segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ban Ki-Moon e sua reeleição

O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas foi reeleito para mais um período de cinco anos. Candidato único ao mais importante cargo do mais importante organismo internacional, não poderia ser outro o resultado.

Mesmo cientes de que não podem influir em “assuntos estratosféricos”, as pessoas mais idealistas e lúcidas, interessadas apenas na solução efetiva dos problemas mundiais, gostariam que os secretários-gerais da ONU fossem uma espécie de “super-presidente”. Mais influentes — nessa área externa, de inter-relacionamento — que os presidentes dos países mais poderosos do mundo.

“Muitos discursos, tudo debatido e nada resolvido...” — é a queixa preponderante sobre boa parte do trabalho das Nações Unidas. “Congressos, cúpulas, Fóruns e até pancadarias — regadas com gás lacrimogêneo — mas os conflitos mais graves continuam sem solução. Ou esta é adiada para um vago futuro ou para otimista data exata em que o impasse continuará sob o argumento de que o quadro político “agora” mudou inteiramente. “Razões imperiosas” ou incidentes mínimos são alegadas por chefes de estado para não cumprir o prometido na reunião anterior, quando a demora é mais vantajosa que a solução. Isso é muito comum no eterno conflito entre Israel e os palestinos.

O Oriente Médio é hoje, sem dúvida, a maior fonte de inquietação. Se assumir dimensão radioativa, a indústria bélica mundial esfregará as mãos, feliz. Isto é, caso a família da diretoria resida bem longe dos cogumelos. Não se sabe o que resultará da revolta populacional contra os ditadores locais e do Norte da África. Nem mesmo se sabe se os atuais revoltosos são, ou não, maioria em seus países. Se eventualmente são minoria, como fica a questão da soberania? Teoricamente, pelos conceitos vigentes, um povo teria o “direito soberano” de viver conforme sua preferência. Até mesmo sob uma ditadura ou sob uma monarquia inútil, que não governa mas é vista com simpatia pelo povo.

“O povo é quem manda!”, diz a teoria política. Caso os revoltosos sejam, de fato, minorias não teria validade jurídica internacional o apoio bélico externo aos revoltosos que poderiam representar percentual mínimo da população. Mas na realidade ninguém está ligando para esse “detalhe insignificante”. A postura implícita das potências que apoiam os revoltosos é a de que “se o governante é um ditador, que caia fóra, seja ou não estimado ou apoiado pela maioria da população”. Como essa “filosofia política” está sendo aplicada numa região rica em petróleo e em conflitos religiosos e raciais, fica autorizada alguma especulação sobre o que está por baixo das sublevações no norte da África e no Oriente Médio, além dos celulares e outras tecnologias de comunicação em poder dos jovens.

Por outro lado, é praticamente unânime — estou de acordo, na substância, mas nem sempre no método — a opinião de que os direitos humanos devem — ou apenas deveriam? — ter aplicação universal. Aí cabe a perguntra: mesmo que a legislação do país disponha o contrário? Essa pretendida universalização “automática” dos direitos humanos, defendida, de boa-fé, por juristas respeitáveis, tem o seu lado perigoso, desnorteante, porque comporta uma certa elasticidade de interpretação. Há direitos humanos facilmente identificáveis, , como, por exemplo, o direito de não ser torturado nem apedrejado até morrer. Outros “direitos humanos”, porém, são menos nítidos, de interpretação mais problemática. É o caso de não se poder prender — um mero “segurar”, para que não fuja, após um segundo julgamento — alguém enquanto não transitar em julgado sua condenação judicial. Se aplicado ao pé da letra tal direito, no Brasil, nenhum criminoso do colarinho branco será preso, porque após inúmeros recursos ele aguardará a decisão final em local conhecido apenas por seu advogado, só voltando para casa se for absolvido ou se tiver direito à prisão domiciliar.

Quantos direitos humanos foram catalogados até agora? São dezenas. Esse problema “prático” precisa ser enfrentado pelas Nações Unidas e o que nela for decidido deve ser aplicado a todos os países integrantes da Organização.

No que se refere ao “eterno” conflito entre árabes e judeus, caldo de cultura para o terrorismo e o contra-terrorismo — hoje lucrativa indústria —, as almas mais inquietas se perguntam: “ Já estamos cansados de informações, parciais e imparciais. Textos, discursos e diálogos, aos milhares, esgotaram o assunto. Falta apenas ação, decisão. E como já ficou demonstrado que as duas partes em conflito não conseguem chegar à um resultado, é urgente que a sistemática internacional seja alterada para que a solução venha “de fora”, isto é, de um respeitado órgão judicante internacional que, não obstante a notória competência de seus integrantes, só funciona, absurdamente, se as duas partes concordarem em entregar o caso às mãos da justiça.

É evidente que a parte que sabe estar errada não concorda em ser julgada. O que nos leva à conclusão de que, se as partes não chegam a um acordo, que a solução venha de um órgão judicial especializado, que já temos, a Corte Internacional de Justiça.

Como a recusa de jurisdição permite abusos inegáveis, um mínimo de realismo obrigaria “alguém” a pressionar pela solução dessa falha, ou omissão, das Nações Unidas. E que melhor “alguém”, para isso, que o próprio Secretário Geral? Se a ONU decidisse que a aceitação da jurisdição internacional, doravante, seria obrigatória, sob pena de exclusão do país da entidade, os focos teimosos de inquietação tenderiam a desaparecer. Embaixadores dos países “expulsos” da ONU não poderiam mais discursar na Assembléia Geral nem, de forma alguma, se fazer ouvir na entidade. E a ONU poderia também adotar bloqueios comerciais contra o país que, por “complexo de superioridade” — ou implícita admissão de culpa — não aceita ser julgado “por seus pares”. E, se aceita a jurisdição, que o país vencido seja obrigado a cumprir a decisão, a menos que a outra parte aceite, voluntariamente, uma compensação.

Considerando-se que as soluções dos assuntos humanas devem partir de seres humanos, e não de computadores, não seria um Secretário Geral a pessoa ideal, pela sua visão mais ampla, para impulsionar a modificação da sistemática mundial na solução de controvérsias? Note-se que em tais julgamentos ambos os países litigantes — ou “partes”, doravante incluindo grandes grupos humanos, como a Autoridade Palestina — podem argumentar da maneira mais ampla possível. E em tais julgamentos seria permitido o uso da equidade, aquela técnica de julgamento que complementa a automática aplicação do Direito quando este é rígido demais, no caso concreto, porque moldado em outros tempos, outros costumes e outras realidades.

Para esse “salto qualitativo” da Justiça Internacional é necessário, porém, certa ousadia, ainda não concedida pela Carta das Nações Unidas ao Secretário Geral. Infelizmente, a função do Secretário Geral, é a de um “super-funcionário”. “Super”, porém “funcionário”, sem muito espaço para “sugerir novidades”. — “Não ponha suas manguinhas de fora..”, é a advertência implícita e restritivas nas nomeações para o importante cargo.

Há um ditado antigo que diz mais o menos o seguinte: “O sapateiro não pode ir além dos chinelos”. Essa máxima origina-se de uma observação feita por um famoso pintor que, por curiosidade, indagou a um sapateiro o que ele achava de seu quadro. O sapateiro, sentindo-se importante, observou que o pintor cometera um erro ao desenhar o chinelo. Estimulado pelo silêncio pensativo do artista, o artesão transformou-se em crítico de artes. Pôs-se a criticar o conjunto e outros detalhes do quadro. Aí o pintor cortou a dissertação pretensiosa do artífice dizendo a frase que se tornou proverbial.

Essa mesma “filosofia”, de limitação da liberdade opinativa rege a atuação dos secretários gerais da ONU. Pouco importa, aos chefes de estado, a consideração de que o Secretário Geral, só pelo fato de ver os problemas de uma posição mais elevada, pode enxergar com maior sabedoria os pontos mais sensíveis dos problemas que ameaçam a paz mundial.

Kofi Annan, antecessor de Ban ki-Moon, era muito prestigiado pelo seu padrinho, os EUA, enquanto não se opôs às vontades de George W. Bush. No momento em que Annan, após o 11 de setembro de 2001, opinou contra a pretensão americana de invasão do Iraque,W. Bush passou a minar o prestígio do então Secretário Geral, olhando com microscópio sua atividade e também a de seu filho, que trabalhava numa agência da ONU. Nada encontrou com relação ao Koffi pai mas, com relação ao filho, achou alguma coisa que poderia justificar a falta de apoio a um terceiro mandato de Kofi Annan. E este não foi reconduzido ao cargo.

Em suma, não interessa, às grandes potências, um Secretário Geral com idéias próprias, “ousado”, capaz de “atitudes”, mesmo as mais santas e necessárias. “Necessidade” é algo muito elástico na política internacional. — “Pode ser necessário para o conjunto da humanidade, mas não para meu país, óra essa!” — é o pensamento, jamais confessado, daqueles que, preocupados com as vantagens de seus países, decidem sobre os rumos do mundo.

Igual influência, para modificações, teria um presidente dos EUA, mas o Obama de hoje — os presidentes dificilmente podem ser eles mesmos todos os dias — está amarrado pela vontade ou necessidade de ser reeleito. Sem condições, portanto, de afrontar o “status quo” da Carta das Nações Unidas nem determinados “lobbies”. Além disso, é um homem, no fundo, tímido. Se não é, assim parece; excessivamente consciente de suas origens modestas.

Uma certa “auto vigilância” é qualidade valorizada para um potencial candidato a Secretário Geral. Basta que o candidato seja honesto, estudioso, experiente e de vida privada inatacável. E nisso Ban ki-Moon é imbatível. Fala e escreve em inglês e francês, além de sua própria lingua e sempre foi um estudioso. Seus parentes lembram-se dele, quando jovem, sempre com um livro na mão, como que prevendo que um dia exerceria um papel importante.

Há, porém, na evolução dos assuntos humanos, momentos em que seria necessária uma certa dose de ousadia. “Uma pitada de meia-loucura”, no caso, sábia. E não sei se Ban ki-Moon encontrará, no seu temperamento natural, forças para um passo além, derrubando “alguns móveis e cadeiras’. Encontrando carrancas e gélida resistência nos “donos do mundo”, terá ele fibra suficiente para propor e insistir nas alterações necessárias?

Carlos Lacerda, um jornalista e político brasileiro da década que precedeu a Revolução de 1964, era famoso pela coragem e contundência de seus discursos e artigos. Paradoxalmente — segundo confessou depois — quando adolescente era tímido. Vencida a timidez, a ousadia chegou a galope. Quem sabe, Ban ki-Moon fará o mesmo. Não com a mesma liberdade, porque se “agitar as massas” em um palanque é aceitável, o mesmo não acontece com um órgão da dimensão, potência e delicadeza das Nações Unidas, a melhor ou única esperança de um planeta que sabe o que deve ser feito mas permanece travado porque ainda não surgiu alguém capaz de quebrar a tranca, com estilo, sabedoria e alguma ousadia.

Quem sabe, Ban ki-Moon nos surpreenderá, porque não lhe falta inteligência e boa-intenção. Talvez encontre inspiração em um pensamento de Andrew Jackson, ex-presidente americano: “One man with courage makes a majority” (Um homem com coragem faz uma maioria).

(26-6-2011)

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