segunda-feira, 13 de junho de 2011

Síntese desidratada do caso Cesare Battisti

Aconteceu, hoje de manhã, algo que há tempos não me ocorria: “cliquei” alguma tecla errada no computador — escolhi a opção errada — e com isso “deletei” um longo acréscimo redacional, de quatro horas, que digitei na mesma “página” em que estava um artigo anterior, sobre Cesare Battisti (“Como terminará o caso Cesare Battisti?” — vide www.franciscopinheirorodrigues.com.br ). O que estava escrito antes continuou firme, mas meu laborioso acréscimo — criticando a decisão final do governo brasileiro sumiu. Nem mesmo estava na tal “lixeira”, sem ofensa contra o autor deste artigo...

Chamado para o almoço, estava até disposto a não mexer mais no assunto. Muito trabalho... Resignado, pensei: “Está bem, vá lá... O governo brasileiro errou, mas Battisti, hoje, é outro homem. Esteve privado da liberdade de ir e vir durante quatro anos, esperando o desfecho do caso. Há décadas não conhece, presumo, paz de espírito, algo tão precioso a todo ser humano normal. E Battisti não é, certamente, um monstro. Está, conforme o chavão da esperança, recuperado. Não matará ninguém aqui no Brasil. Provavelmente matou, sim, na Itália — jamais admitiria isso, nas circunstâncias atuais — mas no fim da década de 1970, em que na Europa fervilhava a paixão política. Ideologias atacam o cérebro com o vigor doentio de certos vírus e bactérias. Pior que o vírus ideológico, somente o da raiva, de Pasteur, que enlouquece o cérebro inteiramente, faz babar e mata”.

Continuei pensando: “Battisti já “pagou pelo que fez” — embora informalmente, com a “pena alternativa” da sensação de insegurança —, pelos desatinos da mocidade. Teve que mudar de países para não ser preso. Que agora descanse e escreva seus livros, ganhando seu dinheirinho porque, afinal, também é filho de Deus. Leitores de vida calma sentem imensa curiosidade sobre o que acontece nos subterrâneos da sociedade. Experimentam, lendo-os, o frêmito da ação, sem o correspondente perigo. Talvez le mereça uma segunda chance. O “talvez” aqui se justifica porque não se sabe como ele utilizará seu refúgio no Brasil, concedido com evidentes contorções interpretativas pelos membros do governo que se identificaram com suas opiniões políticas. Não se sabe se será grato com o país que o acolheu. O caráter dele ainda é um mistério. Provavelmente, jamais se esquecerá da imensa sorte de ter sido preso, no Brasil, justamente quando políticos de esquerda mandavam no país. Se o governo fosse de direita, ou centro-direita, já estaria em prisão italiana há um bom tempo. Tratados internacionais — por falta de uma norma geral que discipline a ilimitada “soberania” — ainda são interpretados, por seus signatários, “ao gosto político do freguês”. Com tais pensamentos eu digeria meu fracasso informático.

Ocorre que, enquanto almoçava, assisti, casualmente, na televisão, a entrevista de dois juristas que respondiam as perguntas de uma repórter. Ouvindo um deles, que elogiava e justificava jurídica e politicamente a decisão do governo brasileiro, todo meu conformismo se evaporou. Não com o fato do jurista apoiar e permanência de Battisti no Brasil, mas com a tendenciosidade dos argumentos apresentados.

O leitor já deve ter passado por experiência semelhante: estamos dispostos a “engolir”, por mera tolerância, determinado comportamento, ou opinião contrária. Queremos apenas sossego. Quando, porém, alguém passa a insultar nossa inteligência com argumentos infantis ou desonestos aí já fica difícil calar. Uma coisa é respeitar a opinião alheia; outra, sentir que o cidadão nos considera extremamente burros. Daí minha decisão de escrever o que segue abaixo.

Para não cansar os leitores, cada vez mais avessos a “longas considerações”— reação perfeitamente compreensível em um mundo que se afoga em textos — condensarei ao máximo as informações e argumentos sobre o assunto. Talvez o leitor mais politicamente neutro concorde com minha conclusão. Se não concordar, consulte sua consciência e veja se está raciocinando friamente ou cede a impulsos ideológicos, francos ou disfarçados. Respeitarei sua opinião, seja qual for. Não travarei polêmicas, via e-mails, porque isso consome tempo precioso, além de não convencer qualquer das partes. Ainda não inventaram uma pílula capaz de anestesiar o orgulho intelectual. Se for realizado um congresso filosófico internacional sobre a tolerância, é quase certo que se formarão duas correntes que mutuamente se odiarão.

Vamos à síntese.

No fim dos anos 1970, Battisti integrava uma organização terrorista. Concluiu a justiça italiana — depois de um julgamento com direito ao contraditório —, que ele matou ou mandou matar quatro pessoas, e uma quinta ficou paraplégica quando do assalto a uma joalheria. Fugiu para a França e não se interessou minimamente em se defender no processo que corria contra ele na Itália. Nem mesmo contratou um advogado que o representasse. Simpatizantes de esquerda certamente se encarregariam dos gastos da defesa, caso ele pretendesse se defender. Justificou-se, no Brasil, anos depois, já condenado, dizendo que não confiava na justiça do seu país, e por isso não moveu uma palha. Bastaria, portanto, sua palavra imperial contra tudo o que estava nos autos do processo.

É muito cômodo a qualquer réu fugir do seu país sem se defender, e dizer depois que não confiava no sistema judiciário. Tal desculpa, porém, só seria admissível na União Soviética, nos tempos de Stalin, ou em países imensamente atrasados, com ditadores impondo a seus juízes obediência irrestrita.

A Itália pode ser acusada de muitas coisas, mas não sobre a qualidade de seu Direito e sua justiça. Nessa área, o estudo do Direito, é muito prestigiada no mundo inteiro. Inúmeras teorias jurídico-penais, aceitas por países cultos, tiveram por berço a Itália. Se ela merecer alguma restrição é por ser até “legalista” demais, isto é, ampliar de tal modo o direito de defesa que as ações demoram, o que redunda em benefício dos réus, considerando a prescrição e outras vantagens.

Quando o governo francês, declaradamente socialista, de François Mitterrand, foi substituído por um governo de centro, Battisti sentiu que sua sorte tinha mudado. Fugiu novamente, agora para o México e depois para o Brasil, onde acabou preso por uso de passaporte falso. Pediu asilo político mas este lhe foi negado pelo órgão próprio criado para cuidar do tema “refugiados”, o Conare.

Não obstante essa decisão, o então Ministro da Justiça, claramente de esquerda, concedeu o asilo. Chegou, então, o pedido de extradição da Itália. Como tais pedidos são dirigidos ao governo — Poder Executivo — do país onde está o foragido, e não ao STF, o ex-presidente Lula — que também tem simpatia pelas esquerdas —, na dúvida quanto aos complexos aspectos legais, encaminhou o assunto ao STF. Não queria se arriscar a um erro clamoroso.

O STF reconheceu que o pedido de extradição estava juridicamente perfeito mas, considerando o conceito de soberania dos países, a decisão final caberia ao chefe de estado, no caso o Presidente da República, formalidade seguida à risca. Como o conceito atual de “soberania” é ainda desregulado e mal compreendido — propiciando abusos imensos, frutos da mescla de simpatia com ignorância — o governo brasileiro desprezou o que havia sido combinado em tratado formal com a Itália e negou a esta o pedido de extradição. Disse que há um risco de o italiano ser maltratado, caso voltasse ao país. A se aceitar tal argumento, qualquer país poderia descumprir seus tratados, agindo como Hitler que dizia ser o tratado um pedaço de papel.

A desculpa do governo brasileiro para descumprir o tratado de extradição é muito fraca. Não esconde o mero desejo de proteger um irmão ideológico. Voltando Battisti à Itália, depois de tanto alvoroço midiático, o governo italiano teria o máximo interesse em não manchar sua reputação de país do Primeiro Mundo. Zelaria para que Battisti fosse tratado conforme a lei. A imprensa estaria sempre vigilante, ainda que fosse pelo mero interesse de vender jornais.

Na Itália, Battisti teria à sua disposição, para livre escolha, a nata da advocacia criminal italiana. Uma grande “vitrine” profissional. E não só de advogados socialistas. O advogado escolhido, querendo ou não, estaria continuamente nas manchetes, promovendo sua reputação profissional. Alguém acredita que o governo italiano seria suficientemente estúpido para mandar espancar ou matar um condenado famoso e seus advogados?

Se houve, eventualmente, alguma injustiça na condenação de Battisti, certamente haverá, na legislação processual italiana — como acontece no Brasil com as ações rescisórias — um meio de se restabelecer a verdade. Se provado o dolo estatal na eventual injustiça contra Battisti este poderia exigir, depois de sua absolvição, uma indenização financeira de vulto. Querer anular todo o trabalho da justiça, com a simplória alegação de que sua condenação foi arbitrária, fruto “apenas” de denúncia anônima, é caçoar da realidade.

Nenhum tribunal condena um réu somente porque alguém o apontou como culpado, e ponto final. Os depoimentos do “denunciante” são esquadrinhados e cotejados com o conjunto da prova. Na luta contra a Máfia, na Itália, a delação premiada possibilitou inúmeras condenações e prisões justas. Qualquer delator tem suas acusações esquadrinhadas pela defesa e até mesmo pela acusação, que não quer passar vexame, na corte, pela ingênua credulidade. Todos os que trabalham na área sabem disso.

Enfim, Battisti vai ficar no Brasil. Por capricho e simpatia do governo brasileiro, orientado por assessores que cederam a meros impulsos ideológicos. Poucos deles estão ligando para a reputação internacional do Brasil. Confiam excessivamente, por falta de juízo — no fundo, sabem que estão tecnicamente errados — na força do poder econômico e político, na riqueza do pré-sal, nas Copas e outros indícios de prestígio. Sabem que a Itália, economicamente, precisa mais do Brasil do que o Brasil precisa da Itália.

A Itália, no entanto, precisa recorrer à jurisdição internacional, na Corte Internacional de Justiça, na Haia. Deve fazer isso, mesmo eventualmente sem resultado prático. Ganhando a causa — ganharia, não há dúvida, havendo julgamento — o Brasil ficaria numa situação internacional bastante desconfortável, caso descumprisse a decisão.

Obviamente, se a Itália ajuizar ação na Justiça Internacional, o Brasil, formalmente citado, não será obrigado a aceitar a jurisdição — uma aberrante falha da ONU no regular o assunto; falha que, cedo ou tarde, será corrigida porque é intolerável num planeta globalizado. O Brasil pode, repito, recusar a demanda, mas isso significaria uma confissão implícita de culpa. Uma demonstração de que o Brasil decide as coisas na base da simpatia pessoal, não conforme o Direito e promessas contidas em tratados.

Quem orientou o ex-presidente Lula — não votei nele, mas reconheço-o como pessoa sentimental e de boa-fé, tanto quanto é possível em política — nesse assunto esqueceu que esclarecê-lo de que existe, nas relações internacionais, um princípio chamado “reciprocidade”. Se o governo brasileiro pode, por mera simpatia com um condenado, se dar o direito de descumprir um tratado, a outra parte contratante também fica com o direito de agir da mesma forma, “pagando na mesma moeda”. Se um brasileiro de pouco juízo —, mas juridicamente responsável por seus atos —, decidir matar, por motivação política, alguma pessoa querida do Lula e fugir para a Itália, antes de ser preso, conseguindo lá o status de refugiado político, com que autoridade o governo brasileiro vai exigir, do governo italiano, a extradição do brasileiro assassino? A Itália poderia alegar que não entrega o fugitivo porque há receio, igualmente vago, de que ele, retornando, seria maltratado ou morto por autoridades brasileiras.

Enfim, a Itália deve, até mesmo para agilizar o aperfeiçoamento do Direito Internacional Público, levar o conflito à Corte Internacional de Justiça. Se, repito, o Brasil não aceitar a ação, isso o desprestigiará internacionalmente. Se aceitar, e perder a causa — como acontecerá — e depois não cumprir o julgado, seu desprestígio será ainda maior. Mas poderá, perdendo a causa, voltar atrás e conceder a extradição, decisão que “não transita em julgado” porque concedida com fundamento estritamente político. Não haveria “vexame político” do governo brasileiro, com a entrega do fugitivo, porque apenas estaria cumprindo uma decisão do maior órgão judiciário do planeta.

Nada tenho contra Battisti, mas em certos dilemas mais vale ficar com a razão do que com o coração. E não esquecer que um futuro governo socialista italiano poderá, quem sabe, anistiar Battisti, permitindo que ele viaje, sem medo, de cabeça erguida, pelo mundo todo, fazendo palestras sobre seus livros, que certamente serão interessantes. Pretendo lê-los. Tenho certeza que aprenderei com eles.

(13-6-2011)

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