sábado, 15 de janeiro de 2011

Um cochilo jurídico e “arbóreo” de Homero

Vez por outra, a lúcida e equilibrada ciência jurídica sofre escorregões que a desprestigia frente às pessoas mais sensatas. Refiro-me à aplicação ilimitada, afrontosa do senso comum, da “teoria dos frutos da árvore envenenada”, criada pela jurisprudência norte-americana e “engolida”, com casca e tudo, pela jurisprudência brasileira. Há indícios, porém, de que a razão voltará a prevalecer. Os “Homeros” e outros gênios podem escorregar, quando estressados pelo excesso de trabalho, mas cedo ou tarde voltam a recuperar o equilíbrio, assustados com o que presenciaram na vida real. Concluirão que, por vezes, a “árvore” pode estar envenenada, mas o fruto contém a polpa da verdade, objetivo máximo da justiça. O veneno do tronco não conseguiu chegar até ele. Em termos “não vegetais”, nada impede que uma prostituta gere uma filha com invulgar inclinação para a virtude.

É conhecida a expressão “cochilo de Homero” para designar pequenas falhas nos trabalhos de grandes homens. Homero é considerado o maior poeta épico da antiga Grécia. Viveu alguns séculos antes de Cristo. Atribui-se a ele os poemas épicos da “Ilíada” e “Odisséia”. Tão inspirado ele foi que alguns historiadores chegam a por em dúvida sua existência individual. No entanto, com todo esse brilhantismo, dizem alguns críticos que sua obra — não as li — contém pequenas incorreções. Daí o uso, aqui, da expressão “cochilo de Homero” para adjetivar uma orientação jurisprudencial que tem exercido má influência na luta contra a impunidade, se continuar o absurdo de se invalidar toda a “prova derivada”, por mais nítida e veemente que seja, só porque, na origem, houve um “grampo” ilegal, ou apreensão de livros contábeis que comprovam crimes.

Salvo engano, a expressão “teoria dos frutos da árvore envenenada” foi aplicada, pela primeira vez, em 1939, em um caso de contrabando, “Nardone versus United States. Como houve uma escuta ilegal do réu, tudo o que ele disse não teria valor jurídico como prova de acusação, o mesmo ocorrendo com outras provas, incontestáveis, obtidas posteriormente graças à escuta ilegal. Haveria uma cadeia de contaminações absolutas. Um prêmio para os infratores e um castigo para algum policial mais empenhado em combater o crime. Tal empenho merece elogios. O que não pode é o policial falsificar provas.

No Brasil, o exagero prevaleceu, pela primeira vez, no Habeas Corpus n.69.012/RS, em razão de uma minoria que se tornou “maioria” por mero acidente, como explico em seguida.

No referido HC votaram a favor da “contaminação total” — invalidando a prova derivada — os Ministros Sepúlveda Pertence, Francisco Rezek, Ilmar Galvão e Marco Aurélio. Quatro votos, apenas, em um tribunal de onze juízes. Votaram pela validade da “prova derivada” os Ministros Carlos Velloso, Moreira Alves, Néri da Silveira, Octávio Gallotti, Paulo Brossard e Sidney Sanches. Seis Ministros, portanto, admitindo a validade da “prova derivada”.

No entanto, o réu alegou, em mandado de segurança, que o Min. Nery da Silveira estava impedido. Não poderia ter votado naquele julgamento. Em conseqüência, a decisão foi anulada e o HC novamente julgado. Nele, todos os Ministros presentes ratificaram os votos. Obviamente, Nery da Silveira não votou e o Min. Moreira Alves não pôde comparecer. Com isso, a tese favorável ao aproveitamento da “prova derivada” perdeu dois votos, ficando a contagem de quatro contra quatro, um empate. E, em casos de empate em habeas corpus, prevalece o a decisão mais favorável ao réu. Conclusão: por apenas quatro votos, em um tribunal de onze magistrados, prevaleceu a tese que invalida toda “prova derivada”, mesmo quando esclarecedora do crime e sua autoria.

Figuremos, para comprovação do absurdo da “teoria dos frutos da árvore envenenada”, a seguinte hipótese: um policial mais pertinaz, ou o pai de uma criança desaparecida, está convicto de que um determinado cidadão — astuto e respeitado na comunidade —, seqüestrou, violentou, matou e enterrou várias crianças, ou mulheres. Não conseguindo provas testemunhais, nem autorização judicial para uma escuta, ou busca domiciliar, o policial “grampeia” o telefone do suspeito. Ouvindo sua conversa com um cúmplice, grava a confissão do “serial killer”. Inclusive a confissão deste de que filmou as cenas — para ele excitantes —, e enterrou os cadáveres em seu sítio, perto do paiol. Para reforço da confissão ouvida, o mesmo policial, ou pai vingativo, penetra na garagem do criminoso e lá descobre, escondidos num caixa, alguns DVDs com a filmagem das cenas de violação sexual praticadas por ele mesmo. Em seguida, o policial vai até o sítio do criminoso e localiza a cova coletiva onde estão suas vítimas. Aí chama a polícia.

No hipotético caso, a se aplicar dogmaticamente a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, toda a prova contra o suspeito seria sem valor porque os filmes em que aparece o réu abusando das vítimas, e a existência comprovada da cova com os cadáveres seriam “frutos envenenados” em decorrência da escuta clandestina e do ingresso na propriedade do criminoso sem um mandado judicial. Existe absurdo jurídico mais gritante do que este?

Toda teoria jurídica é, em princípio, bem intencionada. Aquela agora em exame foi concebida para desestimular abusos policiais ou da fiscalização em geral. Só que, em algumas teorias, a boa intenção do seu enunciador desborda, afrontando a razoabilidade, esse “termômetro” moral que vigia e impede o calor excessivo inerente ao atrito entre a boa intenção teórica e a realidade humana. No hipotético caso acima mencionado, pergunta-se, seria justo punir o policial, ou pai de uma das vítimas, mandando-os para a cadeia, e absolver um comprovado estuprador serial, torturador, homicida e ocultador de cadáveres?

Solto o criminoso, absolvido contra toda a evidência probatória, não haveria o risco de, algum tempo depois, ele reincidir, dando vazão às suas taras?

Excessos tanto podem ocorrer por parte da polícia como por parte da defesa. Se houve, na escuta não autorizada, apenas excesso de zelo do policial, ou do fiscal, mais razoável seria uma punição apenas administrativa, jamais uma condenação criminal. E a prova derivada seria examinada com isenção e objetivamente.

O crime está se tornando cada vez mais organizado, o que diminui o número de testemunhas dispostas a correr o risco de testemunhar, com retaliações talvez mortais. Poucos se atrevem a testemunhar contra um sujeito inescrupuloso, rico e influente. E para obter a autorização judicial para um “grampo” legal, é preciso convencer o juiz, mostrando “indícios” concretos que, para serem obtidos, precisariam de alguma invasão de privacidade. Um difícil círculo vicioso, do qual tira proveito a criminalidade de alto coturno. Réus insignificantes nem se atrevem a mencionar a tal árvore com frutos envenenados, quando a polícia invade seus barracos para apreender algum objeto furtado. Ressalte-se, ainda, que há juízes ousados e juízes tímidos. Deferir “grampos” contra altas figuras políticas e econômicas pode significar problemas para o próprio juiz, conforme a região onde exerce seu trabalho. Teme ver sua carreira “travada”, ou coisa pior. Daí a conveniência de se aceitar a prova derivada, se idônea.

O “fruto da árvore envenenada”, a ser desconsiderado como prova, deveria ser apenas a prova primeira, em si, as palavras contidas no “grampo”, por exemplo. Na hipótese acima mencionada, a cova com os defuntos deveria, por acaso, ser fechada e sobre ela afixada uma tabuleta dizendo “Os cadáveres que estão enterrados aqui só existem de fato, não de direito”?

Esperemos que logo prevaleça o bom senso em assunto tão importante.

(13-1-2011)

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