirado da sessão de julgamento. Seria isso apenas arrogância judicial, porque seus julgadores seriam invariavelmente “homens perfeitos”? Não. Essa prática, universal, existe porque sabe-se que qualquer magistrado, quando insultado, e por mais justo que pretenda ser, terá um enorme trabalho íntimo para “esquecer” o insulto, julgando o réu com isenção. Por isso, o UFC e o MMA devem proibir seus atletas de emitir, em público, julgamentos desfavoráveis aos árbitros. Ocorrendo tais ofensas, antes da disputa — mesmo como meras “desconfianças”—, nunca se saberá depois, com certeza, finda a luta por nocaute técnico, se a luta foi perdida pelo “desconfiado”, porque  ele estava mesmo sem condições de reagir, ou porque o árbitro quis favorecer, com a pressa, o atleta que socava seguidamente o “desconfiado”. Somente o árbitro que está no ringue é que terá condições de avaliar — por estar perto, vendo as feições e o olhar do que apanha —, se o lutador que recebe repetidos golpes está realmente incapaz de reagir. Qualquer crítica à arbitragem deverá que ser feita depois da luta, assim mesmo reservadamente, ouvindo-se também o árbitro. Este, mesmo honestíssimo, não poderá funcionar confortavelmente se não se sentir visto, pelo público e pelos lutadores, como um honesto profissional. 

Quanto ao fator “sangue em excesso”, escrevi, pouco tempo atrás — “Orelha versus cotovelo no “vale tudo” — no meu site e blog, que as cotoveladas no rosto e crânio deveriam ser proibidas, porque ressaltam demais o lado brutal de um esporte já, por si só, bem violento. Muito mais que o boxe, comparativamente, hoje, um esporte até “delicado”. Cotovelos rasgam a pele e já houve uma ocorrência, recente — apareceu no site do Terra — em que boa parte da orelha do adversário foi decepada por um cotovelo especialmente pontudo. A cena apareceu em filme. E penso que não é impossível que, atingindo diretamente um olho mais saliente possa cegar parcialmente o atleta.

Sangue demais, se, por um lado, satisfaz os fãs mais selvagens, por outro lado afasta pessoas de sensibilidade mediana, enjoadas de tanta brutalidade. Em uma luta, também recente, envolvendo um brasileiro de apelido “Pé grande” e Cain Velasquez — se não me engano —, a quantidade de sangue que brotou de um ferimento na testa do brasileiro — provocado pelo cotovelo de Cain — certamente ficou entre meio e um litro, atrapalhando até sua visão. A cena lembrava um matadouro. 

Se o inteligente empresário Dana White consultasse os fãs do UFC e do MMA se deveria, ou não, proibir cotoveladas na face e crânio dos lutadores, os torcedores mais sedentos de sangue diriam — o sangue não seria deles... — que “guerra é guerra” e que se os cotovelos existem, como os pés e as mãos, tais segmentos anatômicos podem ser utilizados, porque “luta quem quer”. No entanto, a ala mais civilizada dos fãs dessas lutas aplaudiria a proibição, porque há limites para tudo e outros golpes mais “sujos” também já foram proibidos, sem perda de adeptos desse esporte. Essa proibição, se adotada pelo UFC, não afastaria os mais fanáticos pela brutalidade, porque se procuram apenas a violência, nenhum outro esporte atual é mais violento que a “luta livre autêntica” do MMA. 

Houve uma época, não distante, comparativamente inocente, em que o futebol era considerado violento. Deixou de assim ser considerado, tanto que moças já o praticam, mesmo dando a impressão de que estão em atividade imprópria para sua anatomia. Peitões enlouquecidos, balançando nas corridas, lembram-nos que eles foram concebidos para a amamentação. Futuros bebês, se consultados, não aprovariam tanto desrespeito às suas futuras mamadeiras. 

Já que comparamos o futebol com o “vale tudo”, é intrigante constatar que nunca houve — pelo que sei — caso de torcedores fanáticos de tal ou qual lutador, vencido em uma luta, partirem para a vingança nas ruas, agredindo o vencedor ou os torcedores do outro lutador. Assistindo as lutas, gritam e até ficam de pé, mas, proclamado o resultado, o máximo que ocorre, vez por outra, é um discreta vaia. Não se formam, nas ruas, grupos armados de paus, pedras e canos, para “massacrar” os torcedores do outro atleta. Já com o futebol isso não ocorre. Os Holligans, corintianos, palmeirenses e torcedores dos demais clubes costumam se enfrentar nas ruas, após decisões de importantes campeonatos. Cabeças quebradas, espancamentos impiedosos e até homicídios ocorrem nesses encontros “de motivação esportiva”. 

Como se explica essa diferença? Certamente porque no MMA a responsabilidade pela vitória ou derrota está apenas no lutador, um indivíduo. No futebol, a responsabilidade é difusa, o que permite a cada torcedor fanático atribuir a tais ou quais jogadores, ao time inteiro, ou ao técnico, a culpa pela derrota. Paradoxalmente, o MMA, com toda sua violência, induz menos violência, fora do estádio, que o futebol, não violento nas partidas mas selvagem após terminada a partida, a ponto de incendiar carros, quebrar vitrinas e espancar pessoas aleatoriamente. 

Termino por aqui esta minha rara incursão no campo esportivo. Este artigo, vertido para o inglês — não por mim, que apenas confiro — estará na internet, daqui a alguns dias. Talvez assim chegue ao conhecimento de Dana White — um ex-pugilista de grande discernimento e coragem para negócios — que transformou o velho e medíocre “vale tudo” no esporte que mais cresce no mundo. Se ele decidir que convém estancar um pouco as hemorragias oriundas do cotovelo, muita gente agradecerá. 

(16-7-2012)











 








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