O presente artigo é adaptação de um meu artigo anterior, “Um cochilo jurídico e arbóreo de Homero” (www.franciscopinheirorodrigues.com.br). O pitoresco adjetivo “arbóreo” tem a ver, aqui, com a suspeita teoria rotulada de “fruto da árvore envenenada”. Esta é uma engenhosa “saída mágica” para proteger, com bíblico palavreado, réus poderosos quando a prova reunida contra eles, por ser evidente demais, levaria a uma condenação judicial. A “arraia miúda”, réus de baixa categoria, nem se atreve a invocar tal preciosidade jurídica. É necessário um certo status social para poder invocá-la.
Perguntei, certa vez, a um experiente delegado de polícia, como é que eles, com tanta freqüência, conseguiam descobrir a autoria de crimes contra o patrimônio em que não houve flagrante e nulas eram as pistas deixadas na cena do crime. Ele me respondeu: “Graças às denúncias anônimas, na maioria das vezes vindas de outros criminosos”. E porque as denúncias são anônimas? Porque se forem assinadas, o delator morreria dentro de poucos dias.
Se a justiça fosse anular todas as condenações de assaltantes e sequestradores, por causa da denúncia anônima inicial — outra suposta “fruta envenenada” — alto percentual da bandidagem estaria hoje nas ruas, totalmente “recuperada”, com terço na mão e praticando obras de caridade com suas piedosas facas e revólveres. O que interessa ao país, muito mais que as firulas jurídicas, é saber se o crime ficou ou não provado, após o regular exercício do direito de defesa. Se for o caso, se houve algum sério exagero investigativo, que se puna administrativamente o funcionário que se entusiasmou demais na busca de provas. Melhor isso, mais justo, que anular o resultado de milhares de horas de trabalho, perícias e documentos visando elucidar os fatos. No caso em exame, de conhecido banqueiro, dono do Opportunity, houve extinção da ação penal. Estaca zero. Quem terá ânimo, ou coragem, na Polícia Federal, de começar tudo de novo? A prescrição garantirá o enterro de qualquer eventual culpa do réu. E por pouco o juiz que julgou o caso, Fausto De Sanctis, não foi punido. O Conselho Nacional de Justiça recusou seu castigo, solicitado por não haver soltado imediatamente o dono do banco Opportunity. O juiz alegou que não mandou soltar porque havia outra acusação.
A mencionada “saída mágica” — o fruto da árvore envenenada — conseguiu algum prestígio no direito brasileiro porque foi concebida pela respeitada justiça norte-americana. Esta tem o seu lado muito eficaz — por sua objetividade e severidade —, mas não está totalmente isenta, de vez em quando, de pressões sutis quando o réu tem poderosas ligações, como foi o caso da reeleição de George W. Bush. Não esquecer que os juízes americanos são eleitos, isto é, não se submetem a concursos de provas e títulos. Eleição e juízes eleitos não fazem boa mistura. É o caso de se dizer, no caso da Satiagraha, que se parte da raiz esteve burocraticamente envenenada — termo, convenhamos, forte demais para o caso — mas o fruto, a prova dos autos, mostrou-se revelador, não há porque inutilizar o produto final. O discutível “veneno” parcial da raiz não conseguiu afetar o tronco por inteiro nem chegar até o fruto. E este é que alimenta o prestígio da justiça.
No julgamento em exame, por maioria (3x2), da 5ª Turma do STJ, de 07-6-2011, tudo, desde o início, foi anulado — inquérito policial, processo judicial, e condenação — porque o delegado que chefiava o inquérito policial, Protógenes Queiroz, recrutou agentes da Abin para ajudar nas investigações. Participando delas, tiveram acesso a dados sigilosos e escutas. Não consta, porém, nem foi alegado, que as informações colhidas por tais agentes tenham sido usadas para outros fins, criminosos, como seria o caso, por exemplo, de chantagens.
Salvo engano, a expressão “teoria dos frutos da árvore envenenada” foi aplicada, pela primeira vez, em 1939, em um caso de contrabando, “Nardone versus United States. Como houve uma escuta ilegal do réu, tudo o que ele disse não teria valor jurídico como prova de acusação, o mesmo ocorrendo com outras provas, incontestáveis, obtidas posteriormente graças à escuta ilegal. Haveria uma cadeia de contaminações absolutas. Um prêmio para os infratores e um castigo para algum policial mais empenhado em combater o crime. Tal empenho merece elogios. O que não pode é o policial adulterar provas.
No Brasil, o exagero prevaleceu, pela primeira vez, no Habeas Corpus n.69.012/RS, em razão de uma minoria que se tornou “maioria” por mero acidente, como explico em meu artigo anterior, já referido no início. Reporto-me a ele, para brevidade do relato.
Figuremos, para comprovação do absurdo da “teoria dos frutos da árvore envenenada”, a seguinte hipótese: um policial mais pertinaz, ou o pai de uma criança desaparecida, está convicto de que um determinado cidadão — astuto e respeitado na comunidade —, seqüestrou, violentou, matou e enterrou várias crianças, ou mulheres. Não conseguindo provas testemunhais, nem autorização judicial para uma escuta, ou busca domiciliar, o policial “grampeia” o telefone do suspeito. Ouvindo sua conversa com um cúmplice, grava a confissão do “serial killer”. Inclusive a confissão deste de que filmou as cenas — para ele excitantes —, e enterrou os cadáveres em seu sítio, perto do paiol. Para reforço da confissão ouvida, o mesmo policial, ou pai vingativo, penetra na garagem do criminoso e lá descobre, escondidos num caixa, alguns DVDs com a filmagem das cenas de violação sexual praticadas por ele mesmo. Em seguida, o policial vai até o sítio do criminoso e localiza a cova coletiva onde estão suas vítimas. Aí chama a polícia, oficialmente.
No hipotético caso, a se aplicar dogmaticamente a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, toda a prova contra o suspeito seria sem valor porque os filmes em que aparece o réu abusando das vítimas, e a existência comprovada da cova com os cadáveres seriam “frutos envenenados” em decorrência da escuta clandestina e do ingresso na propriedade do criminoso sem um mandado judicial. Existe absurdo jurídico mais gritante do que este? O que deve pesar mais, a existência indiscutível de um ou mais crimes, ou a falha burocrática? Podem existir cadáveres de fato mas não de direito?
No caso em exame, o digno Ministro que funcionou como relator no habeas corpus que livrou Daniel Dantas de toda culpa — e proferiu o voto de desempate em seu favor — reconhece, segundo está na mídia, que a Abin poderia, sim, numa operação compartilhada, participar da investigação, mas só mediante prévia autorização judicial. Ora, esse detalhe foi irrelevante, em concreto, porque a autorização judicial viria, certamente, do próprio juiz De Sanctis, dado como um “inimigo” do réu em questão.
De qualquer forma, esse detalhe da falta de um ofício pedindo a autorização para utilizar agentes da Abin na investigação não tem relevo suficiente, inclusive moral, para invalidar vários anos de investigação. Que o delegado precisasse do auxílio de agentes da Abin não é estranhável porque tais agentes estão mais especificamente preparados, tecnicamente, para investigações mais complexas, principalmente envolvendo a área financeira.
Segundo a mídia, existem cerca de 1.600 funcionários na Abin. Certamente muitos deles inaproveitados porque o Brasil não vive impregnado de espiões estrangeiros, elaborando planos tenebrosos contra nossa segurança. Não há terrorismo no Brasil. Não houve prejuízo para o país, com a utilização de funcionários da Abin na investigação. O mais razoável, segundo a opinião majoritária — e sensata — dos cidadãos brasileiros, seria que a justiça examinasse o mérito das acusações contra Daniel Dantas, inclusive com auxílio de peritos auditores, para saber se ele é ou não inocente das acusações. E, frise-se: no âmbito do habeas corpus não cabe exame minucioso da prova. Por isso, sua “salvação”, simpática para algumas pessoas, estaria na evocação de uma tese genérica, que dispensasse a demonstração de sua inocência. “Arquivar” o caso, em um julgamento de cinco magistrados, por três votos contra dois, dando realce desmesurado à inexistência de um papel de ofício é por em risco, imerecidamente, a boa reputação do Superior Tribunal de Justiça. A população brasileira vai pensar que a decisão foi de todo o Tribunal, quando não foi.
Espera-se que o órgão de acusação, no caso, não se conforme com a decisão do habeas corpus. O povo brasileiro quer apenas conhecer a verdade. Se a anulação transitar em julgado ela funcionará como dose cavalar de decepção cívica. Segundo pesquisa recente sobre o prestígio das instituições brasileiras, a Justiça, numa escala de zero a dez, recebeu nota 4,5. Se mantido o habeas corpus, a nota de aprovação baixará para 2 ou 3.
Aguardemos a reação do órgão acusador.
(8-6-2011)
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