quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O caso Battisti e a Corte Internacional de Justiça

Desnecessário relembrar, em detalhes, a “novela” relacionada com o pedido de extradição feito pela Itália. Basta dizer que o STF já decidiu que o pedido do governo italiano não ofende, em nada, a legislação brasileira. Nem, ressalte-se, qualquer princípio jurídico aceito internacionalmente. Pelo contrário, o mínimo que se pode exigir dos tratados é que sejam obedecidos, sem subterfúgios ditados por simpatias ideológicas.

No entanto, como o Direito Internacional ainda contém, lamentavelmente, resíduos volumosos de um primitivismo jurídico incompreensível em pleno século XXI — cedo ou tarde a humanidade sofrerá as consequências — alguns chefes de estado, mal orientados por assessores, interpretam o conceito de soberania da pior maneira possível, imaginando, provavelmente, que estão agindo certo. No caso de Battisti, negando caprichosamente uma extradição fundada em tratado perfeitamente legal. O que leva à indagação: Para que servem os tratados? Fosse Battisti um homem de direita, condenado por homicídios contra líderes esquerdistas italianos, os mesmos assessores diriam que sua extradição não poderia ser negada, tendo em vista a legalidade do pedido.

Pergunto: fui grosseiro, pouco atrás, quando usei a expressão “resíduos de primitivismo jurídico”, referindo-me ao Direito Internacional? Grosseiro, pode ser. Mentiroso, não. Explico, para quem não sabe, e são muitos: a Corte Internacional de Justiça só decide demandas entre Estados, formalmente Estados. Isso explica, por exemplo, porque os palestinos não podem exigir nada, na CIJ, contra Israel, mesmo que este use e eventualmente abuse de seu poder político (apoio americano) e militar (convencional e atômico). Em suma, é a força, com leves disfarces jurídicos, que manda na área internacional. Os fracos apenas esperam, com poucas esperanças, que seus gemidos sejam ouvidos e gerem alguma reação, embora em um mundo cada vez mais surdo no ouvir queixas de vizinhos sem aliados fortes.

Continuando na demonstração do mencionado primitivismo: se um Estado, formalmente Estado, acionar outro Estado, na CIJ, o “Estado réu” só será processado se assim concordar, mesmo que ambos, autor e réu, façam parte da ONU. Equivale, essa recusa, a um valentão qualquer, em seu país, praticar inúmeras ilegalidades e, quando acionado na justiça, dizer que não aceita ser julgado e, portanto, nada pagará. E assim será, porque assim é nossa “ordem” — ou desordem? — jurídica na área internacional. Repetindo: não existem “estados réus” na ordem internacional a menos que concordem com essa posição. E quem sabe estar errado nunca concorda.

Prosseguindo no resumo da inacreditável sistemática jurídica internacional: se, eventualmente, o Estado infrator, ou réu, concorda em ser julgado e é condenado, mas não cumpre a decisão, o que acontece? A CIJ “lava as mãos”. Envia o problema ao Conselho de Segurança, para as “providências cabíveis”. E o que ocorre no Conselho de Segurança? Aí depende da política dos países que integram o CS, principalmente dos cinco países com poder de veto. Se uma punição qualquer for prejudicial aos “businesses” ou outros interesses dos titulares do direito de veto, nada será feito contra o país que aceitou ser julgado mas não aceitou o resultado do julgamento. Um único veto pode travar qualquer punição.

É assim que funciona a Corte Internacional de Justiça. Não, ressalte-se, por culpa dos competentes e idôneos 15 juízes que lá trabalham — verdadeira “nata” do saber jurídico na área internacional — mas porque assim está escrito na Carta das Nações Unidas e no Estatuto da CIJ. Provavelmente, alguns ou todos os juízes que lá trabalham lamentam as impressionantes limitações acima apontadas, mas não se sentiriam bem criando uma “rebelião jurisdicional” porque, quando foram nomeados para tais cargos fizeram a promessa de cumprir os Estatutos tal como está escrito.

Juristas de peso, no Brasil, já se pronunciaram, em entrevistas, sobre a hipótese do governo italiano levar o “caso Battisti” à CIJ. E adiantaram o veredicto de que referida Corte rejeitaria julgar a questão, porque no referido tratado de extradição não consta, expressamente, a previsão de que, em caso de divergência, a parte prejudicada — Brasil ou Itália — poderia levar o caso à decisão da CIJ. Com essa omissão, levando em conta a existência da soberania brasileira — exercida pela boca exclusiva do presidente do país — Battisti poderia permanecer no Brasil.

Com todo o respeito que possam merecer tais céticas opiniões, dando ao conceito de soberania um matiz extremamente atrasado — “no meu país, mando eu!; tratados só devem ser cumpridos quando isso me agrade!” — é preciso estimular a esperança de um mundo melhor e levar em conta que a jurisprudência, de modo geral, é também fonte do direito. E por que o mesmo não aconteceria no Direito Internacional Público?

Quem sabe, se apresentado um pedido formal da Itália na Corte Internacional de Justiça uma voz se erguerá, entre os juízes, para salientar o valor criativo e universal da jurisprudência, com a necessidade ou conveniência de que aquela alta Corte não permaneça como uma semi-inútil estátua de pedra, indiferente aos maiores abusos na ordem jurídica. Afinal, interessa ao mundo, e não só à Itália, que acordos sejam cumpridos. Pode, a CIJ, decidir que a possibilidade de acesso à Corte máxima, em casos de afronta clara aos tratados internacionais, está implícita em tais avenças. Se os tratados foram celebrados para serem cumpridos ou não, conforme a “veneta” do chefe de estado de plantão, para que o trabalho de se escrever tais “firulas”? Hitler, quando no apogeu, consultado sobre o cumprimento de algum tratado que contrariava os interesses germânicos, respondia que tratados são meros “pedaços de papel”. Assim serão encarados, doravante, os tratados assinados pelo Brasil? Não esquecer que os outros países poderão fazer o mesmo, dando o “troco”.

Considerando os “atrasos” jurídicos evidentes na área internacional, será oportuna uma tentativa de mudança de jurisprudência, em casos nítidos como foi o caso da extradição Battisti. Ele foi processado com base em acusações nítidas. A Itália é um dos países mais adiantados do mundo na área jurídica. Principalmente na área penal. Não é um Zimbábue. Preferiu não se defender, apenas fugir. Ao que sei, nem indicou um advogado para defendê-lo. Poderia ter feito isso, presumo, mesmo não se apresentando para depor (desconheço o direito italiano). Seria falta de dinheiro para contratar um advogado? A mídia não fala nisso e é mais do que provável que simpatizantes de esquerda forneceriam os recursos necessários ao pagamento de um criminalista de peso. Não quis. E agora, anos depois, vem dizer que é tudo mentira o que se disse contra ele? Ele teria que dizer isso é lá, no processo, através de um advogado de confiança, não agora, muitos anos depois, quando preso.

Alguém, em parecer, disse que a extradição poderia ser negada com base no art.3º, item I, letra “f”, do tratado de extradição, assim redigido: “se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados”.

Essa cláusula é ampla demais. Nela cabe tudo, inclusive uma soma de pretextos pueris para o descumprimento do tratado. A hipótese de “perseguição” na cadeia seria difícil de ocorrer porque o caso de Battisti despertou tanta atenção internacional que a vigilância da mídia logo denunciaria qualquer abuso carcerário. E se Battisti for, como alega, inocente das quatro mortes pelas quais foi condenado, uma ação rescisória — no Brasil, aquela que pode ser movida quando é possível provar que a condenação foi injusta — poderá inocenta-lo. E em um futuro governo, mais de esquerda, pode ocorrer um indulto.

Ao escrever estas linhas sinto, por vezes, alguma dúvida se deveria escrever o que escrevi. Isso, por mero sentimento de caridade, não por espírito de justiça. Battisti já é outro homem, e a situação de foragido, por muitos anos, já deve ter sido uma forte punição psicológica. As vítimas que ele, tudo indica, matou, não podem retornar a vida. Uma delas, porém, está paralítica e não se conforma com a impunidade, o mesmo ocorrendo com os parentes dos assassinados. O essencial, porém, é opinar como qualquer cidadão que gosta de ver ordem no mundo e não como mero sentimental.

A rotina de se praticar crimes em um país e fugir para outro não deve ser estimulada, como acontecerá se mantida a negativa da extradição. O Brasil tem má reputação nessa área. Filmes em que simpáticos assaltantes de bancos escolhem, com suas amadas, países onde possam se instalar, para gozar a vida com o dinheiro roubado, costumam mencionar o Brasil como primeira hipótese. É a fama, desde o caso Ronald Biggs, um dos autores do famoso assalto ao trem-pagador. Ele era até uma “personalidade” de convívio cobiçado. Dizem que figuras da sociedade carioca pagavam um “x” para um almoço com a ilustre figura.

A motivação política dos eventuais ou comprovados homicídios não “santificam”, sempre, as mortes. Talvez, nos casos em exames, houve mera vingança contra algum desaforo, fugindo o fato da motivação política para transformar-se em rixa pessoal. Só a leitura dos autos esclareceria isso.

Finalmente, uma comparação elucidativa: se um cidadão brasileiro resolvesse assassinar, por motivos políticos, um parente do ex-presidente Lula, ou ele mesmo, ou algum ministro dele e conseguisse fugir para a Itália, lá obtendo o status de refugiado, o que diria o governo brasileiro contra o governo italiano, caso este negasse cumprimento ao tratado de extradição?

Tudo considerado, voltemos ao princípio: será salutar, ao Direito Internacional, que a Itália acione a Corte de Justiça Internacional, exigindo o cumprimento do tratado. Seria uma “sacudidela” jurídica com alguma possibilidade de criação de uma jurisprudência. Se, ao contrário, negado o acesso à Corte, os povos pelo menos ficarão sabendo, mais uma vez, como a justiça internacional está ainda excessivamente “travada”, exigindo que ela se ajuste melhor ao mundo em que vivemos. Não fosse a restrição do cerimonial, é possível que, inaugurada a aludida jurisprudência, os notáveis juízes que lá trabalhem, ovacionassem, de punho erguido, a benéfica ousadia.

(25-1-2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário