domingo, 26 de junho de 2011

Um advogado invulgar: Dr. Antônio de Arruda Sampaio

Quando juiz de direito, estadual, de varas cíveis, em Santo André (cinco anos) e São Paulo-SP (oito anos), tive oportunidade de conhecer inúmeros advogados. Era uma época — anos setenta e arredores —, em que os advogados, usualmente, levavam pessoalmente suas petições mais importantes para despacho do juiz. Tal costume ensejava, frequentemente, algum diálogo respeitoso entre magistrados e advogados. Era o “tempo da paz”, quando as “machadinhas da guerra” não haviam sido desenterradas pelas duas valorosas tribos jurídicas.

Esse convívio, embora breve e não planejado, “derretia” um pouco o gelo entre duas atividades destinadas a um inevitável conflito de opiniões porque na justiça não há “empate”: uma das partes, autor ou réu — por vezes, ambas — sai perdendo e, por isso, recorre, atacando a decisão do juiz. E os ataques, por vezes, são contundentes. Pessoalmente, para evitar irresistíveis ressentimentos, raríssimas vezes eu lia as apelações, pois a tendência natural de todo ser vivo — e o juiz, embora alguns duvidem, se inclui nessa categoria — é reagir a qualquer ataque, justo ou injusto. Paradoxalmente, quanto mais justo o ataque à sentença, mais o fígado do juiz sente o golpe. Ninguém gosta de ver seu erro exposto à visitação pública, considerando que os processos em geral não correm em segredo de justiça. Um grande magistrado paulista, especialmente polêmico e capaz, o Des. Alves Braga, costumava me dizer: “Não quero que falem de mim com razão. Sem razão, podem falar mal à vontade”. Se toda crítica justa é, em tese, virtuosa, trata-se de virtude bem indigesta quando utilizada contra nós mesmos.

Entre os advogados que me causaram enorme impressão figurava o Dr. Antônio de Arruda Sampaio, agora nonagenário, que, esclareça-se, não tem parentesco conhecido com o incisivo ex-candidato a presidência da república, Plínio de Arruda Sampaio, nas eleições de 2010. Se eu tivesse que listar cinco advogados da área cível, no Estado de São Paulo, dignos de especial menção, Dr. Arruda Sampaio estaria incluído no seleto rol.

Por que o Dr. Arruda Sampaio marcou minha memória? Por causa da contundência lúcida de seus argumentos, combatividade, operosidade, minúcia, tremendo senso de responsabilidade profissional e invulgar cultura, inclusive literária, fruto da leitura atenta de centenas de livros que — com certo exagero, a meu ver —, se obrigava a ler até o fim.

Suas petições eram extensas, mas recheadas de substância e em rigoroso respeito ao vernáculo. Quando eu iniciava a leitura de suas petições, principalmente as elaboradas alegações finais, ajeitava-me inquieto na cadeira e me advertia: “Concentre-se, lá vem dinamite...” Cada processo dele era um campo de batalha em que os fatos e o direito davam as mãos empunhando a mesma espada. Não é raro que grandes conhecedores do direito, ao advogar, valorizem em excesso as elegantes e profundas considerações teóricas mas negligenciem um tanto — não era o caso de nosso entrevistado — o lado “cozinha”, terra-a-terra, do processo: a prova, o conjunto de detalhes “não brilhantes” que, interligados, permitem, mesmo a um advogado iniciante mas diligente, derrotar um luminar do Direito. Arruda Sampaio não descurava: manejava doutrina e prova com igual empenho.

Uma pessoa da área jurídica me informou — não fui conferir — que uma apelação do nosso herói chegou a trezentas páginas, um livro. Petições longas podem significar coisas opostas. Uma, ruim: incapacidade de síntese, dificuldade de redação ou tentativa de confundir a cabeça do julgador com a chamada “obscuridade brilhante”. Pode, porém, a petição longa, ter um significado bom: imenso zelo profissional, resultante da dúvida do redator sobre se o juiz compreenderá realmente todos os detalhes da causa, quando complexa. Depois de minha aposentadoria, conversando sobre isso com o Dr. Arruda Sampaio, ele me explicou que, segundo sua experiência, se o advogado acha que com vinte argumentos poderia ganhar a questão, convém que apresente não os vinte, mas trinta argumentos, pois o patrono nunca pode estar seguro de que o juiz estará totalmente concentrado na leitura dos autos. Um mero telefonema preocupante pode distrair a atenção do magistrado, levando-o a uma decisão errada porque o advogado não explicitou algo que o juiz não percebeu que estava implícito no que lera.

Outro aspecto saliente na invulgar personalidade do homenageado está na sua biografia de menino sem recursos na cidade de Aquidauana/MS. Ele ficou órfão aos nove anos. Precisando ajudar a família trabalhou como engraxate, auxiliar de balcão em loja comercial, porteiro de cinema, ajudante de farmácia, balconista de bar e finalmente empregado da Charqueada Rio Negro, onde encontrou um “segundo pai”, Antonio da Costa Rondon, que, percebendo seu grande potencial, patrocinou seu curso ginasial em Campo Grande. Àquela época, em Aquidaunana só o curso primário era fornecido pelo estado.

Daí pra frente, foi uma fileira de êxitos como rapaz determinado e estudioso. Destacou-se como orador de turmas e redator de jornais de centro acadêmico. Venceu todas as etapas graças a uma férrea força de vontade — virtude hoje pouco valorizada — e ao apoio espiritual que extraiu do Cristianismo. Mantém até hoje, uma fé católica inabalável e tremendamente lúcida. Não venham, com pouca bagagem, discutir com ele as virtudes do Cristianismo.

Não exagero ao ter a impressão de que nosso homenageado poderia ter sido o que bem quisesse na área política nacional e acadêmica. Não o quis, porém. Vá alguém tentar entender porque algumas pessoas — não obstante especialmente dotadas, inclusive na comunicação verbal — não querem participar da corrida pelo poder. Não seria isso um indício de que a política, quando adotada como profissão, obriga a certas transigências incompatíveis com a rigidez moral? Arruda Sampaio preferiu ser, sem auto-promoção, um competente e bem sucedido advogado, além de erudito e homem de fé. Conseguiu, na área cível, vencer na profissão, em todos os aspectos, embora não ligue muito para o lado financeiro de seu próprio sucesso. Nunca dirigiu seus carros, importados ou nacionais — para isso tem motorista —, e confessa, sem acanhamento, não saber nem como se levanta a tampa do motor. Nunca teve nem quis ter carteira de habilitação.

Já me estendi demais nesta breve biografia. Com ela também homenageio, de maneira simbólica, centenas de anônimos advogados brasileiros, de invulgar inteligência, caráter e cultura que não sentem vocação para o magistério nem a necessidade de “se comunicar”— como autores de livros. Como não existe ainda, um “monumento ao advogado desconhecido” — equivalente àquele dedicado aos soldados anônimos sacrificados em guerras —, sirva esta homenagem como breve reparo a essa omissão.

O Dr. Antônio de Arruda Sampaio está encerrando seu escritório, conseqüência da avançada idade. Que a presente homenagem, aceita por ele com muita relutância — eu precisava de alguns dados biográficos — sirva como um substitutivo da estátua de bronze, da qual seria merecedor.

(19-6-2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário